quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013


O  CERCO – 6  
MILTON  MACIEL  
Devaneios de um rei. Átila chega a Orléans.
Os hunos com força total em Châlons  

Resumo do cap. 5 – Doze batedores hunos chegam à frente de suas tropas em marcha para Châlons, para sondar o terreno inimigo. São emboscados e mortos por arqueiros francos. Um único logra escapar, mas um arqueiro inesperado o abate. Esse arqueiro, para surpresa geral, não é um homem, mas a jovem sacerdotisa Vérica, que assim mostra que é uma guerreira temível também. O rei Meroveu fica melindrado com a iniciativa das sacerdotisas, mas Vérica o repreende e ele percebe que agiu por orgulho e vaidade somente. Desculpando-se, ele beija a mão da moça e sai dali perturbado, com o coração acelerado, o pensamento preso à imagem daquela mulher jovem e sedutora.

Devaneios de um rei

O jovem rei dos francos subiu as escadas da torre principal de vigia, na muralha norte, aos saltos. Seu coração batia forte e acelerado, mas não era pelo esforço da corrida. Ele havia disparado no exato momento em que o rei havia beijado levemente a mão de Vérica, a sacerdotisa-guerreira celta. Meroveu sentiu-se enrubescer, virou de costas para a moça e fugiu dali como um menino apanhado numa travessura. Correu como em uma emergência, dirigindo-se para a escada da torre norte. Uma vez lá em cima, com o cair da noite, começou a se sentir mais tranquilo. Tranquilo, porém não seguro. Acabara de perder toda segurança possível, porque, de repente, percebeu que aquela mulher fascinante efetivamente o fascinara.

Estava com 29 anos e esta era, reconhecidamente, a primeira vez que uma mulher mexia tanto com ele assim. Órfão de pai e mãe há alguns anos, não mais recebia deles, é óbvio, a costumeira pressão para que se casasse. Mas, quando sucedeu a seu cabeludo pai   (rei Clodion, le Chevelu), quando da morte deste em 448, seus conselheiros e o próprio Flávio Aécio, o general romano que garantira sua escolha, adotando-o oficialmente como filho, aconselharam-no a casar de forma a fazer uma aliança estratégica, optando por alguma princesa dos alanos ou dos visigodos. Mas Meroveu era muito moço e impetuoso e sua grande paixão era exclusivamente a vida militar.

Com a presença quase generalizada dos hunos nos reinos ao norte, sabia-se que era só uma questão de tempo e Átila iria, com certeza, voltar seu esmagador exército para as terras do Sul. E ali estava o reino dos francos, que precisaria ter, mais cedo ou mais tarde, em Meroveu o seu grande defensor. Para isso, o jovem príncipe de preparava todos os dias, praticando todas as artes da guerra e aprendendo estratégia com os generais francos e romanos mais experientes. Mas, com o passar do tempo, descobriu que guerra não era só uma questão militar, mas que, muito acima e antes desta, era uma questão política e econômica. E seguiu então para Roma, como embaixador de seu pai, onde ficou por três anos para aprender todas as artes sutis e corruptoras da política romana. Estava em Roma, quando a morte do pai exigiu sua presença em casa.

Em sua curta vida adulta, entre seus interesses militares e políticos, tivera muita mulheres, tanto em solo franco, quanto em Roma. Mas nenhuma delas lhe mereceu sequer o respeito, que dirá o afeto. Eram quase todas cortesãs, mulheres livrse ou mesmo patrícias romanas casadas, de vida sexual muito livre. Em Roma, participara de muitas bacanais e acabara se acostumando com esse trocar incessante de mulheres jovens e bonitas, que não respeitava nem estimava. Em resumo, nunca havia amado uma mulher, por mais mulheres que tivesse meramente possuído. Além do mais, era um príncipe, era jovem e era um homem forte, atlético e bonito. Um dia se tornaria um rei poderoso e as mulheres tinham verdadeiro fascínio por esse poder que ele representava, isso era evidente. Por essas razões, nunca em sua vida Meroveu tivera que se sentir numa posição inferiorizada em relação a qualquer mulher.

