segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013


O CERCO – 9 
MILTON  MACIEL   

Resumo do cap. 8 – O dia seguinte ao do combate do “lago” foi um dia de trégua. Nele, o rei Meroveu recorre à sacerdotisa Kyna e lhe fala de seu amor desesperado por Vérica, neta dela. Mas, como ele mesmo receava, nada pode ser decidido pelas sacerdotisas, mas somente pela própria Deusa. E esta será ouvida, assim que Alana chegar. Pois ela está a caminho de Châlons, pressente-o Kyna, sua mãe. E, isso ela ainda não o sabe, conduzindo uma pequena tropa de 200 cavaleiros visigodos.

Alana mostra sua força -  e sedução

Alana, a jovem sacerdotisa celta, cavalga noite adentro montada em sua fiel Almarak, à frente dos cavaleiros visigodos que o rei Teodorico lhe havia fornecido. Poucas horas atrás, nada disso tinha ainda passado por sua cabeça. Estava, no início da tarde, profundamente inquieta, porém. Tudo estava bem em Aurelianum (atual Orléans), o rei Teodorico cumprira o acordo assinado com Flavio Aécio e colocara todo o efetivo do seu exército visigodo, exceto a guarnição que protegia a capital, Toulouse, na linha de resistência ao avanço dos hunos, estes conduzidos por Átila em pessoa. E o exército aliado, superando ao do rei dos hunos em número e equipamentos, havia feito com que este desistisse de sustentar um combate aberto, onde, muito provavelmente poderia ser derrotado.

O comandante huno resolveu que o melhor a fazer seria buscar a junção com o restante de suas tropas, que, depois de destruírem Metz, estavam avançando lentamente em direção a Lutécia (atual Paris). Juntos, os dois contingentes poderiam enfrentar o exército aliado com excelentes chances de sucesso.

Por isso Átila se deslocava agora, lentamente, com seus homens em direção a Catalauni (atual Châlons-em-Champagne), onde poderiam ultrapassar o rio Marne e seguir em direção a Metz e Paris. Seu exército não podia ter um deslocamento veloz porque transportava consigo todo o gigantesco botim que os hunos haviam recolhido em suas pilhagens ao longo de todo o território gaulês que conseguiram ocupar. Marchavam como marcharia um abade gordo, depois de um lauto banquete, e ainda levando um enorme saco de provisões às costas.

Já fazia dois dias que caminhavam, com um destacamento de cavalaria à frente, como batedores, e as pesadas máquinas de guerra sendo empurradas e puxadas na retaguarda, junto com a interminável quantidade de carroças apinhadas de objetos pilhados e de víveres para as tropas. Enquanto isso acontecia, os aliados, distribuídos no grande acampamento em frente a Aurelianum (Orléans), discutiam, em reuniões que se sucediam intermináveis, sem conseguir chegar a um acordo. Para Teodorico, rei dos visigodos e Gondioc, rei dos Burgúndios, é melhor deixar que os hunos batam em retirada e deixem o solo gaulês, cruzando o Reno e retornando para suas terras na atual Hungria. Assim evitariam todo um imenso dispêndio de recursos e vidas, podendo dispersar os exércitos.

Mas Flávio Aécio conhece muito bem os hunos e está também mais bem informado, por seu serviço de inteligência, que os chefes bárbaros aliados. Ele tem informações precisas sobre o grande contingente huno que está marchando para Paris. E sabe que, se Átila conseguir alcançá-lo, retornará ao sul com uma força praticamente inexpugnável. Mas, apesar de toda a sua argumentação, não conseguia convencer os chefes aliados. Foi preciso que recebesse uma ajuda da providência divina, para que pudesse ser atendido enfim por seus interlocutores.

Estavam todos os chefes e seus assessores reunidos, desta vez no grande salão do rei Teodorico, no pequeno palácio de governo em Orléans, no mais acalorado das discussões, quando, de repente, a grande porta de suas folhas foi aberta com estardalhaço e uma pessoa entrou, sem que os guardas do lado de fora fizessem a menor menção de impedir o seu acesso. Era por volta de duas da tarde.

