quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


O CERCO – 7     
MILTON MACIEL  

Resumo do cap 6: Em Châlons, o rei Meroveu passa uma noite de cão no alto da muralha, consciente de estar apaixonado pela jovem sacerdotisa-guerreira Vérica. E receoso de que não terá qualquer chance com ela, pois ele depende da aceitação não só da moça, mas das outras duas sacerdotisas e da própria Deusa. Em Orléans, Átila chega com 80 mil homens e quando decide atacar a cidade, descobre que está sendo enfrentado por um exército maior que o seu, que tem, além dos visigodos, romanos, burgúndios e alanos. Átila bate em retirada rumo ao nordeste. Em Châlons, chegam os 2000 hunos que vão tomar conta da fortaleza. E são recebidos com mais uma “surpresa” de Kyna.

A batalha do “lago” Châlons

Enquanto os cavaleiros hunos começam a se debater dentro da área alagada na margem sul do rio, Kyna repassa com Vérica o planejamento prévio daquela ação de guerra.

– Está funcionando, avó! Veja, o ímpeto da cavalaria huna foi completamente detido. Como será que eles vão reagir agora?

– Ora, criança, eles vão conseguir atravessar o ‘lago’ que nós criamos para eles, é só uma questão de tempo. Mas, por enquanto, eles estão completamente confusos e tratando apenas de lograr êxito na travessia sob condições tão adversas, com as quais eles não podiam contar. Essa desorganização não é nada boa para eles, porque os deixa vulneráveis aos nossos arqueiros, em primeiro lugar e, a seguir, aos nossos lanceiros. Veja que eles não têm como empreender uma carga, aquele terrível avanço de cavaleiros em linhas, com uma enorme velocidade. Neste momento eles estão dispersos por toda a área alagada e têm muita dificuldade de controlar suas montarias.

 – Sim, avó, eles estão perplexos e totalmente espalhados. Quantos metros de inundação eles terão que vencer ainda?

– Se fossem inteligentes, apenas os metros que eles conseguiram avançar até agora: eles voltariam imediatamente para a margem seca do rio. Mas eles não vão fazer isso, vão continuar avançando tolamente. Exatamente como eu quero!

– Só que eles estão tranqüilos quanto a nossa possibilidade de atacá-los, por estão ainda a uma distância segura da nossa linha de homens, dispostos do lado de fora da nossa muralha. De onde estão, os nossos não podem ainda atingi-los com as flechas.

– Sim, Vérica. Mas isso é só o que eles pensam. Nós sabemos que a realidade é bem diferente, não é?

– Sem dúvida, avó. A distância de nossa linha de homens até os hunos dentro do ‘lago’ que criamos, que eles acreditam que é segura para eles, é, na verdade, favorável para nós.

– Isso mesmo, criança. Porque dali onde estão agora, eles não têm como ver que nossos “soldados” são na verdade os civis com roupas militares e há, inclusive, um bom número de mulheres entre eles, engraçadas dentro das fardas enormes dos francos.

– E, enquanto isso, Meroveu e seus soldados de verdade já estão prontos em seus postos de ataque, nas margens leste e oeste e sul do lago que criamos, nas suas margens sólidas e secas.

– Exato, Vérica. Agora só nos compete esperar, temos que aguardar que os primeiros hunos comecem a chegar à parte seca da planície, depois de atravessarem  “Lago Châlons”, como Meroveu nos disse que é conhecido esse recurso de defesa da fortaleza.

– E esse recurso é muito antigo, avó?

– Meroveu disse que os francos o têm sempre pronto para funcionar há mais de 50 anos. A idéia foi esplêndida e ele passaram muitos anos escavando e disfarçando as escavações básicas, aquelas que ficam sempre com água, em contato normal com o rio. Claro que tudo depende criticamente de três coisas: Primeiro, desse tipo de capim prodigioso que ele trouxeram para cá no passado, e que se alastrou tão bem por toda a planície, de ambos os lados do rio. Segundo, da existência do dique e da comporta, sem o que seria totalmente impossível inundar o restante da área em apenas cinco dias, como nós fizemos e ainda estamos fazendo, pois o nível da água ainda continua subindo.

 – E o terceira coisa é aquela de que eu cuidei pessoalmente ontem, não é avó?

– Sim, criança: o segredo! Todo esse sistema de defesa fica totalmente inutilizado, se deixarmos batedores passarem para o lado de cá do rio e descobrirem que há um verdadeiro lago na margem sul, escondido sob o capim gigante. E não é só esse o perigo para este plano. Há um outro ao qual eles, os francos, sempre estiveram muito atentos: os traidores. Felizmente os três visigodos que nos traíram, levando informações da cidadela aos hunos, nunca estiveram aqui dentro. Sondaram civis e observaram o conjunto do lado de lá do rio, pois sabiam que não poderiam entrar e sair depois com vida. É certo que esses hunos, que estão se debatendo dentro d’água agora, não tiveram possibilidade de saber que iriam ser recebidos com o “Lago Châlons”.

