sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013


O CERCO – 12 
MILTON  MACIEL 
 
Resumo do cap. 11 – No novo ataque que os hunos empreenderam,  no início da tarde, à cidadela dos francos, eles conseguiram descobrir e usar com propriedade as duas passagens estreitas e tortuosas que margeiam o pantanal. Mas, quando arremeteram a galope em direção à muralha, caíram em outra armadilha:  um fosso comprido e profundo, que engoliu quase 200 cavaleiros e seus cavalos. Poucos homens puderam ser resgatados com vida e os hunos, mais uma vez, bateram em retirada. Antes, Vérica, com seu gigantesco arco celta, trespassou o comandante huno com uma flecha enorme. Logo depois, Alana penetrou na cidadela com seus 200 cavaleiros visigodos.

A Deusa dispõe

As três sacerdotisas, depois de se regozijarem pelo reencontro familiar, entraram sozinhas na pequena instalação que foi a elas designada na fortaleza. Ali elas montaram um modesto altar, onde entronizaram todos os símbolos da Deusa. Kyna conduziu suas parentas em uma cerimônia de ritual de agradecimento à Deusa, que durou quase duas horas. Já era noite adiantada quando Kyna a Alana, depois de um rápido intervalo de descanso, no qual nada comeram nem beberam, iniciaram o ritual específico de consulta, direcionado ao futuro de Vérica, no qual procurariam algum a indicação que a envolvesse com o futuro de rei franco Meroveu.  

A Deusa falou a suas sacerdotisas Alana e Kyna, enquanto Vérica esperava na peça contígua, uma vez que não poderia estar presente àquele ritual que dizia respeito a ela. Atendendo sugestão de Kyna, Vérica deitou-se na cama e procurou ver se adormecia. Seria o melhor que ela poderia fazer para ajudar a consulta. Contudo, o coração de Vérica estava em tumulto.

Ela sabia muito bem que a consulta à Deusa envolvia a intenção de rei Meroveu a respeito dela mesma. E ela não sabia ao certo o que queria. Gostava de sentir o imenso interesse que Meroveu tinha nela. Isso a fazia sentir-se forte e confiante. Por outro lado, se era verdade, como lhe afirmara Kyna, que Meroveu estava perdidamente apaixonado por ela, Vérica não sentia a mesma coisa.

O jovem rei dos francos salianos não lhe era uma figura indiferente. Além de gostar de perceber sua solicitude e encantamento, ela o achava interessante, por ser um rei. E, se não sentia amor, nem mesmo incipiente por ele, era verdade, porém, que sentia uma estranha perturbação de natureza física. Ou seja, Vérica o desejava como macho. Era a única na linhagem das sacerdotisas da família que não fora mãe antes dos quinze anos. Na verdade, para sua grande contrariedade, continuava virgem, por determinação da própria Deusa.

Sua avó parira sua mãe aos quatorze anos de idade. E Alana, ainda mais precoce, a tivera ainda aos treze. Vérica sentia intensos desejos físicos, era muito forte, musculosa, ativa e premente em tudo o que sentia e queria. Aprendera desde muito menina a satisfazer com as mãos seus próprios ímpetos sexuais, coisa que descobrira sozinha e naturalmente. Com grande freqüência tinha que fazê-lo na adolescência, sempre imaginando movimentos de uma relação sexual que desconhecia, com um macho belo e desejável, que nunca tinha um rosto definido.

Mas, nos últimos dias, esse macho passara, mais e mais, a ter a cara do rei Meroveu. E Vérica o desejava, imaginava-se com ele em mil jogos amorosos que não conseguia definir claramente quais seriam, apenas que eram carícias e toques e abraços e beijos, em que ela se sentia tocada em todas as partes do seu corpo, exatamente aquelas que suas próprias mãos exploravam com prática e sofreguidão. Para ela estava muito claro o que ela sentia por Meroveu. Era desejo, um agudo e premente desejo. Mas sabia que o sentiria por qualquer outro macho jovem e bonito que se tivesse chegado a ela com a força amorosa que vinha de Meroveu. Podia desejá-lo. Porém não se sentia capaz de amá-lo. Não precisava dele, apenas do seu corpo másculo e musculoso.

