MILTON MACIEL
Resumo do cap. 7: Em Châlons, os hunos sofrem o seu
primeiro grande revés, aos perderem mais de 300 homens na batalha do “Lago”
Châlons. A armadilha de mais de meio
século voltou a funcionar com incrível eficiência. Meroveu mal cabe em si de
contente, ao dar-se conta que nenhum franco, militar ou civil, teve sequer um
arranhão. Mas reconhece, num próximo combate, isso será impossível. Enquanto
isso, o exército de Átila, com Flávio Aécio e Teodorico em seu encalço, foge
para o nordeste.
Um dia de trégua
Os chefes hunos,
ainda desnorteados, reuniram os seus homens a cinco quilômetros ao norte do
rio, enquanto procuravam estabelecer uma estratégia para contornar aquele
maldito pantanal oculto dos francos. Agora sabem que ele tem margens sólidas e
é para lá que devem direcionar o próximo ataque.
Valmaric, o
chefe ostrogodo, lhes havia falado que a cidadela de Châlons era apenas um
ponto avançado de observação, situado a conveniente distância e a suficiente
altitude para permitir uma extraordinária visão dos caminhos que levavam a
Reims e a Orléans. Qualquer grupo que por ali avançasse, ainda que pequeno,
seria logo percebido a tempo de proporcionar alguma espécie de reação: ou
enfrentamento, ou fuga. Mas, de qualquer forma, com tempo suficiente para
mandar mensageiros com avisos a qualquer das cidades aliadas. Mas, segundo ele,
de maneira alguma uma fortaleza capaz de opor resistência a um bom número de
soldados hunos bem armados.
Châlons era uma
cidadela relativamente pequena. Suas instalações, quando de sua construção,
poderiam abrigar até 800 homens em armas, com um espaço extra para manter
eventuais civis abrigados, em torno de uns 400, na possibilidade de um cerco.
Mas Walmalaric sabia que Châlons nunca tivera uma guarnição de mais do que 50
homens e, que portanto, essa era, certamente, uma cidadela pobre e
desguarnecida que os hunos iriam encontrar em seu avanço para anulá-la como
ponto de observação privilegiada para o inimigo e poder usá-la a favor do
exército dos hunos e seu aliados.
Por isso, quando
o general huno Trolesec havia optado por mandar 2000 homens a Châlons, Walmaric
se opusera com energia, considerando isso um desperdício de combatentes e de
tempo. Mas a opinião do chefe huno prevalecera, o velho general sempre havia
sido um homem muito previdente. Alem do que, dissera ele, “temos tantos homens
nesta marcha para o ocidente e para o sul, que vale a pena dar um pouco de
distração para os meninos, de vez em quando.” E os inimigos, quanto mais hunos
vissem a se aproximar, mais tremeriam e mais facilmente fugiriam, abandonando
seus fortes, vilas e cidades, sem oferecer resistência, permitindo a plena
pilhagem sem o desgaste da batalha, o que era muito mais vantajoso
economicamente para os hunos. A tática consagrada do terror.
Naquele momento,
em que se deslocavam com seu homens em direção a Lutécia, Walmaric e os de
Trolesec ainda não tinham qualquer idéia de que os 2000 hunos mandados a Châlon
haviam encontrado uma feroz resistência. E que dois exércitos imensos, o de Átila
e o dos visigodos e romanos marchavam celeremente em sua direção.
Os antes quase
2000 estavam acampados agora a uma segura distância do charco infernal dos
francos, e reduzidos a menos de 1700. As perdas em cavalos e armas haviam sido
igualmente pesadas. A maior parte dos animais escapara ilesa e havia sido
capturada pelos francos, certamente. Havia cavalos bastante feridos também, que
os hunos sabiam que os inimigos teriam que sacrificar. Mas estavam errados. Com
os francos havia duas sacerdotisas celtas e estas não só amavam cavalos, como
sabiam todos os segredos das ervas e poções para curá-los.
O resultado
disso foi que, tendo inicialmente só 22 cavalos na fortaleza, de repente os
francos dispunham de mais de 200 animais em boas condições físicas (e mais uns
40 que podiam ser curados e recuperados) para o combate. Mas não dispunham de
muitos cavaleiros treinados, uma vez que seus homens eram somente arqueiros e
soldados de infantaria. Mas, mais uma vez as sacerdotisas iriam desempenhar um
papel importante na viabilização de uma inesperada divisão montada para
Châlons.
O dia seguinte
ao da batalha do “lago’ foi um dia de trégua. Os hunos precisavam desse tempo
para se recuperar e se reorganizar. Suas baixas haviam sido ainda maiores do
que as que os francos contaram, pois tinham no acampamento mais de 60 feridos,
alguns em estado bem grave. No todo, portanto, ele só podiam contar agora com
cerca de 1 600 homens prontos para o ataque.
Por outro lado,
segundo as estimativas de contagem que eles mesmo haviam feito, os francos não
eram menos de mil homens: havia seguramente uns 500 alinhados perto da muralha,
e que tinham iniciado e interrompido a marcha em direção a eles, quando estavam
dentro dos alagados. E havia aquele outro contingente, mais ou menos do mesmo
tamanho, que os havia atacado com lanças, quando eles começaram a retirada do
lago.
Ainda tinham uma
razoável vantagem de 1600 contra 1000, mas nada que se comparasse à expectativa
inicial de Walmaric, de 2000 contra 50. O certo, porém, era que os francos não
poderiam ter mais do que aqueles homens, por que isso excederia em muito a
capacidade da operacionalidade militar da fortaleza.
Os chefes hunos
passaram então o dia de trégua a traçar diferentes planos para o novo ataque.
Sabiam que não podiam mandar batedores, que dirá espiões, para avaliar com
segurança os caminhos secos e firmes ao redor do charco. Teriam que se basear
nas observações feitas no dia anterior, ao calor da batalha do pantanal. E isso
certamente os levaria a correr riscos, porém nada que se comparasse à
demolidora surpresa do “lago”.
O rei recorre a
Kyna
Durante o dia de
trégua, também os francos e as sacerdotisas fizeram suas reuniões de
planejamento, mas estas lhes serviam apenas para confirmar os planos que já
estavam elaborados. Com certeza, os hunos atacariam agora pelos flancos e o
‘lago’ deixaria de ser uma arma de defesa. Cumprira, contudo, seu trabalho
admiravelmente. Agora era prepararem a recepção para os ataques pelas laterais
do pantanal. Isso já estava suficientemente bem discutido e implementado desde
cinco dias atrás. Que viessem os hunos! Eles é que teriam que fazer suas
opções. Os francos já tinham as suas feitas previamente, não importa que
decisões os inimigos viessem a tomar.
Ao final da
tarde, todos se retiraram para seus alojamentos e Meroveu mandou um ajudante de
ordens procurar Kyna e solicitar-lhe uma entrevista particular. Vérica
mostrou-se um pouco surpresa e ofendida por ser excluída pela primeira vez de
uma reunião com o rei.
– Não sei o que
Meroveu pode querer discutir com você, avó, que eu não possa estar presente.
Kyna olhou a
neta bem nos olhos, sorriu e lhe perguntou?
– Você não sabe
mesmo, criança? Ou só está se fazendo de bobinha? Comigo não vai funcionar,
desista.
Vérica traiu-se,
ficando intensamente vermelha.
– Ah, então você
sabe, não é? Pois trate de cair fora na hora da entrevista e nem pense em ficar
escutando atrás da porta, porque você sabe que eu percebo, não sabe?
– Claro, avó. É
impossível ludibriá-la e eu nunca tentaria isso, a senhor também sabe isso, não
é?
– Sei sim, minha
querida, sua avó estava só brincando. Uma verdadeira sacerdotisa, como você já
o é, não faz uma coisa dessas com outra sacerdotisa.
– E uma neta que
ama e respeita sua avó, como eu faço, também não comete tal indignidade com
ela.
Kyna
aproximou-se, passou a mão na vasta cabeleira ruiva de Vérica e deu-lhe um
beijo suave na face.
– Agora você pode ir pensando em sair, Vérica.
Eu sei que Meroveu não vai agüentar até a hora da entrevista, ele vai arranjar
uma desculpa para aparecer antes.
De fato, não se
passaram quinze minutos da saída de Vérica e Meroveu apareceu à porta do alojamento
das sacerdotisas, com desenhos das máquinas de guerra da fortaleza.
– Posso entrar,
sacerdotisa-chefe? Tenho muitas dúvidas sobre estas máquinas.
– Sei, sim.
Muitas dúvidas. Dúvidas cruéis que lhe roubam a paz e o sono não é, meu rei?
– Bem, eu não
desconheço as máquinas tanto assim, é só um pequeno detalhe.
– Ora, ora, ele
não é tão pequeno assim, rei Meroveu. Eu diria que ele é do meu exato tamanho e
altura.
– Como? Não
entendi. O que quer a senhora dizer exatamente?
– Que o problema
que o aflige, meu rei, tem outro nome. Aliás, um nome particularmente bonito.
– Como assim?
Que nome, sacerdotisa?
– Simples: seu
problema atende pelo nome de Vérica.
O rei soltou um
profundo suspiro e deixou-se cair sobre um banco forrado com uma pele de
carneiro. Agora era Meroveu quem estava vermelho. Não havia como disfarçar,
fora apanhado previamente ao rodeio que pensava fazer até entrar nesse assunto
melindroso.
– Eu tinha
esquecido como é difícil esconder alguma coisa ao seu pensamento, Kyna. Sim é
verdade, eu não faço outra coisa a não ser pensar em Vérica. Mesmo quando
estava coordenando o ataque aos hunos, no lago, a toda hora eu me voltava,
tentando vê-la no alto da muralha, esperançoso que ela pudesse me ver em
combate.
– Uma
infantilidade, meu rei, desculpe. Como poderíamos ver alguém em especial, no
meio daquele capim gigante todo?
– É, depois eu
percebi isso também. Mas é verdade, por causa de sua neta eu estou fazendo
mesmo coisas infantis. Eu preciso confessar: estou completamente apaixonado por
ela. E, lhe garanto, sob minha palavra de honra, é a primeira vez que sinto
algo assim. Eu, apesar de minha idade e de ter vivido quatro anos em Roma,
nunca amei de verdade uma mulher.
– Pobre Meroveu,
pobre rei! É dura a vida dos apaixonados, quando temem não serem
correspondidos.
– E eu serei?
Tenho alguma chance, por mais remota que seja?
– Bem, se minha
neta fosse qualquer outra mulher, eu lhe diria para ir ter com ela em seguida e
fazer-lhe a pergunta diretamente.
– E eu não posso
fazer isso?
– Seria inútil, rei Meroveu. Minha neta não é uma
mulher qualquer, é uma sacerdotisa da Deusa, pertence a ela desde que estava no
ventre de Alana. É à Deusa que a consulta tem que ser feita, não a mim ou a
Vérica.
– Sim, eu já
tinha pensado nisso. E isso é o que me desespera. Como posso eu esperar ser
aceito pela Deusa? Minhas possibilidades me parecem tão remotas, que eu me
sinto enlouquecer, por que a cada dia que passa meu sentimento por Vérica vai
ficando maior, insuportavelmente maior. Como agora, Kyna, eu me sinto
enlouquecer de medo, de medo de não poder receber o amor de Vérica. Acho que o
mundo acabaria para mim então.
– Calma, meu
rei, não vamos tirar conclusões precipitadas. Não temos mais a fazer do que
esperar.
– Esperar o que?
A guerra? Os hunos?
– Não, rei Meroveu, esperar Alana.
– Alana? Sua
filha? Por que devemos esperá-la?
– Porque eu
sinto que ela está a caminho de Châlons. Breve irei ao tripé sagrado para olhar
na água e saber exatamente o que ela está fazendo. E vamos esperá-la porque,
juntas, nós duas temos muito mais possibilidade de receber da Deusa a resposta
que o meu rei quer saber, com tanta aflição.
– Vocês... Vocês
consultariam a Deusa então? Por mim?
– Não, Meroveu.
Consultaremos a Deusa por Vérica, sua sacerdotisa. Trabalharemos Alana e eu,
Vérica não poderá participar do ritual, é a consulente. Então, meu rei,
recomendo-lhe que se acalme e espere Alana chegar. Isso se dará em poucas horas,
tenho certeza.
Meroveu tocou o
joelho direito no chão e saudou a sacerdotisa-mor da Deusa, retirando-se ainda
mais aflito do que antes. E se a resposta for não? O que fará de sua vida?
Provavelmente atirar-se na frente da primeira espada huna que aparecer e
deixar-se matar. Ao menos é isso o que pensa agora.
Alana em marcha
Nesse exato
momento, em Orléans, Alana ultima seus preparativos. Passa em revista a tropa
de duzentos cavaleiros que obteve de Teodorico, desta vez sem ter que voltar a
fazer o infamante sacrifício por que passara. E, montada em Almarak, começa a
jornada noturna em direção a Châlons, cruzando a ponte levadiça. Em sua mente
vai o desassossego de saber que não pode perder um só minuto, que cavalgarão a
noite toda e a manhã seguinte também com um mínimo de descanso para as
montarias. Quando chegar, sabe que o fará no momento mais crítico da batalha. A
Deusa lhe havia mostrado tudo com máxima clareza.
Próximo
capítulo: Alana chega. A batalha das cavalarias. As celtas amazonas.
Os cavalos são
sagrados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário