O CERCO – 9
MILTON MACIEL
Resumo do cap. 8 – O dia seguinte ao do combate do
“lago” foi um dia de trégua. Nele, o rei Meroveu recorre à sacerdotisa Kyna e
lhe fala de seu amor desesperado por Vérica, neta dela. Mas, como ele mesmo receava,
nada pode ser decidido pelas sacerdotisas, mas somente pela própria Deusa. E
esta será ouvida, assim que Alana chegar. Pois ela está a caminho de Châlons, pressente-o
Kyna, sua mãe. E, isso ela ainda não o sabe, conduzindo uma pequena tropa de 200
cavaleiros visigodos.
Alana mostra sua força - e sedução
Alana, a jovem
sacerdotisa celta, cavalga noite adentro montada em sua fiel Almarak, à frente
dos cavaleiros visigodos que o rei Teodorico lhe havia fornecido. Poucas horas
atrás, nada disso tinha ainda passado por sua cabeça. Estava, no início da
tarde, profundamente inquieta, porém. Tudo estava bem em Aurelianum (atual
Orléans), o rei Teodorico cumprira o acordo assinado com Flavio Aécio e
colocara todo o efetivo do seu exército visigodo, exceto a guarnição que
protegia a capital, Toulouse, na linha de resistência ao avanço dos hunos,
estes conduzidos por Átila em pessoa. E o exército aliado, superando ao do rei
dos hunos em número e equipamentos, havia feito com que este desistisse de sustentar
um combate aberto, onde, muito provavelmente poderia ser derrotado.
O comandante
huno resolveu que o melhor a fazer seria buscar a junção com o restante de suas
tropas, que, depois de destruírem Metz, estavam avançando lentamente em direção
a Lutécia (atual Paris). Juntos, os dois contingentes poderiam enfrentar o
exército aliado com excelentes chances de sucesso.
Por isso Átila
se deslocava agora, lentamente, com seus homens em direção a Catalauni (atual
Châlons-em-Champagne), onde poderiam ultrapassar o rio Marne e seguir em
direção a Metz e Paris. Seu exército não podia ter um deslocamento veloz porque
transportava consigo todo o gigantesco botim que os hunos haviam recolhido em
suas pilhagens ao longo de todo o território gaulês que conseguiram ocupar.
Marchavam como marcharia um abade gordo, depois de um lauto banquete, e ainda
levando um enorme saco de provisões às costas.
Já fazia dois
dias que caminhavam, com um destacamento de cavalaria à frente, como batedores,
e as pesadas máquinas de guerra sendo empurradas e puxadas na retaguarda, junto
com a interminável quantidade de carroças apinhadas de objetos pilhados e de
víveres para as tropas. Enquanto isso acontecia, os aliados, distribuídos no
grande acampamento em frente a Aurelianum (Orléans), discutiam, em reuniões que
se sucediam intermináveis, sem conseguir chegar a um acordo. Para Teodorico,
rei dos visigodos e Gondioc, rei dos Burgúndios, é melhor deixar que os hunos
batam em retirada e deixem o solo gaulês, cruzando o Reno e retornando para
suas terras na atual Hungria. Assim evitariam todo um imenso dispêndio de
recursos e vidas, podendo dispersar os exércitos.
Mas Flávio Aécio
conhece muito bem os hunos e está também mais bem informado, por seu serviço de
inteligência, que os chefes bárbaros aliados. Ele tem informações precisas
sobre o grande contingente huno que está marchando para Paris. E sabe que, se
Átila conseguir alcançá-lo, retornará ao sul com uma força praticamente
inexpugnável. Mas, apesar de toda a sua argumentação, não conseguia convencer
os chefes aliados. Foi preciso que recebesse uma ajuda da providência divina,
para que pudesse ser atendido enfim por seus interlocutores.
Estavam todos os
chefes e seus assessores reunidos, desta vez no grande salão do rei Teodorico,
no pequeno palácio de governo em Orléans, no mais acalorado das discussões,
quando, de repente, a grande porta de suas folhas foi aberta com estardalhaço e
uma pessoa entrou, sem que os guardas do lado de fora fizessem a menor menção
de impedir o seu acesso. Era por volta de duas da tarde.