Por isso ela estava inquieta, incapaz de atender a sugestão de sua avó e irmã, a sacerdotisa Kyna, que lhe pedira para tentar adormecer enquanto ela e Alana consultavam a Deusa. Vérica não podia fazê-lo. Tinha medo do resultado. Tinha medo que a Deusa aceitasse destiná-la a Meroveu. E, ao mesmo tempo, tinha medo que a Deusa fizesse exatamente o contrário e, por conseguinte, a mandasse afastar-se do objeto do seu desejo físico e de suas fantasias sexuais.

Se fosse dada a Meroveu, seria condenada a um destino terrível. Ela queria ser somente sacerdotisa. Queria homem, sim, era mulher, era muito feminina – até demais – embora fosse mais forte do que grande parte dos homens. Mas não queria um só homem para toda a sua vida. Porque não queria, acima de tudo, ter alguém querendo dominá-la, o que ela não permitiria de forma alguma, ainda que tivesse que enfiar-lhe um punhal no peito.

Poderia ter um homem que a interessasse por um certo tempo, desde que ele não quisesse interferir em sua vida e em sua liberdade. Mas não poderia ter o mesmo homem sempre! Nem sua mãe, nem sua avó o tinham ou tiveram. Foram iniciadas sexualmente em cerimônias celtas, com um homem especial fazendo o papel do gamo sagrado. Engravidaram nessa primeira experiência e pariram, cada uma, uma nova sacerdotisa para a Deusa, como era da Lei. Sua vez chegaria e ela não agüentava mais esperar por isso.

Diversas vezes reclamara com a Avó e esta se limitara a mandá-la ter paciência e esperar pela ordem da Deusa. Só que essa ordem nunca chegava e Vérica já estava perto de fazer dezessete anos, uma idade em que todas as jovens comuns já tinham casado e tido filhos. E em que todas as jovens sacerdotisas já tinham passado pela grande Iniciação e dado uma filha à Deusa, sempre antes de completarem quinze anos. Vérica se sentia humilhada e desatendida pela Deusa. Era uma exceção vergonhosa entre as sacerdotisas e isso a deixava profundamente irritada e impaciente.

Na sala ao lado, a Deusa falava pela voz de Alana e Kyna fazia as perguntas, anotando as orientações. As águas sagradas mostraram o futuro no tripé e trouxeram todas as confirmações. Quando Alana voltou à normalidade e Kyna lhe revelou o que a Deusa determinara, ela deixou-se cair sobre o banco e falou apenas:

– Pobre criança! Justo ela, tão precoce e tão fogosa... Que difícil destino.

– Sim, minha filha. Nossa Vérica vai detestar saber o resultado do fizemos aqui hoje. E vai odiar a idéia de ter que trocar sua condição de sacerdotisa pela de rainha. Pobre criança mesmo. É tudo o que ela jamais desejaria para si. Você acha que devemos contar tudo para ela imediatamente, Alana? Ou devemos prepará-la antes para receber a notícia?

– Eu decido que vocês têm que contar tudo para mim agora mesmo!

As duas não haviam notado que Vérica, percebendo que o ritual da consulta havia chegado ao fim e que sua mãe e sua avó já dialogavam em voz normal, havia transposto a soleira da sala-templo.

Alana então, com um suspiro, iniciou sua fala:

– Minha filha, o que a Deusa determinou é algo que eu nunca vi na vida de uma sacerdotisa. Nem sua avó, que tem muito mais experiência que eu.

– Então fale, mãe. Não adianta querer me poupar de nenhum sofrimento. Nós sabemos que o que Deusa determina é irrecorrível. Ela aceitou dar-me a Meroveu?

– Sim, minha filha – respondeu Alana, já com lágrimas nos olhos.

Vérica deixou-se tombar no chão, ficou sentada sobre as pernas abertas, com o olhar perdido no infinito, seu rosto mostrando uma expressão de crescente desespero. As duas sacerdotisas nada mais disseram, concentrando suas mentes no esforço de atuar como um atenuador para o sofrimento de Vérica, que se avizinhava da explosão. Quando esta veio, fui arrasadora.

A jovem sacerdotisa explodiu por fim numa espécie de grito gutural, um verdadeiro urro de uma fera acuada e ferida, um ruído assustador. Avó e mãe correram a ampará-la com amor, mas a jovem se desvencilhou de ambas e saiu correndo para a noite gaulesa. Ao passar pela porta, apanhou de trás dela sua grande corda de escalada. Rosnou para suas parentas:

– Que ninguém ouse me seguir!

E deitou a correr para a muralha sul. Ali amarrou uma ponta da corda na argola específica para isso e mergulhou pela corda suspensa numa velocidade incrível, até alcançar o solo. Uma vez ali, começou a correr em direção à floresta. Seria lá que haveria de deixar sair o resto da sua dor e do seu tumulto, do seu desespero e da sua revolta.

Na sala-templo, de mãos dadas, as sacerdotisas mãe e avó terminavam, nesse momento, de orar por Vérica. Kyna falou primeiro:

– Pobre menina! Não esperou para nos ouvir até o fim. Esse é o problema com as criaturas jovens demais, são por demais impetuosas.

– Sim, mãe, se ela tivesse esperado para saber tudo o que a Deusa escolheu para ela, certamente sua dor agora seria bem menor. Pobre filha, como é difícil estar no lugar dela agora, minha mãe.

– Vamos voltar a orar e a concentrar nossas mentes em benefício dela. Ela tem pela frente uma longa noite de agonia. E nós não a deixaremos só um único instante. Passaremos a noite aqui trabalhando para ela.

– Sim, mãe e irmã. Comecemos já!

Lá embaixo, longe, dentro escuridão da floresta densa, Vérica avançava como um animal selvagem. Gritava, dava urros a plenos pulmões, esmurrava os troncos das árvores que se opunham a seu avanço. Os bichos grandes, que uma pessoa comum temeria na noite escura da floresta, afastavam-se assustados ante aqueles gritos tenebrosos. Como uma louca, ela brandia seu punhal sacerdotal e desferia golpes no ar para todos os lados. Machucava as árvores e machucava a si mesma. Suas mãos sangravam, sua testa também, mas ela nem sentia esse tipo de dor e ferimento. A ferida maior ela a tinha sangrando por dentro, em sua alma. A Deusa a abandonara! Dera-a a um homem que não era qualquer homem, mas um rei! E, como tal, ele haveria de querer dominá-la e exibi-la como uma mulherzinha frágil qualquer de sua corte. Maldito! Nunca o conseguiria. Se tivesse que servi-lo, nunca se curvaria a seus caprichos e ostentações. Nunca permitiria que ele lhe desse ordens e lhe limitasse espaços e movimentos. E nunca, em hipótese alguma, usaria aquelas roupas ridículas que as mulheres da corte usavam.

À medida que as horas da noite foram avançando, trazendo a madrugada, mais Vérica se sentia espumar de fúria. Era sacerdotisa, não podia desobedecer a Deusa. Teria que encarar viver com aquele homem fraco, um ser ignóbil, que, ao invés de mostrar toda a sua força e fúria nos combates, ficava o tempo inteiro a rodeá-la e a querer exibir-se para ela, sempre com aqueles olhos melosos e súplices, Mas ela sabia que, tão logo soubesse que tinha permissão da Deusa para adonar-se dela, ele se transformaria naquilo que tentam ser todos os homens: um tirano, nada mais. Mas ela não permitiria.

Umas duas horas antes do nascer do sol, Vérica conseguiu dominar um pouco mais sua mente atormentada. Tinha concebido um plano afinal. Sim deitaria com aquele homem, desfrutaria dele sexualmente ao máximo, já que, ao que parecia, aquele seria o seu iniciador sexual – um reles homem franco e, não, o gamo real celta! Ela faria o que a Deusa determinara para ela. Concedida ao rei dos francos, deitaria com ele, aproveitaria seus músculos e sua virilidade. Mas usaria as ervas, jamais deixaria que ele a emprenhasse. E, quando estivesse certa que havia cumprido integralmente a determinação da Deusa, então Meroveu iria provar o aço fino do punhal da Deusa em sua garganta. Ela o eliminaria de sua vida e do eliminaria da própria Terra. E estaria livre para seguir sua vida de sacerdotisa.

CONTINUA

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