MILTON
MACIEL
Devaneios
de um rei. Átila chega a Orléans.
Os
hunos com força total em Châlons
Resumo do cap. 5 – Doze batedores hunos chegam à
frente de suas tropas em marcha para Châlons, para sondar o terreno inimigo.
São emboscados e mortos por arqueiros francos. Um único logra escapar, mas um
arqueiro inesperado o abate. Esse arqueiro, para surpresa geral, não é um
homem, mas a jovem sacerdotisa Vérica, que assim mostra que é uma guerreira temível
também. O rei Meroveu fica melindrado com a iniciativa das sacerdotisas, mas
Vérica o repreende e ele percebe que agiu por orgulho e vaidade somente.
Desculpando-se, ele beija a mão da moça e sai dali perturbado, com o coração
acelerado, o pensamento preso à imagem daquela mulher jovem e sedutora.
Devaneios de um
rei
O jovem rei dos
francos subiu as escadas da torre principal de vigia, na muralha norte, aos
saltos. Seu coração batia forte e acelerado, mas não era pelo esforço da
corrida. Ele havia disparado no exato momento em que o rei havia beijado
levemente a mão de Vérica, a sacerdotisa-guerreira celta. Meroveu sentiu-se
enrubescer, virou de costas para a moça e fugiu dali como um menino apanhado numa
travessura. Correu como em uma emergência, dirigindo-se para a escada da torre
norte. Uma vez lá em cima, com o cair da noite, começou a se sentir mais
tranquilo. Tranquilo, porém não seguro. Acabara de perder toda segurança
possível, porque, de repente, percebeu que aquela mulher fascinante
efetivamente o fascinara.
Estava com 29
anos e esta era, reconhecidamente, a primeira vez que uma mulher mexia tanto
com ele assim. Órfão de pai e mãe há alguns anos, não mais recebia deles, é
óbvio, a costumeira pressão para que se casasse. Mas, quando sucedeu a seu
cabeludo pai (rei Clodion, le Chevelu),
quando da morte deste em 448, seus conselheiros e o próprio Flávio Aécio, o
general romano que garantira sua escolha, adotando-o oficialmente como filho,
aconselharam-no a casar de forma a fazer uma aliança estratégica, optando por
alguma princesa dos alanos ou dos visigodos. Mas Meroveu era muito moço e
impetuoso e sua grande paixão era exclusivamente a vida militar.
Com a presença
quase generalizada dos hunos nos reinos ao norte, sabia-se que era só uma
questão de tempo e Átila iria, com certeza, voltar seu esmagador exército para
as terras do Sul. E ali estava o reino dos francos, que precisaria ter, mais
cedo ou mais tarde, em Meroveu o seu grande defensor. Para isso, o jovem
príncipe de preparava todos os dias, praticando todas as artes da guerra e
aprendendo estratégia com os generais francos e romanos mais experientes. Mas,
com o passar do tempo, descobriu que guerra não era só uma questão militar, mas
que, muito acima e antes desta, era uma questão política e econômica. E seguiu então
para Roma, como embaixador de seu pai, onde ficou por três anos para aprender
todas as artes sutis e corruptoras da política romana. Estava em Roma, quando a
morte do pai exigiu sua presença em casa.
Em sua curta
vida adulta, entre seus interesses militares e políticos, tivera muita
mulheres, tanto em solo franco, quanto em Roma. Mas nenhuma delas lhe mereceu sequer
o respeito, que dirá o afeto. Eram quase todas cortesãs, mulheres livrse ou
mesmo patrícias romanas casadas, de vida sexual muito livre. Em Roma, participara
de muitas bacanais e acabara se acostumando com esse trocar incessante de
mulheres jovens e bonitas, que não respeitava nem estimava. Em resumo, nunca
havia amado uma mulher, por mais mulheres que tivesse meramente possuído. Além
do mais, era um príncipe, era jovem e era um homem forte, atlético e bonito. Um
dia se tornaria um rei poderoso e as mulheres tinham verdadeiro fascínio por
esse poder que ele representava, isso era evidente. Por essas razões, nunca em
sua vida Meroveu tivera que se sentir numa posição inferiorizada em relação a
qualquer mulher.
Por isso,
naquela noite, o rei se sentia completamente inseguro emocionalmente. Era a
primeira vez que estava frente a frente com uma mulher realmente poderosa.