Os presentes se
alvoroçaram: É a sacerdotisa, disse
Aécio! É a amante do rei, falou outro
chefe. É a concubina de Teodorico, gritou
alto, rindo, um capitão dos burgúndios, Merval. No mesmo instante, Alana
avançou para ele, com três saltos surpreendentes, e vibrou-lhe uma violenta
bofetada na cara, que o jogou estatelado no chão. O homem ergueu-se furioso e
correu para pegar sua espada, que estava apoiada à parede de entrada. Mas antes
que ele pudesse alcançá-la, a sacerdotisa saltou como um felino sobre ele,
montou em suas costas, trançou as pernas sobre os joelhos dele e enfiou-lhe
aponta de um punhal, pela frente, no pescoço. O capitão burgúndio estacou,
completamente imóvel, sentindo a ponta da arma cortar-lhe levemente a pele e a carne. Bastaria que a mulher fizesse um
gesto, e sua vida estaria liquidada. A sacerdotisa então falou::
– O que que eu
sou do rei, senhor?
– É... É...
Ahnn... Súdita?...
Todos os
presentes explodiram numa gargalhada geral, o que fez Merval considerar
deixar-se matar por aquela louca imediatamente, o que seria bem melhor do que
passar pelo vexame por que estava passando agora. A mulher continuava
encarapitada em suas costas, o punhal continuava com a lâmina lanhando seu
pescoço, algumas gotas se líquido quente começavam a cair em sua túnica
militar, manchando-a de vermelho.
O rei Teodorico
I achou que era hora de ele intervir:
– Senhores, não
podem dar ouvidos a boatos, a fuxicos de comadres palacianas. Não se igualem a
essa gente rasteira e maliciosa. Nada houve, jamais, de intimidade entre a
sacerdotisa da Deusa e o rei do visigodos. Isso tudo é invenção de criadas
maliciosas. Será que meus aliados preferem acreditar nessas imundas criaturas a
crer no rei dos visigodos?
Alana ficou
surpresa com a postura do rei. Jamais poderia esperar isso da parte dele. Suas
palavras acabavam de botar por terra toda a onda de boatos que se espalhava
pela cidade. Ainda teria que agradecer ao rei por suas palavras. Nesse momento,
também o rei dos Burgúndios, Gondioc, se fez ouvir, com sua voz rouca e
anasalada:
– Suplico-lhe,
sacerdotisa, que perdoe meu capitão. Eu lhe peço desculpas em nome de todo meu
povo. E o capitão também vai, em seu próprio nome, tão pronto a senhora o
solte, pedir perdão à sacerdotisa.
– Além do que,
sacerdotisa Alana, não vamos poder mandar o homem no encalço dos hunos, com um
punhal atravessado até o cabo no pescoço – era o romano Aécio quem falava isso,
divertido.
Alana saltou das
costas do capitão burgúndio e ficou esperando a reação dele. Como Merval não se
movesse e apenas a encarasse com ódio, ela mesma andou até a parede e, pegando
a espada a que ele se dirigia instantes antes, arrancou-a da bainha e
arremessou-a ao homem que, automaticamente, a agarrou e empunhou. Então a
sacerdotisa falou, desafiadora, para surpresa de todos, enquanto segurava o
punhal bem alto em frente a sua cabeça:
– Então,
capitão, ainda quer lutar? Pois venha, então, venha enfrentar o punhal da
Deusa.
O homem ficou
sem ação, olhou para os lados contrafeito. E encontrou os olhos duros de seu
rei, Gondioc, que lhe fez uma indicação, com gesto enérgico:
– Ao chão,
Merval. De joelhos! E peça perdão com muitos modos à sacerdotisa celta. Já!
O capitão
burgúndio caiu pesadamente de joelhos em frente a Alana, que o observava agora
sem qualquer olhar de hostilidade. O homem balbuciou, envergonhado pelo
horrível de sua situação:
– Se... Senhora,
eu lhe peço perdão, não queria ofendê-la.
– Mas ofendeu,
capitão! Pense mais antes de falar. Contudo, como o senhor me pede com modos,
eu o perdôo. Em meu nome e, muito mais importante para o seu futuro, em nome da
Deusa.
Só então passou
pela mente do militar burgúndio que, talvez, fosse perigoso ofender uma
sacerdotisa, porque isso poderia ser considerado uma ofensa à própria divindade
que ela representava. E deusas enfurecidas são imensamente mais perigosas que
as espadas e flechas do inimigo.
Alana abaixou-se
e, mais uma vez surpreendendo a todos os presentes, tirou de uma das mangas da
veste sacerdotal um lenço muito branco e, com ele, limpou o sangue que escorria
levemente do corte no pescoço do burgúndio. Podia ser só coincidência, mas o
sangue parou de correr imediatamente, o que deixou o capitão
impressionadíssimo.
Então a
sacerdotisa da Deusa segurou o capitão por um dos braços e o ajudou a se
levantar. Nesse momento, pela primeira vez, o homem burgúndio ficou frente a
frente com o par de olhos muito azuis e, agora, muito serenos de Alana, Só
então reparou em toda a sua beleza, em seus incríveis cabelos ruivo-dourados.
Só então sentiu a incrível força que vinha do espírito daquela criatura tão
especial. Quando terminou de se erguer, um segundo depois de ter olhado dentro
daqueles olhos, Merval esqueceu toda a hostilidade e toda a vergonha que havia
sentido. O homem que estava em pé agora, contemplando aquela mulher com perplexidade,
era um homem perdidamente ... apaixonado.
Alana desviou-se
do capitão e seu olhar embevecido e caminhou em direção ao rei Teodorico:
– Perdoe,
majestade, se interrompi a reunião dessa forma intempestiva, mas a gravidade do
assunto o exigia. Por favor, não queira punir suas sentinelas, eu usei
certos... digamos, artifícios, para
passar por esse pobres homens, não foi culpa deles. Ah, e quero desde já lhe
agradecer pelas palavras de esclarecimento para seus convidados, a respeito
desse boato infeliz que corre pela cidade.
– Ora,
sacerdotisa Alana, nada me deu mais prazer do que restabelecer a verdade e
exigir o respeito que a senhora merece de todos. Quem, neste reino, ousar
falar, sobre esse lamentável equívoco, algo diferente do que eu disse hoje,
essa criatura será terrivelmente castigada. Mas, por favor, sacerdotisa, agora
fiquei preocupado: que assunto tão grave é esse que a trouxe à minha sala tão
intempestivamente?
– É a perda de tempo,
majestade. A lastimável perda de tempo. Enquanto os senhores discutem em
intermináveis rodadas de palavrórios, regadas a vinho, o esperto Átila já
partiu em busca de reforços e lhes leva
já dois dias de dianteira. Se o deixarem escapar, os senhores e seus reinos
estarão perdidos para sempre. Os hunos voltarão multiplicados em número e força
de destruição e todos vocês e seus povos e terras serão irremediavelmente
arrasados.
– Mas como a senhora pode afirmar isso? Baseada
em que informações? Pois se meus espiões, os melhores da Gália, não me mandaram
nenhum aviso alarmante? – a voz rouca de Gondioc fazia-se ouvir novamente.
– Seus espiões
já foram apanhados e executados pelos hunos, majestade, por isso não lhe mandam
avisos reais. Os bilhetes que vocês recebem, são forjados pelos próprios hunos,
e lhe transmitem dados totalmente errados.
– Será? Uma
coisa assim pode acontecer?
– Se a
sacerdotisa Alana fala isso, então eu acredito! – e essa afirmação arrancou um
“oohhh!” generalizado, quando todos
constataram quem era o homem que a pronunciara: ninguém menos do que o capitão
Merval, o da cicatriz vermelha no pescoço.
O general romano
Aécio aproveitou a deixa então:
– Estão vendo,
seus cabeçudos, teimosos. É isso que eu estou tentando lhes dizer desde
anteontem! Meus espiões estão bem vivos e eles me mandam informações preciosas
quase todos os dias.
– Mas qual fonte
de informações da jovem sacerdotisa? – ainda quis objetar, mais reticente, o
rei dos burgúndios.
– A Deusa,
senhor. A Deusa que me permite tudo ver no tripé sagrado, na água poderosa.
– Ora, um tripé
com água, francamente, minha senhora! – quem dizia essas palavras com desdém na
voz era Gédiac, conselheiro do rei burgúndio.
– Um tripé com
água, sim senhor! E mais a minha intuição, que pode prescindir de um tripé o
mais das vezes. Como agora, senhor Gédiac, quando vejo que a jovem Adistal está
grávida de seis meses e o senhor sabe muito bem quem é o pai dessa criança.
Gédiac sentiu-se
estremecer. Muitos dos burgúndios ali conheciam a moça Adistal, filha do irmão
do rei. E sabiam que ele estivera por uns tempos hospedada na casa de Gédiac.
Maldita sacerdotisa, em má hora se atrevera a contestá-la. Agora sua carreira
e, provavelmente, sua própria vida estavam em perigo. Como convencer o rei
Gondioc que o pai não podia ser ele, se a verdade era exatamente o contrário?
Flávio Aécio
retomou a palavra, para aproveitar a vantagem que detinha agora:
– Eu que sou
romano, aprendi há muito tempo a confiar cegamente nas sacerdotisas celtas e
sua fantástica vidência, em seus poderes infalíveis. Se vocês mesmos são
capazes de duvidar ainda, depois das demonstrações que Alana acaba de lhes dar,
então...
– Sim, sim – gritou afoito Merval – Inclusive
a demonstração de força e de poder comigo mesmo. Ela me subjugou, poderia me
matar e me poupou. E depois todos viram: ela fez meu sangue estancar!
– Bem, senhores,
o que vocês vão resolver não é assunto meu. O que eu vim fazer aqui, rei
Teodorico é simples: vim lhe pedir um pequeno destacamento de cavaleiros
visigodos muito bem treinados, capazes de enfrentar cavaleiros hunos em campo
aberto!
– E por que
razão, minha cara?
– Porque a
guarnição de Châlons está sendo atacada por um grupo de cerca de 2000 hunos. A
guarnição é pequena e não tem cavaleiros, não pode enfrentar os hunos em campo
aberto, terão que resistir ao cerco que lhe será imposto. Mas eu, com apenas 200
cavaleiros dos melhores, posso dar um jeito nisso. Posso contar com seus
homens, meu rei?
– Certamente que
sim, sacerdotisa Alana. Embora eu não tenha a menor idéia do que se passa e do
que a senhora pretende fazer, pode ir agora mesmo, com meu general Lidéric aqui
presente e ele providenciará tudo para a senhora. Quando pretende sair?
– Esta noite
mesmo, majestade, assim que seu destacamento estiver pronto.
– Mas por que
essa pressa?
– Porque, como
lhes disse, meu rei, os ataques em Châlons já começaram. E eu sei que tenho que
chegar lá o mais depressa possível, para ajudar na defesa. Por outro lado, os
senhores já perderam tempo demais e Átila, embora avance com um pouco de
lentidão, já lhes leva grande dianteira. Dois dias mais que percam, e não
poderão mais alcançá-lo a tempo, antes quer cruze o Marne. Não esqueçam que
daqui até Châlons há uma distância de 200 quilômetros. Eu levarei meus
cavaleiros pela noite, sairemos da estrada principal quando estivermos nos
aproximando da retaguarda de Átila e sua gente. Isso deverá ocorrer, com a
velocidade que vamos galopar, umas duas horas antes do nascer do sol.
Os homens no
salão estavam todos de queixo caído com as ações planejadas por aquela moça, de
aparência tão enganadoramente frágil e dócil agora. Alana, ignorando-os
prosseguiu:
– Daí em diante
temos uma dura jornada pela mata e pelos desfiladeiros das primeiras gargantas
do rio. Mas poderemos voltar ao leito do caminho principal assim que tivermos
ultrapassado, pela mata, a vanguarda dos cavaleiros hunos. E agora, vamos,
general Lidéric, temos muito pouco tempo para tratar de escolher os homens e os
cavalos e fazer todos os preparativos. Obrigado, meu rei. Até breve, em Châlons,
para todos os o demais.
– Mas porque
Châlons para nós também, sacerdotisa? – quis saber Aécio, o romano.
– Os Campos
Catalaúnicos os esperam, soldados. É tudo que posso dizer! Mexam-se, parem de
beber e discutir como meninos, e tratem de avançar: a glória os espera em Châlons.
Ou a vergonha e a destruição de seus lares, se continuarem aqui. Vamos embora,
general.
E, num último
ato, que deixou todos os homens estupefatos e se lambendo de desejo, Alana, com
um único e rápido golpe da mão direita, arrancou de si a veste branca de
sacerdotisa, que foi enrolando no braço enquanto caminhava para a grande porta.
De sob a túnica sacerdotal emergiu um corpo de mulher simplesmente perfeito e
enlouquecedor, vestido em justas calças celtas de montaria, em couro escuro e
flexível, encimadas por uma espécie de blusa curta de cor azul celeste.
A visão daqueles
quadris, daqueles glúteos e coxas deixou os homens enlouquecidos, por muito
tempo não houve outro assunto na reunião. Sorridente e enigmático, Teodorico
observava a todos com ar de superioridade. Havia inventado uma mentira, mas na
verdade ele sabia o quanto se fartara naquelas carnes generosas, macias,
perfeitas perfumadas. A mulher mais linda que jamais tivera em toda sua longa
vida. Sorriu ainda mais, enquanto pensava: Sim,
agora até poderia morrer, que morreria feliz, depois dessa experiência tão
maravilhosa.
Quando os ânimos
se acalmaram um pouco e o traseiro e as coxas de Alana deixaram de ser o único
assunto, voltaram o tema da lição que ela havia dado em Merval, repetido principalmente
pelo próprio e o assunto vital da perseguição imediata aos hunos.
E, quando este
último tema foi novamente discutido com profundidade, todos demonstraram
pressa. E a votação, feita com o levantar do braço direito, deu resultado
unânime: atacar já! Mentalmente, Flávio Aécio não parava de agradecer à
sacerdotisa celta. Muito provavelmente, aquela criatura maravilhosa havia
mudado o curso da história para sempre.
CONTINUA
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