Os presentes se alvoroçaram: É a sacerdotisa, disse Aécio! É a amante do rei, falou outro chefe. É a concubina de Teodorico, gritou alto, rindo, um capitão dos burgúndios, Merval. No mesmo instante, Alana avançou para ele, com três saltos surpreendentes, e vibrou-lhe uma violenta bofetada na cara, que o jogou estatelado no chão. O homem ergueu-se furioso e correu para pegar sua espada, que estava apoiada à parede de entrada. Mas antes que ele pudesse alcançá-la, a sacerdotisa saltou como um felino sobre ele, montou em suas costas, trançou as pernas sobre os joelhos dele e enfiou-lhe aponta de um punhal, pela frente, no pescoço. O capitão burgúndio estacou, completamente imóvel, sentindo a ponta da arma cortar-lhe levemente a pele  e a carne. Bastaria que a mulher fizesse um gesto, e sua vida estaria liquidada. A sacerdotisa então falou::

– O que que eu sou do rei, senhor?

– É... É... Ahnn... Súdita?...

Todos os presentes explodiram numa gargalhada geral, o que fez Merval considerar deixar-se matar por aquela louca imediatamente, o que seria bem melhor do que passar pelo vexame por que estava passando agora. A mulher continuava encarapitada em suas costas, o punhal continuava com a lâmina lanhando seu pescoço, algumas gotas se líquido quente começavam a cair em sua túnica militar, manchando-a de vermelho.

O rei Teodorico I achou que era hora de ele intervir:

– Senhores, não podem dar ouvidos a boatos, a fuxicos de comadres palacianas. Não se igualem a essa gente rasteira e maliciosa. Nada houve, jamais, de intimidade entre a sacerdotisa da Deusa e o rei do visigodos. Isso tudo é invenção de criadas maliciosas. Será que meus aliados preferem acreditar nessas imundas criaturas a crer no rei dos visigodos?

Alana ficou surpresa com a postura do rei. Jamais poderia esperar isso da parte dele. Suas palavras acabavam de botar por terra toda a onda de boatos que se espalhava pela cidade. Ainda teria que agradecer ao rei por suas palavras. Nesse momento, também o rei dos Burgúndios, Gondioc, se fez ouvir, com sua voz rouca e anasalada:

– Suplico-lhe, sacerdotisa, que perdoe meu capitão. Eu lhe peço desculpas em nome de todo meu povo. E o capitão também vai, em seu próprio nome, tão pronto a senhora o solte, pedir perdão à sacerdotisa.

– Além do que, sacerdotisa Alana, não vamos poder mandar o homem no encalço dos hunos, com um punhal atravessado até o cabo no pescoço – era o romano Aécio quem falava isso, divertido.

Alana saltou das costas do capitão burgúndio e ficou esperando a reação dele. Como Merval não se movesse e apenas a encarasse com ódio, ela mesma andou até a parede e, pegando a espada a que ele se dirigia instantes antes, arrancou-a da bainha e arremessou-a ao homem que, automaticamente, a agarrou e empunhou. Então a sacerdotisa falou, desafiadora, para surpresa de todos, enquanto segurava o punhal bem alto em frente a sua cabeça:

– Então, capitão, ainda quer lutar? Pois venha, então, venha enfrentar o punhal da Deusa.

O homem ficou sem ação, olhou para os lados contrafeito. E encontrou os olhos duros de seu rei, Gondioc, que lhe fez uma indicação, com gesto enérgico:

– Ao chão, Merval. De joelhos! E peça perdão com muitos modos à sacerdotisa celta. Já!

O capitão burgúndio caiu pesadamente de joelhos em frente a Alana, que o observava agora sem qualquer olhar de hostilidade. O homem balbuciou, envergonhado pelo horrível de sua situação:

– Se... Senhora, eu lhe peço perdão, não queria ofendê-la.

– Mas ofendeu, capitão! Pense mais antes de falar. Contudo, como o senhor me pede com modos, eu o perdôo. Em meu nome e, muito mais importante para o seu futuro, em nome da Deusa.

Só então passou pela mente do militar burgúndio que, talvez, fosse perigoso ofender uma sacerdotisa, porque isso poderia ser considerado uma ofensa à própria divindade que ela representava. E deusas enfurecidas são imensamente mais perigosas que as espadas e flechas do inimigo.

Alana abaixou-se e, mais uma vez surpreendendo a todos os presentes, tirou de uma das mangas da veste sacerdotal um lenço muito branco e, com ele, limpou o sangue que escorria levemente do corte no pescoço do burgúndio. Podia ser só coincidência, mas o sangue parou de correr imediatamente, o que deixou o capitão impressionadíssimo.