– Veja avó, já há um grupo de uns seis hunos que conseguiram chegar à margem de cá. Olhe, eles estão parando, vão esperar os outros, é claro.

– Sim, óbvio. Contamos com isso também. Mais um pouco de tempo e os nossos vão começar a atacar por todos os lados. Os arqueiros e os lanceiros.

– Ah, avó, eu deveria estar lá agora, enfeitando os hunos com as minhas flechas.

– Nada disso, mocinha. Já expliquei muito bem que preciso você aqui, atacando do alto da muralha, quando chegar o momento. Você sabe muito bem que a nossa tática é nunca oferecer combate em campo aberto aos hunos. Eles nos arrasariam em dois tempos, simplesmente. Não, nós temos que atacar de surpresa e, em seguida, fugir. E, de preferência, fugir atraindo o inimigo para uma nova armadilha. E é por isso que, daqui a um tempo, você estará, com certeza, enfeitando hunos, como você diz. Mas só que vai atingi-los aqui do alto da muralha.

– Sim avó, tem razão, como sempre.

– Isso, tenha juízo menina. Eu sei que na sua idade é muito difícil conter o ímpeto dos impulsos, mas aprender a fazer isso é uma das maiores realizações de uma sacerdotisa da Deusa.

E as duas iniciadas calaram-se, porque as movimentações dos grupos de arqueiros francos começavam a ficar visíveis. A batalha do lago ia começar.

Quando cerca de trinta hunos já tinham conseguido atravessar a água e esperavam desmontados que os outros chegassem, de repente uma nuvem de flechas começou a cair sobre eles. Muitos foram os atingidos e os que escaparam ilesos, pouco mais do que meia dúzia, erguendo seu pequenos escudos, foram se ocultar atrás de seus cavalos, que tinham virado também alvo fácil para as setas dos francos. Os hunos ilesos e os que estavam ainda dentro da água, mas já bastante próximos da margem onde acontecia o ataque, marcaram o lugar de onde as flechas saiam, emergindo de um mesmo ponto no meio do capim gigante. À direita deles. Dos que estavam no ‘lago’, tratando de controlar suas montarias, a maior parte jogou-se dos cavalos na água, para deixar de ser um alvo fácil para aos arqueiros inimigos. Alguns poucos conseguiram algum apoio e, aqueles que conseguiram pegar um arco e flechas em algum cavalo, começaram a revidar o ataque, dirigindo suas flechas para o ponto de onde saíam as setas inimigas.

Quando as flechas hunas chegaram ao ponto visado, começou a ser ouvido um espocar contínuo de suas pontas acertando alguma coisa rígida, como se fosse madeira. Evidentemente não eram os escudos dos francos, feitos de couro duro com alma de metal. Perceberam então que ali devia existir uma espécie de parede de madeira, oculta também pela vegetação gigante. O ponto fortificado dos francos parou imediatamente de lançar flechas. Por quê?,  perguntaram-se os hunos.  Mas, de qualquer forma, a cada minuto que passava mais alguns guerreiros conseguiam sair dos alagados e firmar o pé em terra sólida. Mas estavam em formação de defesa, os escudos elevados a 45 graus sobre as cabeças, voltados para o ponto de onde tinham parado de surgir novas setas. Como estavam desmontados, os cavalos deles debandaram rapidamente pelo meio do capim gigante.  

A situação desses hunos, já por volta de cinqüenta homens agora, era realmente aflitiva. Esperavam para qualquer momento uma nova chuva de flechas, tinham que se manter na posição de defesa e não tinham ali nenhum oficial que pudesse coordenar suas ações. Poderiam contra-atacar, mas isso significaria abrir mão dos escudos para se defenderem, o que, naquelas circunstâncias, seria arrematada loucura. O ponto de ataque dos francos continuava misteriosamente paralisado, nada vinha de lá. Mas. Em compensação, o que os hunos não podiam esperar, aconteceu: uma nova saraivada de flechas se abateu sobre eles, mas desta vez vindas exatamente do outro lado, de um ponto em terra firme situado à esquerda deles. Como os escudos estavam em formação virados para a direita, muitos foram os atingidos antes que atinassem em virar os escudos para a esquerda. Mas quando todos o fizeram, as flechas voltaram a cair sobre eles, vindas novamente da direita. A imensa maioria deles foi atingida, quase todos mortalmente. Os ilesos trataram de pular imediatamente na água e de nadar ou caminhar sobre o dificílimo leito lodoso profundo do “lago”.

Nesse momento, o grosso do destacamento, que ainda estava lutando para terminar de atravessar o ambiente alagadiço com seus cavalos, viu que os ‘soldados’ francos, que estiveram o tempo todo postados 500 metros à frente da muralha e, portanto, a cerca de uns seiscentos metros do “lago”, começaram a se deslocar em marcha cadenciada em direção a eles, batendo tambores militares e fazendo um enorme alarido. Todos portavam as compridas lanças francas e os hunos sabiam que os francos eram temíveis quando arremessavam aquelas lanças em alvos desprotegidos.

Com alívio, todos ouviram o toque da inconfundível trombeta huna, comandando a retirada. Fizeram meia-volta os que ainda tentavam avançar por dentro da água e do lodo e começaram a marcha penosa rumo ao norte. Foram avisados que os ‘soldados’ francos que avançavam em marcha se detiveram. Ainda bem, um problema a menos, de problema já bastava aquele maldito charco, com seus buracos e sumidouros internais, com seu lodo capaz de engolir um homem e um cavalo, com aquela capim amaldiçoado escondendo quase tudo, principalmente os inimigos que, certamente, conheciam muito bem cada palmo quadrado daquele inferno molhado.

Só que esse não era um problema a menos para os hunos, porque aquele exército em marcha cadenciada, que havia parado de andar, não era um problema real. Era apenas um simulacro e os seus mais de 500 ‘soldados’ eram todos civis, incluído-se aí mais de 100 mulheres corajosas, estimuladas pelo exemplo de Vérica no dia anterior, que a todas havia maravilhado.

Mas o problema real agora era o exército de verdade, os 480 homens de infantaria, que, excetuados os arqueiros entrincheirados nas duas pequenas casamatas de madeira nos lados do “lago’, estavam esperando escondidos a menos de 50 metros do ponto onde tinham estado os poucos hunos que lograram atravessar o charco – praticamente todos eles mortos a esta altura. A um grito de Meroveu, todos os homens avançaram e arremessaram suas longas lanças de assalto sobre os hunos que batiam em retirada, em seus cavalos, dentro da água. Estavam de costas para seus atacantes, totalmente indefesos, portanto. Quase quinhentas lanças fizeram seu curto vôo e se abateram pesadamente sobre soldados e cavalos hunos. E, imediatamente após isso, recomeçaram os ataques com flechas, vindos das duas posições fortificadas, leste e oeste, de onde os arqueiros francos haviam atacado em sucessão. Agora eles eram ainda mais terríveis, atacavam simultaneamente e suas flechas conseguiam atingir os hunos que estavam mais distantes, aproximadamente no meio do “lago’, aliviados, acreditando-se já a salvo das lanças francas. A partir desse momento a debandada dos hunos foi ainda mais tumultuada, cada um se debatendo na água, com cavalo ou sem, tratando de se aproximar o mais rápido possível da margem norte do rio, terra firme por onde haviam chegado, antes de se desgraçarem nesse horrível pantanal dos francos.

Aos pouco os hunos foram conseguindo enfim sair do lado norte do rio. Deixavam para trás um número impressionante de baixas em homens, cavalos e armas.

283 combatentes ao todo, contaram os francos nas horas seguintes. E mais 17 prisioneiros feridos, mas capazes de sobreviver. Diferentemente dos hunos, os francos não executavam seus prisioneiros de guerra.

Com os doze batedores perdidos no dia anterior, os 283 perdidos agora e mais 17 aprisionados, as hostes hunas haviam diminuído em 312 homens, subtraídos então ao um total exato de 1932 que chegarem à planície de Châlons. Um duro batismo de fogo para os hunos, na verdade um batismo de água.

Quanto aos francos, por incrível que pudesse parecer, não tinham uma única baixa a lamentar, Meroveu estava em êxtase, nunca pensou, nos dias anteriores em que só pensava em como morrer com honra esmagado pelos hunos, que uma coisa assim pudesse acontecer. Devia-o, em primeiro lugar, ao maravilhoso fundamento de defesa que era aquela planície rapidamente inundável, artificialmente criada por seus ancestrais. E, a partir daí, à maravilhosa planificação de ataque que as sacerdotisas celtas haviam definido para ele.

CONTINUA:  Meroveu busca os conselhos de Kyna e lhe confessa seu amor por Vérica. Alana parte de Orléans, em direção a Châlons, liderando um pequeno contingente de soldados visigodos. E trazendo assustadoras notícias de grande guerra para Meroveu e para suas parentas.






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