MILTON
MACIEL e VOCÊ
Resumo
do cap. 4: No ano de 541 AD, em Orleáns, a 130 km de Châlons-en-Champagne, A
sacerdotisa Alana entrega seu jovem corpo à concupiscência do rei dos
visigodos, Teodorico I, como pagamento por ter ele enfim fechado um acordo de
aliança com os romanos, alanos e burgúndios, formando assim um exército
numeroso o bastante para opor resistência ao avanço dos hunos para o Sul. Em
Châlons, as sacerdotisas Kyna e Vérica apresentam ao rei Meroveu seus planos de
resistência a um outro grupo de hunos que se aproxima para tomar a fortaleza.
Os hunos chegam.
O Primeiro Combate
Os batedores hunos se aproximaram o
suficiente para serem visíveis das muralhas da fortaleza. São doze cavaleiros,
que avançam devagar e com todo o cuidado, receosos de alguma emboscada. Trazem
seus pequenos escudos presos ao braço esquerdo e cavalgam separados, espalhados
por cerca de 100 metros de linha. Assim não serão alvos fáceis para as flechas
dos francos, caso estes os estejam esperando escondidos. À sua frente, apenas
um campo de pastagem muito alta e um rio para ser cruzado.
Os batedores cruzam a cavalo, sem
dificuldade, o rio que, ao chegar na planície, tem pouca profundidade nesta
época do ano. Mas a passagem com baixa profundidade, à altura dos joelhos dos
cavalos, é estreita e os cavaleiros começam a se agrupar de novo, para
atravessá-la. Um dos hunos, mais desconfiado, deixa-se ficar para trás, na
outra margem, à espera que os demais terminem de vadear o rio. Quando isso
acontece, então ele se põe em movimento em direção à passagem. Mas estaca
imediatamente.
Do outro lado do rio, a 30 metros de onde
está agora, ele vê surgir do nada, de dentro dos capins altíssimos que margeiam
o rio, um grupo de arqueiros francos que estavam ali escondidos, agachados.
Eles estão dos dois lados do grupo de onze batedores hunos e os crivam de
flechadas instantaneamente. Os hunos são atingidos nos flancos e nas costas,
sem ter qualquer tempo de elevar seus escudos, para se defender das flechas.
Todos tombam e, ao cair, são novamente flechados a curtíssima distância.
O huno remanescente deu meia volta e
galopou a toda velocidade em direção ao grosso de suas tropas, ainda bastante
longe. Mas, num ponto a alguns metros do rio, do mesmo lado em que ele estava, surgiu,
igualmente do nada, mais um arqueiro franco, que estava oculto no capim
gigante. Era um apenas, escondido à espera de eventuais hunos fugitivos. O
batedor foi então atingido mortalmente no peito, um único disparo prostrando-o
já sem vida no chão. O arqueiro franco observou cuidadosamente o inimigo,
tomou-lhe as armas todas e retornou andando calmamente em direção aos seus
companheiros, na outra margem do rio. Estes estavam bastante surpresos: não
sabiam que haveria arqueiros do outro lado também. Mas muito mais surpresos
ficaram ao verem quem era o arqueiro que acabava de vadear o rio: não era um
homem, era uma mulher, vestida com calças de montaria celta: Vérica! Era a
jovem sacerdotisa!
Os homens jamais poderiam esperar que
aquela moça aparentemente tão delicada e feminina, pudesse, de uma hora para
outra, se travestir naquela figura de guerreira forte e aguerrida. E com uma
incrível habilidade ao arco, de onde despedira um único e certeiro arremesso. Era
impressionante: vestida assim como guerreira, de calças justas e uma blusa colante,
molhadas pela travessia e com amplas pinturas escuras sobre a pele, parecia
muito maior e muito mais musculosa do que poderiam imaginar. Seu arco era bem
maior do que os deles, quem o tivesse que retesar, teria que ter, necessariamente,
uma enorme força nos braços. E, sem dúvida, ela acabara de demonstrar que a
tinha.
Os homens acorreram todos muito admirados e
crivaram Vérica de perguntas. Quem era ela na verdade, porque, sendo guerreira,
se travestira de sacerdotisa para enganá-los, como podia uma mulher ter força
para trabalhar com aquele arco tão duro e grande, quem lhe dera ordens para se
esconder do outro lado do rio? E, principalmente, como ela havia chegado a seu
esconderijo sem que os arqueiros do lado sul da margem a tivessem percebido?
