O CERCO – 12
MILTON MACIEL
Resumo do cap. 11 – No novo ataque que os hunos empreenderam,
no início da tarde, à cidadela dos
francos, eles conseguiram descobrir e usar com propriedade as duas passagens
estreitas e tortuosas que margeiam o pantanal. Mas, quando arremeteram a galope
em direção à muralha, caíram em outra armadilha: um fosso comprido e profundo, que engoliu quase
200 cavaleiros e seus cavalos. Poucos homens puderam ser resgatados com vida e
os hunos, mais uma vez, bateram em retirada. Antes, Vérica, com seu gigantesco
arco celta, trespassou o comandante huno com uma flecha enorme. Logo depois, Alana penetrou
na cidadela com seus 200 cavaleiros visigodos.
A Deusa dispõe
As três
sacerdotisas, depois de se regozijarem pelo reencontro familiar, entraram
sozinhas na pequena instalação que foi a elas designada na fortaleza. Ali elas
montaram um modesto altar, onde entronizaram todos os símbolos da Deusa. Kyna
conduziu suas parentas em uma cerimônia de ritual de agradecimento à Deusa, que
durou quase duas horas. Já era noite adiantada quando Kyna a Alana, depois de
um rápido intervalo de descanso, no qual nada comeram nem beberam, iniciaram o
ritual específico de consulta, direcionado ao futuro de Vérica, no qual
procurariam algum a indicação que a envolvesse com o futuro de rei franco
Meroveu.
A Deusa falou a
suas sacerdotisas Alana e Kyna, enquanto Vérica esperava na peça contígua, uma
vez que não poderia estar presente àquele ritual que dizia respeito a ela.
Atendendo sugestão de Kyna, Vérica deitou-se na cama e procurou ver se
adormecia. Seria o melhor que ela poderia fazer para ajudar a consulta.
Contudo, o coração de Vérica estava em tumulto.
Ela sabia muito
bem que a consulta à Deusa envolvia a intenção de rei Meroveu a respeito dela
mesma. E ela não sabia ao certo o que queria. Gostava de sentir o imenso
interesse que Meroveu tinha nela. Isso a fazia sentir-se forte e confiante. Por
outro lado, se era verdade, como lhe afirmara Kyna, que Meroveu estava
perdidamente apaixonado por ela, Vérica não sentia a mesma coisa.
O jovem rei dos
francos salianos não lhe era uma figura indiferente. Além de gostar de perceber
sua solicitude e encantamento, ela o achava interessante, por ser um rei. E, se
não sentia amor, nem mesmo incipiente por ele, era verdade, porém, que sentia
uma estranha perturbação de natureza física. Ou seja, Vérica o desejava como
macho. Era a única na linhagem das sacerdotisas da família que não fora mãe antes
dos quinze anos. Na verdade, para sua grande contrariedade, continuava virgem,
por determinação da própria Deusa.
Sua avó parira
sua mãe aos quatorze anos de idade. E Alana, ainda mais precoce, a tivera ainda
aos treze. Vérica sentia intensos desejos físicos, era muito forte, musculosa,
ativa e premente em tudo o que sentia e queria. Aprendera desde muito menina a
satisfazer com as mãos seus próprios ímpetos sexuais, coisa que descobrira
sozinha e naturalmente. Com grande freqüência tinha que fazê-lo na adolescência,
sempre imaginando movimentos de uma relação sexual que desconhecia, com um
macho belo e desejável, que nunca tinha um rosto definido.
Mas, nos últimos
dias, esse macho passara, mais e mais, a ter a cara do rei Meroveu. E Vérica o
desejava, imaginava-se com ele em mil jogos amorosos que não conseguia definir
claramente quais seriam, apenas que eram carícias e toques e abraços e beijos,
em que ela se sentia tocada em todas as partes do seu corpo, exatamente aquelas
que suas próprias mãos exploravam com prática e sofreguidão. Para ela estava
muito claro o que ela sentia por Meroveu. Era desejo, um agudo e premente
desejo. Mas sabia que o sentiria por qualquer outro macho jovem e bonito que se
tivesse chegado a ela com a força amorosa que vinha de Meroveu. Podia
desejá-lo. Porém não se sentia capaz de amá-lo. Não precisava dele, apenas do
seu corpo másculo e musculoso.
