MILTON MACIEL
Resumo do cap 6: Em Châlons, o rei Meroveu passa uma
noite de cão no alto da muralha, consciente de estar apaixonado pela jovem
sacerdotisa-guerreira Vérica. E receoso de que não terá qualquer chance com
ela, pois ele depende da aceitação não só da moça, mas das outras duas
sacerdotisas e da própria Deusa. Em Orléans, Átila chega com 80 mil homens e quando
decide atacar a cidade, descobre que está sendo enfrentado por um exército
maior que o seu, que tem, além dos visigodos, romanos, burgúndios e alanos.
Átila bate em retirada rumo ao nordeste. Em Châlons, chegam os 2000 hunos que
vão tomar conta da fortaleza. E são recebidos com mais uma “surpresa” de Kyna.
A batalha do
“lago” Châlons
Enquanto os
cavaleiros hunos começam a se debater dentro da área alagada na margem sul do
rio, Kyna repassa com Vérica o planejamento prévio daquela ação de guerra.
– Está
funcionando, avó! Veja, o ímpeto da cavalaria huna foi completamente detido.
Como será que eles vão reagir agora?
– Ora, criança,
eles vão conseguir atravessar o ‘lago’ que nós criamos para eles, é só uma
questão de tempo. Mas, por enquanto, eles estão completamente confusos e
tratando apenas de lograr êxito na travessia sob condições tão adversas, com as
quais eles não podiam contar. Essa desorganização não é nada boa para eles,
porque os deixa vulneráveis aos nossos arqueiros, em primeiro lugar e, a
seguir, aos nossos lanceiros. Veja que eles não têm como empreender uma carga,
aquele terrível avanço de cavaleiros em linhas, com uma enorme velocidade.
Neste momento eles estão dispersos por toda a área alagada e têm muita
dificuldade de controlar suas montarias.
– Sim, avó, eles estão perplexos e totalmente
espalhados. Quantos metros de inundação eles terão que vencer ainda?
– Se fossem
inteligentes, apenas os metros que eles conseguiram avançar até agora: eles
voltariam imediatamente para a margem seca do rio. Mas eles não vão fazer isso,
vão continuar avançando tolamente. Exatamente como eu quero!
– Só que eles
estão tranqüilos quanto a nossa possibilidade de atacá-los, por estão ainda a
uma distância segura da nossa linha de homens, dispostos do lado de fora da
nossa muralha. De onde estão, os nossos não podem ainda atingi-los com as
flechas.
– Sim, Vérica.
Mas isso é só o que eles pensam. Nós sabemos que a realidade é bem diferente,
não é?
– Sem dúvida,
avó. A distância de nossa linha de homens até os hunos dentro do ‘lago’ que
criamos, que eles acreditam que é segura para eles, é, na verdade, favorável
para nós.
– Isso mesmo,
criança. Porque dali onde estão agora, eles não têm como ver que nossos
“soldados” são na verdade os civis com roupas militares e há, inclusive, um bom
número de mulheres entre eles, engraçadas dentro das fardas enormes dos
francos.
– E, enquanto
isso, Meroveu e seus soldados de verdade já estão prontos em seus postos de
ataque, nas margens leste e oeste e sul do lago que criamos, nas suas margens
sólidas e secas.
– Exato, Vérica.
Agora só nos compete esperar, temos que aguardar que os primeiros hunos comecem
a chegar à parte seca da planície, depois de atravessarem “Lago Châlons”, como Meroveu nos disse que é
conhecido esse recurso de defesa da fortaleza.
– E esse recurso
é muito antigo, avó?
– Meroveu disse
que os francos o têm sempre pronto para funcionar há mais de 50 anos. A idéia
foi esplêndida e ele passaram muitos anos escavando e disfarçando as escavações
básicas, aquelas que ficam sempre com água, em contato normal com o rio. Claro
que tudo depende criticamente de três coisas: Primeiro, desse tipo de capim
prodigioso que ele trouxeram para cá no passado, e que se alastrou tão bem por
toda a planície, de ambos os lados do rio. Segundo, da existência do dique e da
comporta, sem o que seria totalmente impossível inundar o restante da área em
apenas cinco dias, como nós fizemos e ainda estamos fazendo, pois o nível da
água ainda continua subindo.
– E o terceira coisa é aquela de que eu cuidei
pessoalmente ontem, não é avó?
– Sim, criança:
o segredo! Todo esse sistema de defesa fica totalmente inutilizado, se
deixarmos batedores passarem para o lado de cá do rio e descobrirem que há um
verdadeiro lago na margem sul, escondido sob o capim gigante. E não é só esse o
perigo para este plano. Há um outro ao qual eles, os francos, sempre estiveram
muito atentos: os traidores. Felizmente os três visigodos que nos traíram,
levando informações da cidadela aos hunos, nunca estiveram aqui dentro.
Sondaram civis e observaram o conjunto do lado de lá do rio, pois sabiam que
não poderiam entrar e sair depois com vida. É certo que esses hunos, que estão
se debatendo dentro d’água agora, não tiveram possibilidade de saber que iriam
ser recebidos com o “Lago Châlons”.
– Veja avó, já
há um grupo de uns seis hunos que conseguiram chegar à margem de cá. Olhe, eles
estão parando, vão esperar os outros, é claro.
– Sim, óbvio.
Contamos com isso também. Mais um pouco de tempo e os nossos vão começar a
atacar por todos os lados. Os arqueiros e os lanceiros.
– Ah, avó, eu
deveria estar lá agora, enfeitando os hunos com as minhas flechas.
– Nada disso,
mocinha. Já expliquei muito bem que preciso você aqui, atacando do alto da
muralha, quando chegar o momento. Você sabe muito bem que a nossa tática é
nunca oferecer combate em campo aberto aos hunos. Eles nos arrasariam em dois
tempos, simplesmente. Não, nós temos que atacar de surpresa e, em seguida,
fugir. E, de preferência, fugir atraindo o inimigo para uma nova armadilha. E é
por isso que, daqui a um tempo, você estará, com certeza, enfeitando hunos,
como você diz. Mas só que vai atingi-los aqui do alto da muralha.
– Sim avó, tem
razão, como sempre.
– Isso, tenha
juízo menina. Eu sei que na sua idade é muito difícil conter o ímpeto dos
impulsos, mas aprender a fazer isso é uma das maiores realizações de uma sacerdotisa
da Deusa.
E as duas
iniciadas calaram-se, porque as movimentações dos grupos de arqueiros francos começavam
a ficar visíveis. A batalha do lago ia começar.
Quando cerca de
trinta hunos já tinham conseguido atravessar a água e esperavam desmontados que
os outros chegassem, de repente uma nuvem de flechas começou a cair sobre eles.
Muitos foram os atingidos e os que escaparam ilesos, pouco mais do que meia
dúzia, erguendo seu pequenos escudos, foram se ocultar atrás de seus cavalos,
que tinham virado também alvo fácil para as setas dos francos. Os hunos ilesos
e os que estavam ainda dentro da água, mas já bastante próximos da margem onde
acontecia o ataque, marcaram o lugar de onde as flechas saiam, emergindo de um
mesmo ponto no meio do capim gigante. À direita deles. Dos que estavam no
‘lago’, tratando de controlar suas montarias, a maior parte jogou-se dos
cavalos na água, para deixar de ser um alvo fácil para aos arqueiros inimigos.
Alguns poucos conseguiram algum apoio e, aqueles que conseguiram pegar um arco
e flechas em algum cavalo, começaram a revidar o ataque, dirigindo suas flechas
para o ponto de onde saíam as setas inimigas.
Quando as
flechas hunas chegaram ao ponto visado, começou a ser ouvido um espocar
contínuo de suas pontas acertando alguma coisa rígida, como se fosse madeira.
Evidentemente não eram os escudos dos francos, feitos de couro duro com alma de
metal. Perceberam então que ali devia existir uma espécie de parede de madeira,
oculta também pela vegetação gigante. O ponto fortificado dos francos parou
imediatamente de lançar flechas. Por quê?,
perguntaram-se os hunos. Mas, de
qualquer forma, a cada minuto que passava mais alguns guerreiros conseguiam
sair dos alagados e firmar o pé em terra sólida. Mas estavam em formação de defesa,
os escudos elevados a 45 graus sobre as cabeças, voltados para o ponto de onde
tinham parado de surgir novas setas. Como estavam desmontados, os cavalos deles
debandaram rapidamente pelo meio do capim gigante.
A situação
desses hunos, já por volta de cinqüenta homens agora, era realmente aflitiva.
Esperavam para qualquer momento uma nova chuva de flechas, tinham que se manter
na posição de defesa e não tinham ali nenhum oficial que pudesse coordenar suas
ações. Poderiam contra-atacar, mas isso significaria abrir mão dos escudos para
se defenderem, o que, naquelas circunstâncias, seria arrematada loucura. O
ponto de ataque dos francos continuava misteriosamente paralisado, nada vinha
de lá. Mas. Em compensação, o que os hunos não podiam esperar, aconteceu: uma
nova saraivada de flechas se abateu sobre eles, mas desta vez vindas exatamente
do outro lado, de um ponto em terra firme situado à esquerda deles. Como os
escudos estavam em formação virados para a direita, muitos foram os atingidos
antes que atinassem em virar os escudos para a esquerda. Mas quando todos o
fizeram, as flechas voltaram a cair sobre eles, vindas novamente da direita. A
imensa maioria deles foi atingida, quase todos mortalmente. Os ilesos trataram
de pular imediatamente na água e de nadar ou caminhar sobre o dificílimo leito
lodoso profundo do “lago”.
Nesse momento, o
grosso do destacamento, que ainda estava lutando para terminar de atravessar o
ambiente alagadiço com seus cavalos, viu que os ‘soldados’ francos, que
estiveram o tempo todo postados 500 metros à frente da muralha e, portanto, a
cerca de uns seiscentos metros do “lago”, começaram a se deslocar em marcha
cadenciada em direção a eles, batendo tambores militares e fazendo um enorme
alarido. Todos portavam as compridas lanças francas e os hunos sabiam que os
francos eram temíveis quando arremessavam aquelas lanças em alvos
desprotegidos.
Com alívio,
todos ouviram o toque da inconfundível trombeta huna, comandando a retirada. Fizeram
meia-volta os que ainda tentavam avançar por dentro da água e do lodo e
começaram a marcha penosa rumo ao norte. Foram avisados que os ‘soldados’
francos que avançavam em marcha se detiveram. Ainda bem, um problema a menos,
de problema já bastava aquele maldito charco, com seus buracos e sumidouros
internais, com seu lodo capaz de engolir um homem e um cavalo, com aquela capim
amaldiçoado escondendo quase tudo, principalmente os inimigos que, certamente,
conheciam muito bem cada palmo quadrado daquele inferno molhado.
Só que esse não
era um problema a menos para os hunos, porque aquele exército em marcha
cadenciada, que havia parado de andar, não era um problema real. Era apenas um
simulacro e os seus mais de 500 ‘soldados’ eram todos civis, incluído-se aí
mais de 100 mulheres corajosas, estimuladas pelo exemplo de Vérica no dia
anterior, que a todas havia maravilhado.
Mas o problema
real agora era o exército de verdade, os 480 homens de infantaria, que,
excetuados os arqueiros entrincheirados nas duas pequenas casamatas de madeira
nos lados do “lago’, estavam esperando escondidos a menos de 50 metros do ponto
onde tinham estado os poucos hunos que lograram atravessar o charco –
praticamente todos eles mortos a esta altura. A um grito de Meroveu, todos os
homens avançaram e arremessaram suas longas lanças de assalto sobre os hunos
que batiam em retirada, em seus cavalos, dentro da água. Estavam de costas para
seus atacantes, totalmente indefesos, portanto. Quase quinhentas lanças fizeram
seu curto vôo e se abateram pesadamente sobre soldados e cavalos hunos. E,
imediatamente após isso, recomeçaram os ataques com flechas, vindos das duas
posições fortificadas, leste e oeste, de onde os arqueiros francos haviam
atacado em sucessão. Agora eles eram ainda mais terríveis, atacavam simultaneamente e suas flechas
conseguiam atingir os hunos que estavam mais distantes, aproximadamente no meio
do “lago’, aliviados, acreditando-se já a salvo das lanças francas. A partir
desse momento a debandada dos hunos foi ainda mais tumultuada, cada um se
debatendo na água, com cavalo ou sem, tratando de se aproximar o mais rápido
possível da margem norte do rio, terra firme por onde haviam chegado, antes de
se desgraçarem nesse horrível pantanal dos francos.
Aos pouco os
hunos foram conseguindo enfim sair do lado norte do rio. Deixavam para trás um
número impressionante de baixas em homens, cavalos e armas.
283 combatentes
ao todo, contaram os francos nas horas seguintes. E mais 17 prisioneiros
feridos, mas capazes de sobreviver. Diferentemente dos hunos, os francos não
executavam seus prisioneiros de guerra.
Com os doze
batedores perdidos no dia anterior, os 283 perdidos agora e mais 17
aprisionados, as hostes hunas haviam diminuído em 312 homens, subtraídos então
ao um total exato de 1932 que chegarem à planície de Châlons. Um duro batismo
de fogo para os hunos, na verdade um batismo de água.
Quanto aos
francos, por incrível que pudesse parecer, não tinham uma única baixa a
lamentar, Meroveu estava em êxtase, nunca pensou, nos dias anteriores em que só
pensava em como morrer com honra esmagado pelos hunos, que uma coisa assim
pudesse acontecer. Devia-o, em primeiro lugar, ao maravilhoso fundamento de
defesa que era aquela planície rapidamente inundável, artificialmente criada
por seus ancestrais. E, a partir daí, à maravilhosa planificação de ataque que
as sacerdotisas celtas haviam definido para ele.
CONTINUA:
Meroveu busca os conselhos de Kyna e lhe confessa seu amor por Vérica.
Alana parte de Orléans, em direção a Châlons, liderando um pequeno contingente
de soldados visigodos. E trazendo assustadoras notícias de grande guerra para
Meroveu e para suas parentas.
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