terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O  CERCO – 5 
MILTON  MACIEL e VOCÊ 

Resumo do cap. 4: No ano de 541 AD, em Orleáns, a 130 km de Châlons-en-Champagne, A sacerdotisa Alana entrega seu jovem corpo à concupiscência do rei dos visigodos, Teodorico I, como pagamento por ter ele enfim fechado um acordo de aliança com os romanos, alanos e burgúndios, formando assim um exército numeroso o bastante para opor resistência ao avanço dos hunos para o Sul. Em Châlons, as sacerdotisas Kyna e Vérica apresentam ao rei Meroveu seus planos de resistência a um outro grupo de hunos que se aproxima para tomar a fortaleza. Os hunos chegam.

O Primeiro Combate

Os batedores hunos se aproximaram o suficiente para serem visíveis das muralhas da fortaleza. São doze cavaleiros, que avançam devagar e com todo o cuidado, receosos de alguma emboscada. Trazem seus pequenos escudos presos ao braço esquerdo e cavalgam separados, espalhados por cerca de 100 metros de linha. Assim não serão alvos fáceis para as flechas dos francos, caso estes os estejam esperando escondidos. À sua frente, apenas um campo de pastagem muito alta e um rio para ser cruzado.

Os batedores cruzam a cavalo, sem dificuldade, o rio que, ao chegar na planície, tem pouca profundidade nesta época do ano. Mas a passagem com baixa profundidade, à altura dos joelhos dos cavalos, é estreita e os cavaleiros começam a se agrupar de novo, para atravessá-la. Um dos hunos, mais desconfiado, deixa-se ficar para trás, na outra margem, à espera que os demais terminem de vadear o rio. Quando isso acontece, então ele se põe em movimento em direção à passagem. Mas estaca imediatamente.

Do outro lado do rio, a 30 metros de onde está agora, ele vê surgir do nada, de dentro dos capins altíssimos que margeiam o rio, um grupo de arqueiros francos que estavam ali escondidos, agachados. Eles estão dos dois lados do grupo de onze batedores hunos e os crivam de flechadas instantaneamente. Os hunos são atingidos nos flancos e nas costas, sem ter qualquer tempo de elevar seus escudos, para se defender das flechas. Todos tombam e, ao cair, são novamente flechados a curtíssima distância.

O huno remanescente deu meia volta e galopou a toda velocidade em direção ao grosso de suas tropas, ainda bastante longe. Mas, num ponto a alguns metros do rio, do mesmo lado em que ele estava, surgiu, igualmente do nada, mais um arqueiro franco, que estava oculto no capim gigante. Era um apenas, escondido à espera de eventuais hunos fugitivos. O batedor foi então atingido mortalmente no peito, um único disparo prostrando-o já sem vida no chão. O arqueiro franco observou cuidadosamente o inimigo, tomou-lhe as armas todas e retornou andando calmamente em direção aos seus companheiros, na outra margem do rio. Estes estavam bastante surpresos: não sabiam que haveria arqueiros do outro lado também. Mas muito mais surpresos ficaram ao verem quem era o arqueiro que acabava de vadear o rio: não era um homem, era uma mulher, vestida com calças de montaria celta: Vérica! Era a jovem sacerdotisa!

Os homens jamais poderiam esperar que aquela moça aparentemente tão delicada e feminina, pudesse, de uma hora para outra, se travestir naquela figura de guerreira forte e aguerrida. E com uma incrível habilidade ao arco, de onde despedira um único e certeiro arremesso. Era impressionante: vestida assim como guerreira, de calças justas e uma blusa colante, molhadas pela travessia e com amplas pinturas escuras sobre a pele, parecia muito maior e muito mais musculosa do que poderiam imaginar. Seu arco era bem maior do que os deles, quem o tivesse que retesar, teria que ter, necessariamente, uma enorme força nos braços. E, sem dúvida, ela acabara de demonstrar que a tinha.

Os homens acorreram todos muito admirados e crivaram Vérica de perguntas. Quem era ela na verdade, porque, sendo guerreira, se travestira de sacerdotisa para enganá-los, como podia uma mulher ter força para trabalhar com aquele arco tão duro e grande, quem lhe dera ordens para se esconder do outro lado do rio? E, principalmente, como ela havia chegado a seu esconderijo sem que os arqueiros do lado sul da margem a tivessem percebido?

– Calma, arqueiros! Saí pelo outro lado da muralha, descendo com ajuda de cordas. Fui para a floresta até alcançar o rio e desci as corredeiras com uma canoa. Ela está lá, à altura do dique, agora.  Daí me esgueirei por dentro do capim, sempre do lado de lá do rio, até chegar ao ponto que me interessava. Se algum huno sobrasse, eu tinha que impedir sua fuga. E foi só isso que eu fiz.

– Só?! E você acha pouco, menina? E quem determinou que você viesse?

– Ora, minha a... Quer dizer, meu rei, é claro!

– O rei? E ele sabia que você era uma guerreira e não uma sacerdotisa. E sabia que podia confiar em você?

– Eu sou uma guerreira e sou uma sacerdotisa! Uma mulher celta pode ser as duas coisas ao mesmo tempo! E o rei confia em mim, sim senhor.

– Inacreditável. Moça. Mal vejo a hora de contar isso, um dia, para minhas filhas.

Um outro arqueiro então lhe pediu:

– Podemos ver você usando esse seu arco?

– Ah, vejo que você está pensando que aquele tiro lá do outro lado do rio foi pura sorte, não é?

– O homem enrubesceu visivelmente, mas fez com a cabeça que não.

Vérica tomou então seu arco da mão dos arqueiros que o examinavam e tentavam puxar a corda, admirados. E propôs:

– Aquele capacete huno tombado lá do outro lado do rio, do homem que eu acertei. Vamos atirar neles todos nós. Vocês primeiro.

Os arqueiros francos objetaram que o capacete estava muito longe para ser um alvo razoável, mas mesmo assim aceitaram o desafio. Todos os doze atiraram, fazendo mira cuidadosamente, mas nenhum acertou o alvo, embora as flechas não tivessem pousado muito longe dele. Aí todos se voltaram para Vérica.

Para surpresa deles, a moça pegou a arma, com a flecha apenas encaixada na corda do arco em repouso e virou DE COSTAS para o alvo. Então subitamente ela soltou um grito, girou o corpo com um salto, de uma forma incrivelmente rápida e ágil, e apareceu com o arco completamente flexionado, os músculos dos braços saltando inchados, impressionantes, pelo esforço feito. A flecha desprendeu-se do arco, produziu um silvo desconhecido para os francos e acertou o capacete em cheio, produzindo um som metálico agudo, arremessando-o para o alto, a grande distância.

– Convencidos? – falou Vérica rindo contente, dando as costas a todos e começando a caminhar para a fortaleza. Os arqueiros ficaram mais um tempo por ali, embasbacados com tudo o que tinham acabado de presenciar, feito por aquela mulher prodigiosa. De túnica, aparentemente só uma moça frágil como todas as outras. Mas vestida e pintada para a batalha, como a viram, uma guerreira impressionante, forte e ágil. E uma arqueira muito melhor que o melhor dentre eles.

– Se nossas mulheres fossem como essa daí, os hunos nunca teriam tido coragem de entrar em nossas terras.

– E nós apanharíamos delas todos os dias! – o que provocou uma gargalhada geral.

– Bem, vamos trabalhar, já tivemos lição de sobra por hoje. Vamos tratar de pegar todos os cavalos dos hunos e todas as armas e armaduras deles. Aí temos que botar os corpos sobre os cavalos e levá-los para o lado de lá do rio, junto com aquele que a mulher abateu. Então outro grupo virá da cidadela com óleo e tochas e queimará os corpos. Essas são nossas ordens. Não nos explicaram por que, nem eu perguntei.

Os arqueiros passaram então e executar essas tarefas e só retornaram à cidadela depois de concluí-las totalmente, trazendo consigo os cavalos, armas e armaduras dos vencidos.

Somente então o rei, ao conversar com os arqueiros,  tomou conhecimento da façanha da guerreira celta. Ao passar pela ponte levadiça, de volta da planície, ela havia coberto o corpo com sua túnica de sacerdotisa e não chamou mais atenção do que aquilo que já fazia normalmente – e que não era pouco! O grande arco e a aljava com setas, ela os deixou escondidos num ponto estratégico, no meio do capim gigante, que ela já havia escolhido previamente e onde deixara uma muda de roupas sacerdotais na noite anterior.