– Calma, arqueiros! Saí pelo outro lado da
muralha, descendo com ajuda de cordas. Fui para a floresta até alcançar o rio e
desci as corredeiras com uma canoa. Ela está lá, à altura do dique, agora. Daí me esgueirei por dentro do capim, sempre
do lado de lá do rio, até chegar ao ponto que me interessava. Se algum huno
sobrasse, eu tinha que impedir sua fuga. E foi só isso que eu fiz.
– Só?! E você acha pouco, menina? E quem
determinou que você viesse?
– Ora, minha a... Quer dizer, meu rei, é claro!
– O rei? E ele sabia que você era uma
guerreira e não uma sacerdotisa. E sabia que podia confiar em você?
– Eu sou uma guerreira e sou uma
sacerdotisa! Uma mulher celta pode ser as duas coisas ao mesmo tempo! E o rei
confia em mim, sim senhor.
– Inacreditável. Moça. Mal vejo a hora de
contar isso, um dia, para minhas filhas.
Um outro arqueiro então lhe pediu:
– Podemos ver você usando esse seu arco?
– Ah, vejo que você está pensando que
aquele tiro lá do outro lado do rio foi pura sorte, não é?
– O homem enrubesceu visivelmente, mas fez
com a cabeça que não.
Vérica tomou então seu arco da mão dos
arqueiros que o examinavam e tentavam puxar a corda, admirados. E propôs:
– Aquele capacete huno tombado lá do outro
lado do rio, do homem que eu acertei. Vamos atirar neles todos nós. Vocês
primeiro.
Os arqueiros francos objetaram que o
capacete estava muito longe para ser um alvo razoável, mas mesmo assim
aceitaram o desafio. Todos os doze atiraram, fazendo mira cuidadosamente, mas
nenhum acertou o alvo, embora as flechas não tivessem pousado muito longe dele.
Aí todos se voltaram para Vérica.
Para surpresa deles, a moça pegou a arma,
com a flecha apenas encaixada na corda do arco em repouso e virou DE COSTAS
para o alvo. Então subitamente ela soltou um grito, girou o corpo com um salto,
de uma forma incrivelmente rápida e ágil, e apareceu com o arco completamente
flexionado, os músculos dos braços saltando inchados, impressionantes, pelo
esforço feito. A flecha desprendeu-se do arco, produziu um silvo desconhecido
para os francos e acertou o capacete em cheio, produzindo um som metálico
agudo, arremessando-o para o alto, a grande distância.
– Convencidos? – falou Vérica rindo
contente, dando as costas a todos e começando a caminhar para a fortaleza. Os
arqueiros ficaram mais um tempo por ali, embasbacados com tudo o que tinham
acabado de presenciar, feito por aquela mulher prodigiosa. De túnica,
aparentemente só uma moça frágil como todas as outras. Mas vestida e pintada
para a batalha, como a viram, uma guerreira impressionante, forte e ágil. E uma
arqueira muito melhor que o melhor dentre eles.
– Se nossas mulheres fossem como essa daí,
os hunos nunca teriam tido coragem de entrar em nossas terras.
– E nós apanharíamos delas todos os dias! –
o que provocou uma gargalhada geral.
– Bem, vamos trabalhar, já tivemos lição de
sobra por hoje. Vamos tratar de pegar todos os cavalos dos hunos e todas as
armas e armaduras deles. Aí temos que botar os corpos sobre os cavalos e
levá-los para o lado de lá do rio, junto com aquele que a mulher abateu. Então
outro grupo virá da cidadela com óleo e tochas e queimará os corpos. Essas são
nossas ordens. Não nos explicaram por que, nem eu perguntei.
Os arqueiros passaram então e executar
essas tarefas e só retornaram à cidadela depois de concluí-las totalmente,
trazendo consigo os cavalos, armas e armaduras dos vencidos.
Somente então o rei, ao conversar com os
arqueiros, tomou conhecimento da façanha
da guerreira celta. Ao passar pela ponte levadiça, de volta da planície, ela
havia coberto o corpo com sua túnica de sacerdotisa e não chamou mais atenção
do que aquilo que já fazia normalmente – e que não era pouco! O grande arco e a
aljava com setas, ela os deixou escondidos num ponto estratégico, no meio do capim
gigante, que ela já havia escolhido previamente e onde deixara uma muda de
roupas sacerdotais na noite anterior.