Por isso ela
estava inquieta, incapaz de atender a sugestão de sua avó e irmã, a sacerdotisa
Kyna, que lhe pedira para tentar adormecer enquanto ela e Alana consultavam a
Deusa. Vérica não podia fazê-lo. Tinha medo do resultado. Tinha medo que a
Deusa aceitasse destiná-la a Meroveu. E, ao mesmo tempo, tinha medo que a Deusa
fizesse exatamente o contrário e, por conseguinte, a mandasse afastar-se do
objeto do seu desejo físico e de suas fantasias sexuais.
Se fosse dada a
Meroveu, seria condenada a um destino terrível. Ela queria ser somente
sacerdotisa. Queria homem, sim, era mulher, era muito feminina – até demais –
embora fosse mais forte do que grande parte dos homens. Mas não queria um só
homem para toda a sua vida. Porque não queria, acima de tudo, ter alguém
querendo dominá-la, o que ela não permitiria de forma alguma, ainda que tivesse
que enfiar-lhe um punhal no peito.
Poderia ter um
homem que a interessasse por um certo tempo, desde que ele não quisesse
interferir em sua vida e em sua liberdade. Mas não poderia ter o mesmo homem
sempre! Nem sua mãe, nem sua avó o tinham ou tiveram. Foram iniciadas sexualmente
em cerimônias celtas, com um homem especial fazendo o papel do gamo sagrado.
Engravidaram nessa primeira experiência e pariram, cada uma, uma nova
sacerdotisa para a Deusa, como era da Lei. Sua vez chegaria e ela não agüentava
mais esperar por isso.
Diversas vezes
reclamara com a Avó e esta se limitara a mandá-la ter paciência e esperar pela
ordem da Deusa. Só que essa ordem nunca chegava e Vérica já estava perto de
fazer dezessete anos, uma idade em que todas as jovens comuns já tinham casado
e tido filhos. E em que todas as jovens sacerdotisas já tinham passado pela
grande Iniciação e dado uma filha à Deusa, sempre antes de completarem quinze
anos. Vérica se sentia humilhada e desatendida pela Deusa. Era uma exceção
vergonhosa entre as sacerdotisas e isso a deixava profundamente irritada e
impaciente.
Na sala ao lado,
a Deusa falava pela voz de Alana e Kyna fazia as perguntas, anotando as
orientações. As águas sagradas mostraram o futuro no tripé e trouxeram todas as
confirmações. Quando Alana voltou à normalidade e Kyna lhe revelou o que a
Deusa determinara, ela deixou-se cair sobre o banco e falou apenas:
– Pobre criança!
Justo ela, tão precoce e tão fogosa... Que difícil destino.
– Sim, minha
filha. Nossa Vérica vai detestar saber o resultado do fizemos aqui hoje. E vai
odiar a idéia de ter que trocar sua condição de sacerdotisa pela de rainha.
Pobre criança mesmo. É tudo o que ela jamais desejaria para si. Você acha que
devemos contar tudo para ela imediatamente, Alana? Ou devemos prepará-la antes
para receber a notícia?
– Eu decido que
vocês têm que contar tudo para mim agora mesmo!
As duas não
haviam notado que Vérica, percebendo que o ritual da consulta havia chegado ao
fim e que sua mãe e sua avó já dialogavam em voz normal, havia transposto a soleira
da sala-templo.
Alana então, com
um suspiro, iniciou sua fala:
– Minha filha, o
que a Deusa determinou é algo que eu nunca vi na vida de uma sacerdotisa. Nem
sua avó, que tem muito mais experiência que eu.
– Então fale,
mãe. Não adianta querer me poupar de nenhum sofrimento. Nós sabemos que o que
Deusa determina é irrecorrível. Ela aceitou dar-me a Meroveu?
– Sim, minha
filha – respondeu Alana, já com lágrimas nos olhos.
Vérica deixou-se
tombar no chão, ficou sentada sobre as pernas abertas, com o olhar perdido no
infinito, seu rosto mostrando uma expressão de crescente desespero. As duas
sacerdotisas nada mais disseram, concentrando suas mentes no esforço de atuar
como um atenuador para o sofrimento de Vérica, que se avizinhava da explosão. Quando
esta veio, fui arrasadora.