Por isso, naquela noite, o rei se sentia completamente inseguro emocionalmente. Era a primeira vez que estava frente a frente com uma mulher realmente poderosa. Vérica era jovem – até demais, com seis verdes dezesseis anos apenas – e era muito mais do que bonita, era simplesmente deslumbrante. Mas era uma mulher superior, uma sacerdotisa da Deusa, com poderes especiais que ele já pudera sentir atuando sobre si próprio. E, para completar, era uma guerreira de uma força e uma coragem que fariam frente às de qualquer homem. E, ao que tudo indicava, a qualquer um superaria no uso eficiente do arco de guerra. Jámais havia conhecido uma mulher assim. Se alguém lhe contasse apenas que tal mulher existia, ele duvidaria e faria chacota do mentiroso.

Mas Vérica não era uma mentira, não era uma invenção. Era a mais esplêndida realidade que seus olhos tiveram a felicidade de contemplar em toda sua curta vida. Uma realidade com um corpo escultural, uma face radiosa, uns olhos perfeitos, uma boca carnuda, um...
– e subitamente Meroveu surpreendeu-se desejando aquela jovem mulher com desespero! Não, nunca desejara nenhuma outra assim! Antes era querer uma mulher, mandar alguém fazer os necessários arranjos e pronto. Logo a teria na cama, oferecendo-se feliz a seus abraços e desejos. Mas Vérica não era uma mulher como aquelas. Apesar de reconhecer agora como a desejava, havia algo que estava acima do seu desejo: Vérica era superior, não era apenas uma criatura carnal. 

E Meroveu se sentiu completamente perdido, ao se ver forçado a reconhecer que o que sentia por Vérica era muito, mas muito mais do que desejo somente. Ele sentia admiração. Ele sentia respeito! E ele sentia medo. Sim, medo de perdê-la! Medo de que ela não o aceitasse como homem. Pois Vérica era, acima de tudo, uma sacerdotisa da Deusa. E as sacerdotisas não podem ser mulheres comuns, não podem ser meras esposas, mesmo que como esposa pudesse ser uma rainha. Uma sacerdotisa da Deusa à Deusa pertence. Não pode aceitar ou recusar um homem, sem que isso seja determinado pela Deusa.

E Meroveu sentiu-se murchar em temor e desespero. Ainda que Vérica pudesse aceitá-lo como homem, mesmo assim lhe parecia impossível que a Deusa o aceitasse. Que tinha ele a ver com a Deusa? Absolutamente nada! Nunca soubera direito de sua existência, de seus poderes, nunca a havia propiciado. Como a Deusa poderia tê-lo em bom apreço? Impossível. E Meroveu se desesperava na noite que avançava no céu da Gália. E, como se isso ainda não fosse suficiente, então lembrou-se de Kyna, que tinha poder de Mestra sobre Vérica. E perguntou-se por Alana, que, afinal de contas, era a mãe da moça. Sentiu-se pequeno, insignificante, perdido. Dependia da aprovação e aceitação não de uma, mas de quatro criaturas – três mulheres e uma Deusa. Não, na verdade três sacerdotisas e uma Deusa! Que esperança podia ter? O que tinha ele a oferecer a elas, mais do que o seu reino ainda insignificante, que poderia ser pulverizado em poucos dias pelo avanço esmagador de Átila e seu hunos?

E, no seu sofrimento novo, caiu de repente de joelhos e começou a rezar para a Deusa. Mas, logo a seguir, deu-se conta do ridículo de sua situação: Não tinha a menor idéia de como falar a uma Deusa, não sabia rezar, não passara vida toda de um rude aprendiz de soldado e, depois, de um aprendiz de desonestidade e manipulação política. A Deusa e suas sacerdotisas representavam um princípio de Pureza, eram criaturas nobres, de espíritos iluminados. Ele era apenas um rústico e um interesseiro. Levantou-se rapidamente, sentindo-se ridículo. E mergulhou de novo em seus pensamentos mais sombrios, varando a noite e a madrugada sem poder se concentrar em nada mais do que nesse seu novo drama. Sabia que tinha que voltar toda a sua energia e toda a sua inteligência para a defesa de sua cidadela, para levar a guerra aos hunos invasores. Mas como poderia fazê-lo agora? Por fim, vencido pelo cansaço, adormeceu sobre seu manto, ali mesmo na torre, exposto ao frio da madrugada.