Então a sacerdotisa da Deusa segurou o capitão por um dos braços e o ajudou a se levantar. Nesse momento, pela primeira vez, o homem burgúndio ficou frente a frente com o par de olhos muito azuis e, agora, muito serenos de Alana, Só então reparou em toda a sua beleza, em seus incríveis cabelos ruivo-dourados. Só então sentiu a incrível força que vinha do espírito daquela criatura tão especial. Quando terminou de se erguer, um segundo depois de ter olhado dentro daqueles olhos, Merval esqueceu toda a hostilidade e toda a vergonha que havia sentido. O homem que estava em pé agora, contemplando aquela mulher com perplexidade, era um homem perdidamente ... apaixonado.

Alana desviou-se do capitão e seu olhar embevecido e caminhou em direção ao rei Teodorico:

– Perdoe, majestade, se interrompi a reunião dessa forma intempestiva, mas a gravidade do assunto o exigia. Por favor, não queira punir suas sentinelas, eu usei certos... digamos,  artifícios, para passar por esse pobres homens, não foi culpa deles. Ah, e quero desde já lhe agradecer pelas palavras de esclarecimento para seus convidados, a respeito desse boato infeliz que corre pela cidade.

– Ora, sacerdotisa Alana, nada me deu mais prazer do que restabelecer a verdade e exigir o respeito que a senhora merece de todos. Quem, neste reino, ousar falar, sobre esse lamentável equívoco, algo diferente do que eu disse hoje, essa criatura será terrivelmente castigada. Mas, por favor, sacerdotisa, agora fiquei preocupado: que assunto tão grave é esse que a trouxe à minha sala tão intempestivamente?

– É a perda de tempo, majestade. A lastimável perda de tempo. Enquanto os senhores discutem em intermináveis rodadas de palavrórios, regadas a vinho, o esperto Átila já partiu  em busca de reforços e lhes leva já dois dias de dianteira. Se o deixarem escapar, os senhores e seus reinos estarão perdidos para sempre. Os hunos voltarão multiplicados em número e força de destruição e todos vocês e seus povos e terras serão irremediavelmente arrasados.

 – Mas como a senhora pode afirmar isso? Baseada em que informações? Pois se meus espiões, os melhores da Gália, não me mandaram nenhum aviso alarmante? – a voz rouca de Gondioc fazia-se ouvir novamente.

– Seus espiões já foram apanhados e executados pelos hunos, majestade, por isso não lhe mandam avisos reais. Os bilhetes que vocês recebem, são forjados pelos próprios hunos, e lhe transmitem dados totalmente errados.

– Será? Uma coisa assim pode acontecer?

– Se a sacerdotisa Alana fala isso, então eu acredito! – e essa afirmação arrancou um “oohhh!” generalizado, quando todos constataram quem era o homem que a pronunciara: ninguém menos do que o capitão Merval, o da cicatriz vermelha no pescoço.

O general romano Aécio aproveitou a deixa então:

– Estão vendo, seus cabeçudos, teimosos. É isso que eu estou tentando lhes dizer desde anteontem! Meus espiões estão bem vivos e eles me mandam informações preciosas quase todos os dias.

– Mas qual fonte de informações da jovem sacerdotisa? – ainda quis objetar, mais reticente, o rei dos burgúndios.

– A Deusa, senhor. A Deusa que me permite tudo ver no tripé sagrado, na água poderosa.

– Ora, um tripé com água, francamente, minha senhora! – quem dizia essas palavras com desdém na voz era Gédiac, conselheiro do rei burgúndio.

– Um tripé com água, sim senhor! E mais a minha intuição, que pode prescindir de um tripé o mais das vezes. Como agora, senhor Gédiac, quando vejo que a jovem Adistal está grávida de seis meses e o senhor sabe muito bem quem é o pai dessa criança.

Gédiac sentiu-se estremecer. Muitos dos burgúndios ali conheciam a moça Adistal, filha do irmão do rei. E sabiam que ele estivera por uns tempos hospedada na casa de Gédiac. Maldita sacerdotisa, em má hora se atrevera a contestá-la. Agora sua carreira e, provavelmente, sua própria vida estavam em perigo. Como convencer o rei Gondioc que o pai não podia ser ele, se a verdade era exatamente o contrário?

Flávio Aécio retomou a palavra, para aproveitar a vantagem que detinha agora:

– Eu que sou romano, aprendi há muito tempo a confiar cegamente nas sacerdotisas celtas e sua fantástica vidência, em seus poderes infalíveis. Se vocês mesmos são capazes de duvidar ainda, depois das demonstrações que Alana acaba de lhes dar, então...

 – Sim, sim – gritou afoito Merval – Inclusive a demonstração de força e de poder comigo mesmo. Ela me subjugou, poderia me matar e me poupou. E depois todos viram: ela fez meu sangue estancar! 