Vérica era jovem – até demais, com seis verdes dezesseis anos apenas – e era
muito mais do que bonita, era simplesmente deslumbrante. Mas era uma mulher
superior, uma sacerdotisa da Deusa, com poderes especiais que ele já pudera
sentir atuando sobre si próprio. E, para completar, era uma guerreira de uma
força e uma coragem que fariam frente às de qualquer homem. E, ao que tudo
indicava, a qualquer um superaria no uso eficiente do arco de guerra. Jámais
havia conhecido uma mulher assim. Se alguém lhe contasse apenas que tal mulher
existia, ele duvidaria e faria chacota do mentiroso.
Mas Vérica não
era uma mentira, não era uma invenção. Era a mais esplêndida realidade que seus
olhos tiveram a felicidade de contemplar em toda sua curta vida. Uma realidade
com um corpo escultural, uma face radiosa, uns olhos perfeitos, uma boca
carnuda, um...
– e subitamente Meroveu
surpreendeu-se desejando aquela jovem mulher com desespero! Não, nunca desejara
nenhuma outra assim! Antes era querer uma mulher, mandar alguém fazer os
necessários arranjos e pronto. Logo a teria na cama, oferecendo-se feliz a seus
abraços e desejos. Mas Vérica não era uma mulher como aquelas. Apesar de
reconhecer agora como a desejava, havia algo que estava acima do seu desejo:
Vérica era superior, não era apenas uma criatura carnal.
E Meroveu se
sentiu completamente perdido, ao se ver forçado a reconhecer que o que sentia
por Vérica era muito, mas muito mais do que desejo somente. Ele sentia
admiração. Ele sentia respeito! E ele
sentia medo. Sim, medo de perdê-la! Medo de que ela não o aceitasse como homem.
Pois Vérica era, acima de tudo, uma sacerdotisa da Deusa. E as sacerdotisas não
podem ser mulheres comuns, não podem ser meras esposas, mesmo que como esposa pudesse
ser uma rainha. Uma sacerdotisa da Deusa à Deusa pertence. Não pode aceitar ou
recusar um homem, sem que isso seja determinado pela Deusa.
E Meroveu
sentiu-se murchar em temor e desespero. Ainda que Vérica pudesse aceitá-lo como
homem, mesmo assim lhe parecia impossível que a Deusa o aceitasse. Que tinha
ele a ver com a Deusa? Absolutamente nada! Nunca soubera direito de sua
existência, de seus poderes, nunca a havia propiciado. Como a Deusa poderia
tê-lo em bom apreço? Impossível. E Meroveu se desesperava na noite que avançava
no céu da Gália. E, como se isso ainda não fosse suficiente, então lembrou-se
de Kyna, que tinha poder de Mestra sobre Vérica. E perguntou-se por Alana, que,
afinal de contas, era a mãe da moça. Sentiu-se pequeno, insignificante,
perdido. Dependia da aprovação e aceitação não de uma, mas de quatro criaturas
– três mulheres e uma Deusa. Não, na verdade três sacerdotisas e uma Deusa! Que esperança podia ter? O que tinha ele
a oferecer a elas, mais do que o seu reino ainda insignificante, que poderia
ser pulverizado em poucos dias pelo avanço esmagador de Átila e seu hunos?
E, no seu
sofrimento novo, caiu de repente de joelhos e começou a rezar para a Deusa. Mas,
logo a seguir, deu-se conta do ridículo de sua situação: Não tinha a menor
idéia de como falar a uma Deusa, não sabia rezar, não passara vida toda de um
rude aprendiz de soldado e, depois, de um aprendiz de desonestidade e
manipulação política. A Deusa e suas sacerdotisas representavam um princípio de
Pureza, eram criaturas nobres, de espíritos iluminados. Ele era apenas um
rústico e um interesseiro. Levantou-se rapidamente, sentindo-se ridículo. E
mergulhou de novo em seus pensamentos mais sombrios, varando a noite e a
madrugada sem poder se concentrar em nada mais do que nesse seu novo drama.
Sabia que tinha que voltar toda a sua energia e toda a sua inteligência para a
defesa de sua cidadela, para levar a guerra aos hunos invasores. Mas como
poderia fazê-lo agora? Por fim, vencido pelo cansaço, adormeceu sobre seu
manto, ali mesmo na torre, exposto ao frio da madrugada.