Átila chega a Orléans

Nesse meio tempo, o grosso do exército huno chegou ao norte de Orléans, para completar o cerco que uma única divisão huna apenas ameaçava executar, a uma distância prudente de seis quilômetros. De qualquer forma, aquilo já funcionava como um cerco parcial, porque as principais linhas de suprimento para a cidade, seus habitantes e seus militares vinham de Lutécia (Paris) e seus arredores. A divisão de soldados hunos havia seccionado essa via de comunicação de Orléans com o norte das terras de Gália. E agora o grosso do exército huno, sob a liderança pessoal do próprio Átila, havia chegado e se juntado à divisão pioneira no cerco. Átila poderia contornar Orleáns, como já havia contornado Lutécia, e não agredir a cidade. Já sabia que o próprio rei Teodorico I estava entrincheirado lá, com um razoável número de combatentes. Nada, é claro, que pudesse nem de longe fazer face à ampla superioridade numérica dos hunos. Evidentemente Teodorico não seria louco de se opor ao avanço dos hunos para o sul, em direção à Península Itálica, a Ravenna e a Roma.

Mas o que Átila ainda não sabia é que Teodorico havia acabado de celebrar um grande acordo com os romanos de Flávio Aécio, com os alanos e com os bungúrdios. E que, nesse exato momento, os exércitos desses dois reinos e do Império Romano do Ocidente marchavam a apenas dois dias de distância de Orléans.

Átila mandou uma embaixada a Orléans, não para propor a manutenção do antigo acordo de não agressão dos hunos com os visigodos, mas levando ao rei um verdadeiro ultimato: Teodorico deveria facilitar o avanço e a passagem dos hunos por todos os territórios visigodos e deveria também fornecer suprimentos às divisões hunas. Uma recusa seria interpretada como um ato hostil e uma verdadeira declaração de guerra a ele, Átila. Que, nesse caso, cairia sobre Orleáns e, a seguir, sobre outras cidades visigodas sem qualquer piedade. Para surpresa dos hunos, Teodorico I  disse não! Os embaixadores de Átila deram meia volta e saíram dizendo aos visigodos que a guerra entre eles estava de novo declarada.

Em dois dias, Átila dispôs todo o seu enorme contingente de mais de 80 000 soldados engolfando Orléans por três lados. O cerco estava começado. E, com certeza, uma vez desfechado o ataque, com todas as máquinas de guerra que tinham os hunos, não haveria de durar muitos dias. Orléans era uma cidadela relativamente pequena e tinha o seu fraco na existência de uma grande população civil a proteger e alimentar, um evidente e grande estorvo ao esforço de guerra visigodo.

Mas em dois dias também chegaram os romanos, os burgúndios e os alanos. Então Teodorico I saiu de Orléans com seus guerreiros e juntou-se aos aliados. E, juntos, marcharam todos em direção ao norte, surpreendendo o exército huno ainda nos preparativos para o cerco. A batalha que se iniciou foi tremenda, com o hunos colhidos em uma posição muito desfavorável. Rapidamente Átila e seus generais, ao tomarem conhecimento do possível número total de defensores de Orléans, concluíram que uma batalha frontal como aquela que se iniciara não lhes seria vantajosa. E, durante a noite, depois de proporem aos aliados um armistício até o dia seguinte, os hunos bateram em retirada.

A idéia de Átila era rumar para o nordeste e reunir seu homens com a outra grande divisão huna que marchava no momento em direção a Lutécia, depois de ter esmagado Reims.  

Porém Flávio Aécio, profundo conhecedor do modus operandi huno, estava preparado para essa contingência também. E, ao invés de festejar, aliviado, a retirada dos hunos, convenceu seus aliados que a única coisa correta a fazer seria persegui-los imediatamente e dar-lhes batalha, antes que se reforçassem com o restante do seu exército.

Nesse momento então, uma tremenda massa de guerreiros hunos se desloca rapidamente em direção ao nordeste, num rumo que os levará, fatalmente, às imediações de Châlons-en-Champagne, onde o rei Meroveu sofre de amor por sua linda sacerdotisa-guerreira. E, ainda mais rápido, segue-lhe no encalço uma massa ainda maior de soldados visigodos, alanos, burgúndios e romanos.

Os hunos com força total em Châlons

Quando Kyna determinou previamente que os corpos dos doze batedores hunos, abatidos junto à passagem do rio, fossem reunidos num só ponto e queimados, ela tinha três coisas em mente. A primeira era cuidar da higiene, evitando que os cadáveres em decomposição contaminassem o rio. A segunda era dar aos hunos, que veriam de longe a fumaça à medida que se aproximavam, uma idéia de que seus batedores haviam falhado e que os francos eram inimigos tão ou mais cruéis e sanguinários que os próprios hunos. A grande arma dos hunos era, antes de mais nada, o terror. Faziam tais atrocidades com as populações vencidas, que o que menos encontravam era resistência em seu caminho, pois os habitantes dos povoados e cidades mais fracas optavam quase sempre pela fuga em massa, deixando para trás amplos materiais para pilhagem e, não poucas vezes, paióis abarrotados de grãos e campos ainda por colher, com grande quantidade de animais.

A ação daqueles francos naquela cidadela, era algo completamente inédito para os hunos, pois sabiam que os francos não tinham o hábito de queimar seu inimigos. Mas a terceira e mais importante razão de Kyna era suscitar um sentimento de revolta nos hunos, que os enchesse de indignação e idéias de vingança e os levasse a um ataque imediato e direto à fortaleza, com sua temível cavalaria. Era com isso que a sacerdotisa-chefe contava e foi isso exatamente o que aconteceu.

Quando os quase dois mil hunos se aproximaram o suficiente para poder ter certeza que tinham sido os seus batedores o combustível da fogueira, cuja fumaça tinham visto no dia anterior, na direção da fortaleza, todos se encheram de cólera e exigiram dos chefes um ataque imediato, para punir os responsáveis por tal crime hediondo. Os chefes, movidos pelo mesmo desejo de vingança, autorizaram a carga imediata de cavalaria contra a fortaleza.

É preciso entender que a tropa de dois mil hunos era toda ela constituída de cavaleiros com seus arcos, escudos e espadas. Não havia infantaria, todos marchavam a cavalo. Uma situação exatamente oposta a dos combatentes francos que, dentro da cidadela, quase não tinham cavalos, posto que a logística de alimentação de quinhentos cavalos numa condição de cerco extrapolava em muito a capacidade da cidadela. O pequeno exército do rei Meroveu era composto basicamente de infantaria, com uma pequena unidade de setenta arqueiros. Ora, para uma luta em campo aberto, a vantagem dos hunos seria esmagadora, literalmente. Cavalaria contra infantaria. E dois mil contra quinhentos homens.

Por que razão, então, a sacerdotisa-chefe havia feita aquela manobra, visando estimular os hunos a um ataque imediato, a cavalo, contra a fortaleza?

O mais notável e inesperado foi que, no exato momento em que os hunos começaram a avançar a todo galope em direção à passagem do rio, a ponte levadiça foi abaixada e todos os homens em armas dos francos saíram rapidamente e foram se postar a quinhentos metros da cidadela, em linha, esperando os atacantes. Ao verem que o número de guerreiros a enfrentar, num primeiro momento, era tão exíguo, os hunos avançaram ainda mais animados. Aquela era uma cidadela que não comportava nem mil homens armados, não tinha nem espaço, nem instalações, nem logística para tanto. Os espiões visigodos, que se haviam vendido aos hunos meses antes, lhes deram todas essas informações, de forma que os invasores sabiam com o que contar em seu avanço para a fortaleza. Quando todos os hunos cruzaram o rio, eles foram redispostos em linha de ataque outra vez e a carga de cavalaria disparou novamente. A distância ainda era grande demais para permitir o uso de flechas de parte a parte.

Mas foi quando avançaram a galope pela planície, a coisa de menos de cem metros do rio, que os hunos tiveram um grande e terrível surpresa: seus cavalos começaram a parar de repente, ou a chafurdar numa lama muito espessa, ou a afundar em águas mais profundas. Em poucos minutos toda a vantagem da cavalaria huna estava desmanchada. Debaixo do capim gigante, oculta por ele, a planície estava toda ALAGADA! Do alto da torre da muralha norte, Kyna abriu um amplo sorriso. Logo todos compreenderiam porque fizera Meroveu conduzir as ações que levaram à inundação da planície, cinco dias antes.

CONTINUA: A batalha do ‘lago’ Châlons. Os hunos recuam para a outra margem. Meroveu busca conselho com Kyna. Alana deixa Orléans e galopa para Châlons.


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