Meroveu correu em busca de Vérica:

– Fiquei sabendo de sua façanha com os hunos só agora. Estou admirado e contrariado.

– Contrariado meu rei? Mas por quê?

– Ora, por você não ter me consultado antes, por não ter pedido minha autorização para se expor a um risco tão grande assim.

– E o meu rei daria o seu consentimento?

– Claro que não!

– Então o meu rei já sabe por que eu não lhe pedi consentimento. Porque eu iria lá de qualquer jeito, Kyna determinou que eu fosse. Assim eu não precisei afrontar meu rei com um ato de desobediência.

– Mas... mas  você iria mesmo, se eu tivesse proibido? Quer dizer que a sacerdotisa Kyna manda mais que o seu rei?

– Majestade, Majestade... Não fique assim emocional e melindrado. O senhor já viu que Kyna sabe muito bem o que faz, que ela tem a Visão. E sabe que ela é tão guerreira quanto eu, o senhor e minha irmã e mãe Alana. Não foi dela o plano de esconder os arqueiros no capim gigante?

– Si...Sim. Mas a hierarquia...

– Majestade, se formos observar a hierarquia, vamos perder a guerra. Aliás, ela já estava sendo perdida e só mudou porque minha irmã e mãe Alana conseguiu mudar o pensamento de Teodorico I dos visigodos. É melhor que Vossa Majestade encare as coisas com mais serenidade. Nós já lhe dissemos para apresentar todas as idéias e todos os planos como sendo só seus. A nós também interessa fortalecê-lo ao máximo ante seus homens e, ainda mais, perante o inimigo. Mas, por favor, deixe que nós, as sacerdotisas, ou nós as guerreiras da Deusa – o que dá exatamente no mesmo – tomemos as decisões nesta guerra. Meu rei deve apenas implementá-las e combater com toda a sua perícia e coragem, que nós reconhecemos e admiramos. Assim estará entusiasmando seus homens e os civis – o que já não é pouco, admita.

O rei Meroveu ficou alguns instantes com o cenho erguido, a face toldada. Depois foi se descontraindo e, por fim, deu-se por vencido.

– Menina, tenho que admitir: você tem toda a razão. Acho que eu me excedi, pensei só em mim, em minha autoridade de rei, em meu receio de ser ridicularizado pela superioridade intelectual e bélica de duas frágeis e belas mulheres. Mas aí caí em mim, bastou pensar no que os arqueiros me contaram sobre seu tiro no capacete do huno, a mais de 50 metros de distância. Sim , reconheço que vocês de fato são superiores, que sabem muito mais do que eu sei, que têm poderes que eu não tenho, que podem ver no futuro e que, acima de tudo, estão aqui para nos ajudar. Então eu lhe peço humildemente perdão por meu orgulho ferido, por minha arrogância há pouco demonstrada. E diga a Kyna que mais tarde irei até ela para lhe agradecer por tudo que aconteceu hoje e para me desculpar também com ela.

Então o rei tomou a mão de Vérica, curvou-se rapidamente sobre seu joelho direito e, depositando um beijo na mão da moça, falou:

– Muito obrigado, minha brava guerreira, minha sábia sacerdotisa, por tudo o que fez hoje, por sua iniciativa, coragem e competência. E perdoe este seu rei orgulhoso e acostumado somente com bajuladores. Que os deuses a protejam e iluminem.

E o jovem rei Meroveu, erguendo-se, afastou-se rapidamente, sem dar tempo a Vérica de nada lhe responder. Tinha o pensamento em tumulto, tomar nas suas e beijar a mão daquela mulher fascinante o havia deixado confuso e transtornado. O coração ainda lhe batia acelerado quando subiu rápido as escadas da muralha, para se dirigir a seu ponto favorito de observação e meditação. Aquele abençoado lugar onde, poucos dias atrás, as mãos macias de Vérica o haviam amparado e acarinhado suavemente. Passou o resto da noite tentando se concentrar nos preparativos de guerra. Mas era Vérica que, a todo momento, invadia seus pensamentos. E, como não admiti-lo?, seu... CORAÇÃO!

Próximo capítulo: O segundo combate. Sábias decisões. Átila chega a Orléans. Em Châlons, os hunos com força máxima. 

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