Átila chega a
Orléans
Nesse meio
tempo, o grosso do exército huno chegou ao norte de Orléans, para completar o
cerco que uma única divisão huna apenas ameaçava executar, a uma distância
prudente de seis quilômetros. De qualquer forma, aquilo já funcionava como um
cerco parcial, porque as principais linhas de suprimento para a cidade, seus
habitantes e seus militares vinham de Lutécia (Paris) e seus arredores. A
divisão de soldados hunos havia seccionado essa via de comunicação de Orléans
com o norte das terras de Gália. E agora o grosso do exército huno, sob a
liderança pessoal do próprio Átila, havia chegado e se juntado à divisão
pioneira no cerco. Átila poderia contornar Orleáns, como já havia contornado
Lutécia, e não agredir a cidade. Já sabia que o próprio rei Teodorico I estava
entrincheirado lá, com um razoável número de combatentes. Nada, é claro, que
pudesse nem de longe fazer face à ampla superioridade numérica dos hunos. Evidentemente
Teodorico não seria louco de se opor ao avanço dos hunos para o sul, em direção
à Península Itálica, a Ravenna e a Roma.
Mas o que Átila
ainda não sabia é que Teodorico havia acabado de celebrar um grande acordo com
os romanos de Flávio Aécio, com os alanos e com os bungúrdios. E que, nesse
exato momento, os exércitos desses dois reinos e do Império Romano do Ocidente
marchavam a apenas dois dias de distância de Orléans.
Átila mandou uma
embaixada a Orléans, não para propor a manutenção do antigo acordo de não
agressão dos hunos com os visigodos, mas levando ao rei um verdadeiro ultimato:
Teodorico deveria facilitar o avanço e a passagem dos hunos por todos os
territórios visigodos e deveria também fornecer suprimentos às divisões hunas.
Uma recusa seria interpretada como um ato hostil e uma verdadeira declaração de
guerra a ele, Átila. Que, nesse caso, cairia sobre Orleáns e, a seguir, sobre
outras cidades visigodas sem qualquer piedade. Para surpresa dos hunos,
Teodorico I disse não! Os embaixadores
de Átila deram meia volta e saíram dizendo aos visigodos que a guerra entre
eles estava de novo declarada.
Em dois dias,
Átila dispôs todo o seu enorme contingente de mais de 80 000 soldados
engolfando Orléans por três lados. O cerco estava começado. E, com certeza, uma
vez desfechado o ataque, com todas as máquinas de guerra que tinham os hunos,
não haveria de durar muitos dias. Orléans era uma cidadela relativamente
pequena e tinha o seu fraco na existência de uma grande população civil a
proteger e alimentar, um evidente e grande estorvo ao esforço de guerra
visigodo.
Mas em dois dias
também chegaram os romanos, os burgúndios e os alanos. Então Teodorico I saiu
de Orléans com seus guerreiros e juntou-se aos aliados. E, juntos, marcharam
todos em direção ao norte, surpreendendo o exército huno ainda nos preparativos
para o cerco. A batalha que se iniciou foi tremenda, com o hunos colhidos em
uma posição muito desfavorável. Rapidamente Átila e seus generais, ao tomarem
conhecimento do possível número total de defensores de Orléans, concluíram que
uma batalha frontal como aquela que se iniciara não lhes seria vantajosa. E,
durante a noite, depois de proporem aos aliados um armistício até o dia
seguinte, os hunos bateram em retirada.
A idéia de Átila
era rumar para o nordeste e reunir seu homens com a outra grande divisão huna
que marchava no momento em direção a Lutécia, depois de ter esmagado Reims.
Porém Flávio
Aécio, profundo conhecedor do modus
operandi huno, estava preparado para essa contingência também. E, ao invés
de festejar, aliviado, a retirada dos hunos, convenceu seus aliados que a única
coisa correta a fazer seria persegui-los imediatamente e dar-lhes batalha,
antes que se reforçassem com o restante do seu exército.
Nesse momento
então, uma tremenda massa de guerreiros hunos se desloca rapidamente em direção
ao nordeste, num rumo que os levará, fatalmente, às imediações de Châlons-en-Champagne,
onde o rei Meroveu sofre de amor por sua linda sacerdotisa-guerreira. E, ainda
mais rápido, segue-lhe no encalço uma massa ainda maior de soldados visigodos,
alanos, burgúndios e romanos.
Os hunos com
força total em Châlons
Quando Kyna
determinou previamente que os corpos dos doze batedores hunos, abatidos junto à
passagem do rio, fossem reunidos num só ponto e queimados, ela tinha três
coisas em mente. A primeira era cuidar da higiene, evitando que os cadáveres em
decomposição contaminassem o rio. A segunda era dar aos hunos, que veriam de
longe a fumaça à medida que se aproximavam, uma idéia de que seus batedores
haviam falhado e que os francos eram inimigos tão ou mais cruéis e sanguinários
que os próprios hunos. A grande arma dos hunos era, antes de mais nada, o terror. Faziam tais atrocidades com as
populações vencidas, que o que menos encontravam era resistência em seu
caminho, pois os habitantes dos povoados e cidades mais fracas optavam quase
sempre pela fuga em massa, deixando para trás amplos materiais para pilhagem e,
não poucas vezes, paióis abarrotados de grãos e campos ainda por colher, com
grande quantidade de animais.
A ação daqueles
francos naquela cidadela, era algo completamente inédito para os hunos, pois
sabiam que os francos não tinham o hábito de queimar seu inimigos. Mas a terceira
e mais importante razão de Kyna era suscitar um sentimento de revolta nos
hunos, que os enchesse de indignação e idéias de vingança e os levasse a um
ataque imediato e direto à fortaleza, com sua temível cavalaria. Era com isso
que a sacerdotisa-chefe contava e foi isso exatamente o que aconteceu.
Quando os quase
dois mil hunos se aproximaram o suficiente para poder ter certeza que tinham
sido os seus batedores o combustível da fogueira, cuja fumaça tinham visto no
dia anterior, na direção da fortaleza, todos se encheram de cólera e exigiram
dos chefes um ataque imediato, para punir os responsáveis por tal crime
hediondo. Os chefes, movidos pelo mesmo desejo de vingança, autorizaram a carga
imediata de cavalaria contra a fortaleza.
É preciso
entender que a tropa de dois mil hunos era toda ela constituída de cavaleiros
com seus arcos, escudos e espadas. Não havia infantaria, todos marchavam a
cavalo. Uma situação exatamente oposta a dos combatentes francos que, dentro da
cidadela, quase não tinham cavalos, posto que a logística de alimentação de
quinhentos cavalos numa condição de cerco extrapolava em muito a capacidade da
cidadela. O pequeno exército do rei Meroveu era composto basicamente de
infantaria, com uma pequena unidade de setenta arqueiros. Ora, para uma luta em
campo aberto, a vantagem dos hunos seria esmagadora, literalmente. Cavalaria
contra infantaria. E dois mil contra quinhentos homens.
Por que razão,
então, a sacerdotisa-chefe havia feita aquela manobra, visando estimular os
hunos a um ataque imediato, a cavalo, contra a fortaleza?
O mais notável e
inesperado foi que, no exato momento em que os hunos começaram a avançar a todo
galope em direção à passagem do rio, a ponte levadiça foi abaixada e todos os
homens em armas dos francos saíram rapidamente e foram se postar a quinhentos
metros da cidadela, em linha, esperando os atacantes. Ao verem que o número de
guerreiros a enfrentar, num primeiro momento, era tão exíguo, os hunos
avançaram ainda mais animados. Aquela era uma cidadela que não comportava nem
mil homens armados, não tinha nem espaço, nem instalações, nem logística para
tanto. Os espiões visigodos, que se haviam vendido aos hunos meses antes, lhes
deram todas essas informações, de forma que os invasores sabiam com o que
contar em seu avanço para a fortaleza. Quando todos os hunos cruzaram o rio,
eles foram redispostos em linha de ataque outra vez e a carga de cavalaria
disparou novamente. A distância ainda era grande demais para permitir o uso de
flechas de parte a parte.
Mas foi quando
avançaram a galope pela planície, a coisa de menos de cem metros do rio, que os
hunos tiveram um grande e terrível surpresa: seus cavalos começaram a parar de
repente, ou a chafurdar numa lama muito espessa, ou a afundar em águas mais
profundas. Em poucos minutos toda a vantagem da cavalaria huna estava
desmanchada. Debaixo do capim gigante, oculta por ele, a planície estava toda ALAGADA!
Do alto da torre da muralha norte, Kyna abriu um amplo sorriso. Logo todos
compreenderiam porque fizera Meroveu conduzir as ações que levaram à inundação
da planície, cinco dias antes.
CONTINUA: A batalha do ‘lago’ Châlons. Os hunos recuam
para a outra margem. Meroveu busca conselho com Kyna. Alana deixa Orléans e
galopa para Châlons.
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