sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013


O CERCO – 8 
MILTON   MACIEL

Resumo do cap. 7: Em Châlons, os hunos sofrem o seu primeiro grande revés, aos perderem mais de 300 homens na batalha do “Lago” Châlons.  A armadilha de mais de meio século voltou a funcionar com incrível eficiência. Meroveu mal cabe em si de contente, ao dar-se conta que nenhum franco, militar ou civil, teve sequer um arranhão. Mas reconhece, num próximo combate, isso será impossível. Enquanto isso, o exército de Átila, com Flávio Aécio e Teodorico em seu encalço, foge para o nordeste.

Um dia de trégua

Os chefes hunos, ainda desnorteados, reuniram os seus homens a cinco quilômetros ao norte do rio, enquanto procuravam estabelecer uma estratégia para contornar aquele maldito pantanal oculto dos francos. Agora sabem que ele tem margens sólidas e é para lá que devem direcionar o próximo ataque.

Valmaric, o chefe ostrogodo, lhes havia falado que a cidadela de Châlons era apenas um ponto avançado de observação, situado a conveniente distância e a suficiente altitude para permitir uma extraordinária visão dos caminhos que levavam a Reims e a Orléans. Qualquer grupo que por ali avançasse, ainda que pequeno, seria logo percebido a tempo de proporcionar alguma espécie de reação: ou enfrentamento, ou fuga. Mas, de qualquer forma, com tempo suficiente para mandar mensageiros com avisos a qualquer das cidades aliadas. Mas, segundo ele, de maneira alguma uma fortaleza capaz de opor resistência a um bom número de soldados hunos bem armados.

Châlons era uma cidadela relativamente pequena. Suas instalações, quando de sua construção, poderiam abrigar até 800 homens em armas, com um espaço extra para manter eventuais civis abrigados, em torno de uns 400, na possibilidade de um cerco. Mas Walmalaric sabia que Châlons nunca tivera uma guarnição de mais do que 50 homens e, que portanto, essa era, certamente, uma cidadela pobre e desguarnecida que os hunos iriam encontrar em seu avanço para anulá-la como ponto de observação privilegiada para o inimigo e poder usá-la a favor do exército dos hunos e seu aliados.

Por isso, quando o general huno Trolesec havia optado por mandar 2000 homens a Châlons, Walmaric se opusera com energia, considerando isso um desperdício de combatentes e de tempo. Mas a opinião do chefe huno prevalecera, o velho general sempre havia sido um homem muito previdente. Alem do que, dissera ele, “temos tantos homens nesta marcha para o ocidente e para o sul, que vale a pena dar um pouco de distração para os meninos, de vez em quando.” E os inimigos, quanto mais hunos vissem a se aproximar, mais tremeriam e mais facilmente fugiriam, abandonando seus fortes, vilas e cidades, sem oferecer resistência, permitindo a plena pilhagem sem o desgaste da batalha, o que era muito mais vantajoso economicamente para os hunos. A tática consagrada do terror.

Naquele momento, em que se deslocavam com seu homens em direção a Lutécia, Walmaric e os de Trolesec ainda não tinham qualquer idéia de que os 2000 hunos mandados a Châlon haviam encontrado uma feroz resistência. E que dois exércitos imensos, o de Átila e o dos visigodos e romanos marchavam celeremente em sua direção.
Os antes quase 2000 estavam acampados agora a uma segura distância do charco infernal dos francos, e reduzidos a menos de 1700. As perdas em cavalos e armas haviam sido igualmente pesadas. A maior parte dos animais escapara ilesa e havia sido capturada pelos francos, certamente. Havia cavalos bastante feridos também, que os hunos sabiam que os inimigos teriam que sacrificar. Mas estavam errados. Com os francos havia duas sacerdotisas celtas e estas não só amavam cavalos, como sabiam todos os segredos das ervas e poções para curá-los.

O resultado disso foi que, tendo inicialmente só 22 cavalos na fortaleza, de repente os francos dispunham de mais de 200 animais em boas condições físicas (e mais uns 40 que podiam ser curados e recuperados) para o combate. Mas não dispunham de muitos cavaleiros treinados, uma vez que seus homens eram somente arqueiros e soldados de infantaria. Mas, mais uma vez as sacerdotisas iriam desempenhar um papel importante na viabilização de uma inesperada divisão montada para Châlons.