– Bem, senhores, o que vocês vão resolver não é assunto meu. O que eu vim fazer aqui, rei Teodorico é simples: vim lhe pedir um pequeno destacamento de cavaleiros visigodos muito bem treinados, capazes de enfrentar cavaleiros hunos em campo aberto!

– E por que razão, minha cara?

– Porque a guarnição de Châlons está sendo atacada por um grupo de cerca de 2000 hunos. A guarnição é pequena e não tem cavaleiros, não pode enfrentar os hunos em campo aberto, terão que resistir ao cerco que lhe será imposto. Mas eu, com apenas 200 cavaleiros dos melhores, posso dar um jeito nisso. Posso contar com seus homens, meu rei?

– Certamente que sim, sacerdotisa Alana. Embora eu não tenha a menor idéia do que se passa e do que a senhora pretende fazer, pode ir agora mesmo, com meu general Lidéric aqui presente e ele providenciará tudo para a senhora. Quando pretende sair?

– Esta noite mesmo, majestade, assim que seu destacamento estiver pronto.

– Mas por que essa pressa?

– Porque, como lhes disse, meu rei, os ataques em Châlons já começaram. E eu sei que tenho que chegar lá o mais depressa possível, para ajudar na defesa. Por outro lado, os senhores já perderam tempo demais e Átila, embora avance com um pouco de lentidão, já lhes leva grande dianteira. Dois dias mais que percam, e não poderão mais alcançá-lo a tempo, antes quer cruze o Marne. Não esqueçam que daqui até Châlons há uma distância de 200 quilômetros. Eu levarei meus cavaleiros pela noite, sairemos da estrada principal quando estivermos nos aproximando da retaguarda de Átila e sua gente. Isso deverá ocorrer, com a velocidade que vamos galopar, umas duas horas antes do nascer do sol.

Os homens no salão estavam todos de queixo caído com as ações planejadas por aquela moça, de aparência tão enganadoramente frágil e dócil agora. Alana, ignorando-os prosseguiu:

– Daí em diante temos uma dura jornada pela mata e pelos desfiladeiros das primeiras gargantas do rio. Mas poderemos voltar ao leito do caminho principal assim que tivermos ultrapassado, pela mata, a vanguarda dos cavaleiros hunos. E agora, vamos, general Lidéric, temos muito pouco tempo para tratar de escolher os homens e os cavalos e fazer todos os preparativos. Obrigado, meu rei. Até breve, em Châlons, para todos os o demais.

– Mas porque Châlons para nós também, sacerdotisa? – quis saber Aécio, o romano.

– Os Campos Catalaúnicos os esperam, soldados. É tudo que posso dizer! Mexam-se, parem de beber e discutir como meninos, e tratem de avançar: a glória os espera em Châlons. Ou a vergonha e a destruição de seus lares, se continuarem aqui. Vamos embora, general.

E, num último ato, que deixou todos os homens estupefatos e se lambendo de desejo, Alana, com um único e rápido golpe da mão direita, arrancou de si a veste branca de sacerdotisa, que foi enrolando no braço enquanto caminhava para a grande porta. De sob a túnica sacerdotal emergiu um corpo de mulher simplesmente perfeito e enlouquecedor, vestido em justas calças celtas de montaria, em couro escuro e flexível, encimadas por uma espécie de blusa curta de cor azul celeste.

A visão daqueles quadris, daqueles glúteos e coxas deixou os homens enlouquecidos, por muito tempo não houve outro assunto na reunião. Sorridente e enigmático, Teodorico observava a todos com ar de superioridade. Havia inventado uma mentira, mas na verdade ele sabia o quanto se fartara naquelas carnes generosas, macias, perfeitas perfumadas. A mulher mais linda que jamais tivera em toda sua longa vida. Sorriu ainda mais, enquanto pensava: Sim, agora até poderia morrer, que morreria feliz, depois dessa experiência tão maravilhosa.

Quando os ânimos se acalmaram um pouco e o traseiro e as coxas de Alana deixaram de ser o único assunto, voltaram o tema da lição que ela havia dado em Merval, repetido principalmente pelo próprio e o assunto vital da perseguição imediata aos hunos.

E, quando este último tema foi novamente discutido com profundidade, todos demonstraram pressa. E a votação, feita com o levantar do braço direito, deu resultado unânime: atacar já! Mentalmente, Flávio Aécio não parava de agradecer à sacerdotisa celta. Muito provavelmente, aquela criatura maravilhosa havia mudado o curso da história para sempre.

CONTINUA

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