Meroveu correu em busca de Vérica:
– Fiquei sabendo de sua façanha com os
hunos só agora. Estou admirado e contrariado.
– Contrariado meu rei? Mas por quê?
– Ora, por você não ter me consultado
antes, por não ter pedido minha autorização para se expor a um risco tão grande
assim.
– E o meu rei daria o seu consentimento?
– Claro que não!
– Então o meu rei já sabe por que eu não
lhe pedi consentimento. Porque eu iria lá de qualquer jeito, Kyna determinou
que eu fosse. Assim eu não precisei afrontar meu rei com um ato de
desobediência.
– Mas... mas você iria mesmo, se eu tivesse proibido? Quer
dizer que a sacerdotisa Kyna manda mais que o seu rei?
– Majestade, Majestade... Não fique assim
emocional e melindrado. O senhor já viu que Kyna sabe muito bem o que faz, que
ela tem a Visão. E sabe que ela é tão guerreira quanto eu, o senhor e minha
irmã e mãe Alana. Não foi dela o plano de esconder os arqueiros no capim
gigante?
– Si...Sim. Mas a hierarquia...
– Majestade, se formos observar a
hierarquia, vamos perder a guerra. Aliás, ela já estava sendo perdida e só
mudou porque minha irmã e mãe Alana conseguiu mudar o pensamento de Teodorico I
dos visigodos. É melhor que Vossa Majestade encare as coisas com mais
serenidade. Nós já lhe dissemos para apresentar todas as idéias e todos os
planos como sendo só seus. A nós também interessa fortalecê-lo ao máximo ante
seus homens e, ainda mais, perante o inimigo. Mas, por favor, deixe que nós, as
sacerdotisas, ou nós as guerreiras da Deusa – o que dá exatamente no mesmo –
tomemos as decisões nesta guerra. Meu rei deve apenas implementá-las e combater
com toda a sua perícia e coragem, que nós reconhecemos e admiramos. Assim
estará entusiasmando seus homens e os civis – o que já não é pouco, admita.
O rei Meroveu ficou alguns instantes com o
cenho erguido, a face toldada. Depois foi se descontraindo e, por fim, deu-se
por vencido.
– Menina, tenho que admitir: você tem toda
a razão. Acho que eu me excedi, pensei só em mim, em minha autoridade de rei,
em meu receio de ser ridicularizado pela superioridade intelectual e bélica de
duas frágeis e belas mulheres. Mas aí caí em mim, bastou pensar no que os
arqueiros me contaram sobre seu tiro no capacete do huno, a mais de 50 metros
de distância. Sim , reconheço que vocês de fato são superiores, que sabem muito
mais do que eu sei, que têm poderes que eu não tenho, que podem ver no futuro e
que, acima de tudo, estão aqui para nos ajudar. Então eu lhe peço humildemente
perdão por meu orgulho ferido, por minha arrogância há pouco demonstrada. E
diga a Kyna que mais tarde irei até ela para lhe agradecer por tudo que
aconteceu hoje e para me desculpar também com ela.
Então o rei tomou a mão de Vérica,
curvou-se rapidamente sobre seu joelho direito e, depositando um beijo na mão
da moça, falou:
– Muito obrigado, minha brava guerreira,
minha sábia sacerdotisa, por tudo o que fez hoje, por sua iniciativa, coragem e
competência. E perdoe este seu rei orgulhoso e acostumado somente com
bajuladores. Que os deuses a protejam e iluminem.
E o jovem rei Meroveu, erguendo-se,
afastou-se rapidamente, sem dar tempo a Vérica de nada lhe responder. Tinha o
pensamento em tumulto, tomar nas suas e beijar a mão daquela mulher fascinante
o havia deixado confuso e transtornado. O coração ainda lhe batia acelerado
quando subiu rápido as escadas da muralha, para se dirigir a seu ponto favorito
de observação e meditação. Aquele abençoado lugar onde, poucos dias atrás, as
mãos macias de Vérica o haviam amparado e acarinhado suavemente. Passou o resto
da noite tentando se concentrar nos preparativos de guerra. Mas era Vérica que,
a todo momento, invadia seus pensamentos. E, como não admiti-lo?, seu...
CORAÇÃO!
Nenhum comentário:
Postar um comentário