O dia seguinte ao da batalha do “lago’ foi um dia de trégua. Os hunos precisavam desse tempo para se recuperar e se reorganizar. Suas baixas haviam sido ainda maiores do que as que os francos contaram, pois tinham no acampamento mais de 60 feridos, alguns em estado bem grave. No todo, portanto, ele só podiam contar agora com cerca de 1 600 homens prontos para o ataque.

Por outro lado, segundo as estimativas de contagem que eles mesmo haviam feito, os francos não eram menos de mil homens: havia seguramente uns 500 alinhados perto da muralha, e que tinham iniciado e interrompido a marcha em direção a eles, quando estavam dentro dos alagados. E havia aquele outro contingente, mais ou menos do mesmo tamanho, que os havia atacado com lanças, quando eles começaram a retirada do lago.

Ainda tinham uma razoável vantagem de 1600 contra 1000, mas nada que se comparasse à expectativa inicial de Walmaric, de 2000 contra 50. O certo, porém, era que os francos não poderiam ter mais do que aqueles homens, por que isso excederia em muito a capacidade da operacionalidade militar da fortaleza.

Os chefes hunos passaram então o dia de trégua a traçar diferentes planos para o novo ataque. Sabiam que não podiam mandar batedores, que dirá espiões, para avaliar com segurança os caminhos secos e firmes ao redor do charco. Teriam que se basear nas observações feitas no dia anterior, ao calor da batalha do pantanal. E isso certamente os levaria a correr riscos, porém nada que se comparasse à demolidora surpresa do “lago”.

O rei recorre a Kyna

Durante o dia de trégua, também os francos e as sacerdotisas fizeram suas reuniões de planejamento, mas estas lhes serviam apenas para confirmar os planos que já estavam elaborados. Com certeza, os hunos atacariam agora pelos flancos e o ‘lago’ deixaria de ser uma arma de defesa. Cumprira, contudo, seu trabalho admiravelmente. Agora era prepararem a recepção para os ataques pelas laterais do pantanal. Isso já estava suficientemente bem discutido e implementado desde cinco dias atrás. Que viessem os hunos! Eles é que teriam que fazer suas opções. Os francos já tinham as suas feitas previamente, não importa que decisões os inimigos viessem a tomar.

Ao final da tarde, todos se retiraram para seus alojamentos e Meroveu mandou um ajudante de ordens procurar Kyna e solicitar-lhe uma entrevista particular. Vérica mostrou-se um pouco surpresa e ofendida por ser excluída pela primeira vez de uma reunião com o rei.

– Não sei o que Meroveu pode querer discutir com você, avó, que eu não possa estar presente.

Kyna olhou a neta bem nos olhos, sorriu e lhe perguntou?

– Você não sabe mesmo, criança? Ou só está se fazendo de bobinha? Comigo não vai funcionar, desista.

Vérica traiu-se, ficando intensamente vermelha.

– Ah, então você sabe, não é? Pois trate de cair fora na hora da entrevista e nem pense em ficar escutando atrás da porta, porque você sabe que eu percebo, não sabe?

– Claro, avó. É impossível ludibriá-la e eu nunca tentaria isso, a senhor também sabe isso, não é?

– Sei sim, minha querida, sua avó estava só brincando. Uma verdadeira sacerdotisa, como você já o é, não faz uma coisa dessas com outra sacerdotisa.

– E uma neta que ama e respeita sua avó, como eu faço, também não comete tal indignidade com ela.

Kyna aproximou-se, passou a mão na vasta cabeleira ruiva de Vérica e deu-lhe um beijo suave na face.

 – Agora você pode ir pensando em sair, Vérica. Eu sei que Meroveu não vai agüentar até a hora da entrevista, ele vai arranjar uma desculpa para aparecer antes.

De fato, não se passaram quinze minutos da saída de Vérica e Meroveu apareceu à porta do alojamento das sacerdotisas, com desenhos das máquinas de guerra da fortaleza.

– Posso entrar, sacerdotisa-chefe? Tenho muitas dúvidas sobre estas máquinas.

– Sei, sim. Muitas dúvidas. Dúvidas cruéis que lhe roubam a paz e o sono não é, meu rei?

– Bem, eu não desconheço as máquinas tanto assim, é só um pequeno detalhe.

– Ora, ora, ele não é tão pequeno assim, rei Meroveu. Eu diria que ele é do meu exato tamanho e altura.

– Como? Não entendi. O que quer a senhora dizer exatamente?

– Que o problema que o aflige, meu rei, tem outro nome. Aliás, um nome particularmente bonito.

