MILTON MACIEL e VOCÊ
(Série iniciada em 8 de Fevereiro)
Resumo do capítulo anterior: É o ano de 541. Os hunos avançam em direção a fortaleza-cidadela de
Châlons-en-Champagne. Lá uma pequena força de apenas 542 soldados se prepara
para resistir ao cerco, sob o comando do jovem rei franco Meroveu. Uma moça
celta ampara o rei no seu desfalecimento e o leva para conhecer sua avó, a sacerdotisa Kyna, a sábia. (Este nosso romance é interativo, escrito
e publicado à medida que nasce, todos os dias. Você pode participar opinando e
apresentando suas próprias soluções através dos Comentários.
KYNA, A SÁBIA
Não andaram nem 30 metros. Súbito a moça estacou. À sua frente
estava parada uma figura totalmente incomum, a quem o rei jamais havia visto
por ali. Uma mulher alta de impressionante presença, usando uma veste estranha,
de cor laranja, quase marrom, com um manto escuro sobre os ombros, que lhe caia
pelas costas como uma capa. Nos cabelos, armados em coque e com uma única
trança, tinha um diadema simples, de bronze, sem pedras, aplicado do lado
esquerdo. A cor desses cabelos era a mesma que brilhava nos cabelos da moça, um
tom de ruivo aloirado sui generis. O
rosto dessa mulher, à pálida luz da lua, era extraordinariamente parecido com o
da jovem que o socorrera. Apenas que os olhos dela, ao invés de azuis, eram de
um verde muito claro. A moça fez uma rápida flexão sobre o joelho direito e
saudou a outra mulher:
– Avó! Sabia que
estávamos vindo, não é?
– Sim, criança,
evidentemente. Como eu não iria saber?
– AVÓ?!! –
gritou, estupefato, o rei – Mas como, se você é quase tão jovem quanto ela?
A mulher sorriu
com satisfação e avançou mais dois passos, com o que deu-se a ver com mais
nitidez ainda por seus interlocutores. Meroveu ficou ainda mais impressionado.
Aquela bela mulher à sua frente poderia, no máximo, ser uma irmã mais velha da
garota a seu lado. Não poderia nem mesmo ser sua mãe. Que dirá, sua avó! Qual
seria a idade dela?
– Tenho 43 anos,
se é o que quer saber, meu rei – outra vez era como se uma mulher celta tivesse
ouvido a pergunta apenas pensada pelo rei dos francos.
– 43 anos? Difícil
acreditar, não parece, de jeito nenhum.
–Fui mãe aos 14
anos, Majestade, e minha primeira filha, a mãe desta, a deu à luz aos 13. E
Vérica tem hoje 16. Basta fazer as contas.
– E ela só tem
16?! Pelos deuses, vocês me confundem! A mais moça parece mais velha e a mais
velha parece muito mais moça!
– Minha netinha
é uma mulher feita, senhor. Ela é alta e forte assim, como o meu rei está
vendo. Mas não se deixe enganar por esta túnica sutil que ela está usando.
Vossa Majestade precisa ver essa moleca em roupas de combate, montada em pelo
num cavalo e disparando flechadas certeiras a galope.
– Menina, você
sabe combater?! – perguntou o atônito rei. Aquelas duas o mantinham boquiaberto
o tempo todo. Que surpresas ainda teriam para mostrar?
– Desde criança,
Majestade. No nosso clã, as mulheres combatem como os homens. Aprendemos, todas,
as artes da guerra. E somos treinadas a desenvolver músculos muito fortes nos
braços e nas pernas também. – era evidente o orgulho com que a moça dizia
aquelas palavras.
– Mas ela é, ao
mesmo tempo, de uma doçura a toda prova. E tem a generosidade e a retidão de
caráter que ensinamos a todas as nossas mulheres. É uma sacerdotisa da Deusa em
formação, meu braço direito, minha futura sucessora e meu orgulho!
– Avó! Assim a
senhora me deixa sem jeito, não exagere.
– Ora, criança,
retire já o que disse! Você sabe muito bem que nós NUNCA exageramos nada.
– Tem razão,
Kyna, peço perdão.
– E ela pode
chamá-la assim, Kyna, simplesmente? Isso não é lhe faltar com o respeito, como
avó dela?
– Não, meu rei. Ainda
há pouco o senhor pensava que nós
poderíamos ser irmãs, não avó e neta. Pois então! Nós somos irmãs no serviço da
Deusa, somos sacerdotisas e é isso que nos torna irmãs. Mais do que avó e neta,
somos irmanadas por nosso sacerdócio. Por isso ela pode me chamar somente de
Kyna e é assim que ela o faz na frente de todos. Normalmente ela só me chama de
avó quando estamos só as duas, em intimidade.
– Céus, mas a
semelhança entre vocês duas é impressionante! E como uma aparenta mais idade do
que tem e a outra faz exatamente o contrário, então vocês parecem mesmo irmãs.
Kyna começou a
rir e Vérica fez o mesmo.
– E do que riem
as irmãs em uníssono, agora?
– Ah, Majestade,
desculpe-nos. É que nós pensamos a mesma coisa: Isto é porque ele não viu Alana conosco. Se nos visse as três juntas...
– E quem é essa
Alana, posso saber?
– Claro, Majestade:
É minha mãe e filha dela.
– E ela tem o
mesmo rosto de vocês também?
– Exatamente o
mesmo. O rosto e o corpo. Em nossa família, nós não temos nenhuma
originalidade, usamos todas a mesma forma. Só que Alana tem os olhos azuis,
como os de Vérica.
– E onde está
ela agora?
– No templo da
Deusa, em Orléans. Evidentemente é sacerdotisa, como nós duas.
– Mas já não
existem templos celtas na Gália há muito tempo!
– Isso não é
verdade, meu senhor. Nós cultuamos a Deusa em qualquer templo erigido a uma
deusa. A qualquer deusa, como nesse templo de Orléans, que é romano, em honra a
deusa Vesta.
– Então sua
filha é uma vestal?
– De forma
alguma, Majestade! Que horror! Ela é livre para entrar e sair do templo a
qualquer hora. E, além disso, o papel que ela desempenha é muito mais político
e militar do que sacerdotal, embora também cumpra seus deveres de ofício.
– Kyna, devagar,
não estou entendendo! Você quer dizer que sua filha desempenha um trabalho
político e MILITAR em Orléans, através do templo de Vesta? É isso, ou entendi
errado? E se entendi certo, como é que isso pode acontecer?
Vérica fez um
sinal para Kyna e falou:
– Por favor,
avó, permita que eu explique. Kyna acabou de dizer-lhe, senhor, que eu sou tão
guerreira quanto sacerdotisa. Ora, minha mãe Alana também o é. Assim como a própria
Kyna, nunca queira enfrentá-la com uma espada, meu rei, o risco é muito alto.
E, claro, nunca terá que fazê-lo, porque, por ordem da Deusa, nós estamos aqui
para lutar a seu lado e, jamais, contra si.
– Ainda bem. Eu
não me sentiria nada seguro enfrentando um inimigo que pode ler meus
pensamentos. Mas, por favor, Vérica, me fale que trabalho político e militar é
esse.
– Claro, meu
rei. O trabalho de Alana, minha mãe e minha irmã de sacerdócio, é convencer o
rei Teodorico I, dos visigodos, a não fazer nenhum acordo com Átila e os hunos,
mas a aliar-se a seu pai, meu senhor – o general Flávio Aécio.
– Uma missão
impossível, minha jovem. Há meses que meu pai tenta convencer Teodorico a
aliar-se conosco e enfrentar o hunos. Mas aquele cabeça dura insiste em manter-se
neutro e deixar que o exército huno marche, através de seu território, mais
para o sul, a caminho da península itálica, de Ravena e da própria Roma. Ele
não quer ver que Átila o trairá no primeiro momento em que se convencer que
isso lhe é conveniente e estratégico.
– Fique
tranqüilo, senhor. Minha mãe e irmã não falhará. Nós sabemos.
– Vocês sabem?
Sabem o que? Sabem como?
– O que minha
neta quer dizer é que nós temos a Visão, majestade, faz parte dos nossos dons,
do nosso trabalho. E o que nós sabemos vai deixá-lo animando e feliz.
Pronuncie-o você, Vérica.
A moça fez que
sim com a cabeça, fechou os olhos e começou a respirar lenta e profundamente. A
seguir elevou as duas mãos abertas à altura dos ombros e ficou totalmente imóvel.
E então sua bela voz saiu com uma entonação diferente, como numa récita:
– Diz a Deusa que, com muito sacrifício, muita dor e
muitas perdas, nós expulsaremos o invasor huno para longe, muito longe das
terras gaulesas. E que este ponto onde estamos agora, esta cidadela, é
fundamental para a nossa vitória. E que para tornar essa vitória possível, nós
duas estamos aqui para ajudá-lo, rei Meroveu, da mesma forma que Alana agora trabalha
para convencer o rei Teodorico.
– Venceremos?
Mas isso é maravilhoso demais! Isso me diz que meu sacrifico e o de meus
homens, que nossa morte não será em vão. Ah, minhas preciosas sacerdotisas, se
a Deusa lhes diz isso, eu morrerei feliz por nossa terra e por nossa gente
que...
Mas Kyna interrompeu-o
com um sinal e declarou, com gravidade:
– A Deusa não
quer sua morte, rei Meroveu, e nem os deuses aceitam seu sacrifício. Eles o
querem vivo, conduzindo seu povo e seu reino.
– Mas Kyna, como
poderei não morrer nesta planície ou nesta fortaleza, ante o avanço das tropas
hunas, tão numerosas? Porque, vocês podem estar certas, antes que os hunos
possam tocar num único fio de cabelo de qualquer de vocês nesta cidadela, eles
terão que, primeiro, passar sobre o meu cadáver e os dos meus leais soldados.
Por isso não vejo como eu possa sobreviver. E não tenho o menor problema com
isso. Uma morte assim seria uma honra para mim. Repito: não vejo como
sobreviver a estes combates.
Kyna olhou
expressivamente para Vérica e as duas falaram praticamente ao mesmo tempo, em
perfeita sincronia:
– Para isso NÓS
ESTAMOS AQUI !
(CONTINUA.
Próximo capítulo: Em Orléans, Alana
seduz Teodorico. Meroveu discute seus planos com as sacerdotisas celtas. Os preparativos
acontecem. Os hunos chegam!
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