MILTON MACIEL
Ataliba caminhava
decidido e a sua decisão mais assente era que não iria trabalhar naquela quinta-feira,
por respeito a um grande santo, cuja efeméride seria comemorada na segunda
seguinte, quando seria feriado. Como pode um bom cristão trabalhar em uma quinta-feira,
se na segunda seguinte tem feriado religioso importante? Falta de respeito da
grossa, de piedade, de compostura!
Santo que merece
feriado não é qualquer santinho do pau oco, é santo dos grandes, elevada
hierarquia, potestade do céu. Como não se sentir desfeiteado o santo, se as
pessoas não se compõem, não se preparam desde cedo para ao grande dia? E olha
que santo afrontado pode ser muito perigoso. Não só não concede mais nada, mas
se aborrece de vez e não deixa nenhuma súplica do vivente chegar ao céu, que
dirá ser atendida. Uma desgraça...
Pois bem,
Ataliba fazia a sua parte. Pouco se lhe dava se os outros não fizessem as
deles. Feriado de santo na segunda? Pois ele se adiantava e entrava em preparação
desde hoje, noite de quinta, de lua cheia, de ar oloroso, de morna brisa. Contrição
de verdadeiro temente, de cristão de fé. Fé em que santo, mesmo?
Bem, isso não
vinha muito ao caso, como é que ele ia saber? Ataliba não era um homem
religioso, não entrava em igreja, não tomava bênção a padre. O que ele gostava
mesmo era de feriado. Para Ataliba qualquer feriado já era um dia santificado.
Imagina então se fosse um dia de santo no duro! Ou seria de uma santa? Bem
podia ser, afinal Ataliba não sabia mesmo o nome da excelsa criatura.
Ora, mas aqui um
acinte à lógica se estabelece. A bem da verdade, temos que reconhecê-lo, o fato
de Ataliba decidir não trabalhar nesta particular quinta-feira nada tinha de
especial ou de novo. Afinal, se medirmos em quintas-feiras, Ataliba não trabalhava
nesta, nem na que passou, nem nas últimas 936 quintas-feiras. Como o ano só tem
52 delas, isso perfaz exatamente 18 anos. Que é o tempo que Ataliba vive sem trabalhar.
– Opa, sem trabalhar não! Sem ter emprego ou ofício fixo,
isso sim. Mas sem trabalhar, não!
Está certo, está
certo, seja quem for que reclamou. Estamos escorregando sobre a verdade, falha
nossa, cabeça insensível para as sutilezas do trabalho benemérito, ainda que
inconstante e esporádico, do nosso herói.
Bem, mas como
fica a coisa, então? Ataliba não trabalha mas... trabalha? Que raio de ocupação
misteriosa é essa sua? Devagar como o andor, porque há muita sutiliza em jogo,
muitos são, na verdade, os ofícios que mestre Ataliba sabe exercer, quando
precisa ganhar algum. O da sedução, por exemplo, para citar apenas o primeiro
dos seus honestos afazeres de muita responsabilidade.
Mas, de novo,
estamos vendo as coisas – e as rotulando – com nossa pobre ótica de cientistas
formais, não compatível com a genialidade do nosso personagem. Sedução, dizemos
nós.
– Sedução um cacete! – diria Ataliba – Solidariedade! Solidariedade com S bem maiúsculo – E a explicação que ele dá
encerra toda a lógica deste mundo:
– Ora, você vê uma coroa caidaça, com ar de cachorro
pidão, solitária que ninguém mais ousa passar nos peitos sabe-se lá há quanto
tempo. Quem vai lhe fazer a fineza, o benefício? Quem vai lhe esquentar a cama
gelada de solteirona, viúva ou divorciada? Quem vai lhe dar do bem-bom com que
brincar, regalar os olhos, as mãos, a boca, fazer reverdecer a desperseguida já
madura e chocha, quem sabe descobrir tardiamente o regalo de virar do outro
lado?
Pois para toda
essa verborragia desatada de perguntas, a resposta é uma só: Ataliba Robério das Mercês
– Este vosso criado!
Ah, coerente
este Ataliba! Um criado do amor, um serviçal solícito, sempre pronto a fazer
felizes suas virgens redonzelas.
– Redonzelas?!!
Sim, para nosso
filósofo das ruas paulistanas, as mulheres maduras desamadas tornam-se
novamente donzelas. Redonzelas,
portanto. Criam um cabaço novo, renascido na alma, o pior de todos os cabaços,
duríssimo. Difícil de tirar, exige grande perícia, muita tática, maior técnica,
indizível cortesia, incansável carinho, incomparável paciência.
Paciência, já
sabemos, Ataliba tem de sobra. Toda a paciência do mundo, a paciência dos que não
têm pressa, dos que não têm obrigações nem compromissos e, não os tendo,
desconhecem a tirania dos cronogramas e nem mesmo relógio usam ou olham por aí.
Ora, para que perguntar que horas são? Coisa mais sem sentido!
Afinal, para um
verdadeiro Mestre da Vida, como nosso herói Ataliba, tempo é aquilo que você sente por dentro, tempo é algo de que você é o dono, de que você dispõe como
melhor que aprouver e convier. Ataliba não é escravo do tempo e,
consequentemente, de seus esbirros, os relógios, que trazem todos os outros
paulistanos atropelados, angustiados, esmagados entre suas engrenagens dentadas,
suíças; ou eletrônicas, chinesas.
Não, para o Sábio
o tempo existe para servi-lo, constitui-se num servo muito bom, ao invés de um
amo muito mau, como o é para o comum das criaturas.
Quanto a
técnicas, táticas, cortesias... Bem, o melhor é ouvir algumas das próprias
interessadas, das suas redonzelas redivivas, milagres de Lázaro do amor que Ataliba
distribui generosamente, em profusão, às mãos-cheias. Ouçamos, por exemplo, a renomada
manicure Nezinha do Brás:
“ Dívida de gratidão, seu moço, dívida difícil de
pagar. Nem tudo o que eu fizer chega para retribuir o bem que ele me fez. Olhe,
eu estava praticamente morta, morta por dentro, sabe? Eu estava resignada a
virar uma velha, me sentindo moça por dentro, desencantada de tudo, desiludida
de homem, descrente da vida. Ah, eu lhe digo, moço, que não tem coisa mais
triste, mais murcha, do que mulher mal-amada. Para mim agora é Deus no céu e
Santo Ataliba na Terra, meu salvador!”
Ou a respeitada
Solange Sacoleira, comerciante internacional de maravilhas de paraguaia procedência:
“Que coração de ouro! E outras... coisas, também. Para
mim, foi a diferença entre a morte e a vida. Me fez voltar a viver, será que é
pouco?
Extraído de “ATALIBA,
UM PAULISTANO FELIZ” – Milton Maciel,
IDEL 2009
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