– Como assim? Que nome, sacerdotisa?

– Simples: seu problema atende pelo nome de Vérica.

O rei soltou um profundo suspiro e deixou-se cair sobre um banco forrado com uma pele de carneiro. Agora era Meroveu quem estava vermelho. Não havia como disfarçar, fora apanhado previamente ao rodeio que pensava fazer até entrar nesse assunto melindroso.

– Eu tinha esquecido como é difícil esconder alguma coisa ao seu pensamento, Kyna. Sim é verdade, eu não faço outra coisa a não ser pensar em Vérica. Mesmo quando estava coordenando o ataque aos hunos, no lago, a toda hora eu me voltava, tentando vê-la no alto da muralha, esperançoso que ela pudesse me ver em combate.

– Uma infantilidade, meu rei, desculpe. Como poderíamos ver alguém em especial, no meio daquele capim gigante todo?

– É, depois eu percebi isso também. Mas é verdade, por causa de sua neta eu estou fazendo mesmo coisas infantis. Eu preciso confessar: estou completamente apaixonado por ela. E, lhe garanto, sob minha palavra de honra, é a primeira vez que sinto algo assim. Eu, apesar de minha idade e de ter vivido quatro anos em Roma, nunca amei de verdade uma mulher.

– Pobre Meroveu, pobre rei! É dura a vida dos apaixonados, quando temem não serem correspondidos.

– E eu serei? Tenho alguma chance, por mais remota que seja?

– Bem, se minha neta fosse qualquer outra mulher, eu lhe diria para ir ter com ela em seguida e fazer-lhe a pergunta diretamente.

– E eu não posso fazer isso?

 – Seria inútil, rei Meroveu. Minha neta não é uma mulher qualquer, é uma sacerdotisa da Deusa, pertence a ela desde que estava no ventre de Alana. É à Deusa que a consulta tem que ser feita, não a mim ou a Vérica.

– Sim, eu já tinha pensado nisso. E isso é o que me desespera. Como posso eu esperar ser aceito pela Deusa? Minhas possibilidades me parecem tão remotas, que eu me sinto enlouquecer, por que a cada dia que passa meu sentimento por Vérica vai ficando maior, insuportavelmente maior. Como agora, Kyna, eu me sinto enlouquecer de medo, de medo de não poder receber o amor de Vérica. Acho que o mundo acabaria para mim então.

– Calma, meu rei, não vamos tirar conclusões precipitadas. Não temos mais a fazer do que esperar.

– Esperar o que? A guerra? Os hunos?

–  Não, rei Meroveu, esperar Alana.

– Alana? Sua filha? Por que devemos esperá-la?

– Porque eu sinto que ela está a caminho de Châlons. Breve irei ao tripé sagrado para olhar na água e saber exatamente o que ela está fazendo. E vamos esperá-la porque, juntas, nós duas temos muito mais possibilidade de receber da Deusa a resposta que o meu rei quer saber, com tanta aflição.

– Vocês... Vocês consultariam a Deusa então? Por mim?

– Não, Meroveu. Consultaremos a Deusa por Vérica, sua sacerdotisa. Trabalharemos Alana e eu, Vérica não poderá participar do ritual, é a consulente. Então, meu rei, recomendo-lhe que se acalme e espere Alana chegar. Isso se dará em poucas horas, tenho certeza.

Meroveu tocou o joelho direito no chão e saudou a sacerdotisa-mor da Deusa, retirando-se ainda mais aflito do que antes. E se a resposta for não? O que fará de sua vida? Provavelmente atirar-se na frente da primeira espada huna que aparecer e deixar-se matar. Ao menos é isso o que pensa agora.

Alana em marcha

Nesse exato momento, em Orléans, Alana ultima seus preparativos. Passa em revista a tropa de duzentos cavaleiros que obteve de Teodorico, desta vez sem ter que voltar a fazer o infamante sacrifício por que passara. E, montada em Almarak, começa a jornada noturna em direção a Châlons, cruzando a ponte levadiça. Em sua mente vai o desassossego de saber que não pode perder um só minuto, que cavalgarão a noite toda e a manhã seguinte também com um mínimo de descanso para as montarias. Quando chegar, sabe que o fará no momento mais crítico da batalha. A Deusa lhe havia mostrado tudo com máxima clareza.

Próximo capítulo: Alana chega. A batalha das cavalarias. As celtas amazonas.
Os cavalos são sagrados.

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