A jovem
sacerdotisa explodiu por fim numa espécie de grito gutural, um verdadeiro urro
de uma fera acuada e ferida, um ruído assustador. Avó e mãe correram a
ampará-la com amor, mas a jovem se desvencilhou de ambas e saiu correndo para a
noite gaulesa. Ao passar pela porta, apanhou de trás dela sua grande corda de
escalada. Rosnou para suas parentas:
– Que ninguém
ouse me seguir!
E deitou a
correr para a muralha sul. Ali amarrou uma ponta da corda na argola específica
para isso e mergulhou pela corda suspensa numa velocidade incrível, até
alcançar o solo. Uma vez ali, começou a correr em direção à floresta. Seria lá
que haveria de deixar sair o resto da sua dor e do seu tumulto, do seu
desespero e da sua revolta.
Na sala-templo,
de mãos dadas, as sacerdotisas mãe e avó terminavam, nesse momento, de orar por
Vérica. Kyna falou primeiro:
– Pobre menina!
Não esperou para nos ouvir até o fim. Esse é o problema com as criaturas jovens
demais, são por demais impetuosas.
– Sim, mãe, se
ela tivesse esperado para saber tudo o que a Deusa escolheu para ela,
certamente sua dor agora seria bem menor. Pobre filha, como é difícil estar no
lugar dela agora, minha mãe.
– Vamos voltar a
orar e a concentrar nossas mentes em benefício dela. Ela tem pela frente uma
longa noite de agonia. E nós não a deixaremos só um único instante. Passaremos
a noite aqui trabalhando para ela.
– Sim, mãe e
irmã. Comecemos já!
Lá embaixo,
longe, dentro escuridão da floresta densa, Vérica avançava como um animal selvagem.
Gritava, dava urros a plenos pulmões, esmurrava os troncos das árvores que se
opunham a seu avanço. Os bichos grandes, que uma pessoa comum temeria na noite
escura da floresta, afastavam-se assustados ante aqueles gritos tenebrosos. Como
uma louca, ela brandia seu punhal sacerdotal e desferia golpes no ar para todos
os lados. Machucava as árvores e machucava a si mesma. Suas mãos sangravam, sua
testa também, mas ela nem sentia esse tipo de dor e ferimento. A ferida maior
ela a tinha sangrando por dentro, em sua alma. A Deusa a abandonara! Dera-a a
um homem que não era qualquer homem, mas um rei! E, como tal, ele haveria de
querer dominá-la e exibi-la como uma mulherzinha frágil qualquer de sua corte.
Maldito! Nunca o conseguiria. Se tivesse que servi-lo, nunca se curvaria a seus
caprichos e ostentações. Nunca permitiria que ele lhe desse ordens e lhe
limitasse espaços e movimentos. E nunca, em hipótese alguma, usaria aquelas
roupas ridículas que as mulheres da corte usavam.
À medida que as
horas da noite foram avançando, trazendo a madrugada, mais Vérica se sentia
espumar de fúria. Era sacerdotisa, não podia desobedecer a Deusa. Teria que
encarar viver com aquele homem fraco, um ser ignóbil, que, ao invés de mostrar
toda a sua força e fúria nos combates, ficava o tempo inteiro a rodeá-la e a
querer exibir-se para ela, sempre com aqueles olhos melosos e súplices, Mas ela
sabia que, tão logo soubesse que tinha permissão da Deusa para adonar-se dela,
ele se transformaria naquilo que tentam ser todos os homens: um tirano, nada
mais. Mas ela não permitiria.
Umas duas horas
antes do nascer do sol, Vérica conseguiu dominar um pouco mais sua mente
atormentada. Tinha concebido um plano afinal. Sim deitaria com aquele homem,
desfrutaria dele sexualmente ao máximo, já que, ao que parecia, aquele seria o
seu iniciador sexual – um reles homem franco e, não, o gamo real celta! Ela
faria o que a Deusa determinara para ela. Concedida ao rei dos francos,
deitaria com ele, aproveitaria seus músculos e sua virilidade. Mas usaria as ervas,
jamais deixaria que ele a emprenhasse. E, quando estivesse certa que havia
cumprido integralmente a determinação da Deusa, então Meroveu iria provar o aço
fino do punhal da Deusa em sua garganta. Ela o eliminaria de sua vida e do
eliminaria da própria Terra. E estaria livre para seguir sua vida de
sacerdotisa.
CONTINUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário