quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013


AS RE-DONZELAS 
MILTON MACIEL 

Ataliba caminhava decidido e a sua decisão mais assente era que não iria trabalhar naquela quinta-feira, por respeito a um grande santo, cuja efeméride seria comemorada na segunda seguinte, quando seria feriado. Como pode um bom cristão trabalhar em uma quinta-feira, se na segunda seguinte tem feriado religioso importante? Falta de respeito da grossa, de piedade, de compostura!

Santo que merece feriado não é qualquer santinho do pau oco, é santo dos grandes, elevada hierarquia, potestade do céu. Como não se sentir desfeiteado o santo, se as pessoas não se compõem, não se preparam desde cedo para ao grande dia? E olha que santo afrontado pode ser muito perigoso. Não só não concede mais nada, mas se aborrece de vez e não deixa nenhuma súplica do vivente chegar ao céu, que dirá ser atendida. Uma desgraça...

Pois bem, Ataliba fazia a sua parte. Pouco se lhe dava se os outros não fizessem as deles. Feriado de santo na segunda? Pois ele se adiantava e entrava em preparação desde hoje, noite de quinta, de lua cheia, de ar oloroso, de morna brisa. Contrição de verdadeiro temente, de cristão de fé. Fé em que santo, mesmo?

Bem, isso não vinha muito ao caso, como é que ele ia saber? Ataliba não era um homem religioso, não entrava em igreja, não tomava bênção a padre. O que ele gostava mesmo era de feriado. Para Ataliba qualquer feriado já era um dia santificado. Imagina então se fosse um dia de santo no duro! Ou seria de uma santa? Bem podia ser, afinal Ataliba não sabia mesmo o nome da excelsa criatura.

Ora, mas aqui um acinte à lógica se estabelece. A bem da verdade, temos que reconhecê-lo, o fato de Ataliba decidir não trabalhar nesta particular quinta-feira nada tinha de especial ou de novo. Afinal, se medirmos em quintas-feiras, Ataliba não trabalhava nesta, nem na que passou, nem nas últimas 936 quintas-feiras. Como o ano só tem 52 delas, isso perfaz exatamente 18 anos. Que é o tempo que Ataliba vive sem trabalhar.

– Opa, sem trabalhar não! Sem ter emprego ou ofício fixo, isso sim. Mas sem trabalhar, não!

Está certo, está certo, seja quem for que reclamou. Estamos escorregando sobre a verdade, falha nossa, cabeça insensível para as sutilezas do trabalho benemérito, ainda que inconstante e esporádico, do nosso herói.

Bem, mas como fica a coisa, então? Ataliba não trabalha mas... trabalha? Que raio de ocupação misteriosa é essa sua? Devagar como o andor, porque há muita sutiliza em jogo, muitos são, na verdade, os ofícios que mestre Ataliba sabe exercer, quando precisa ganhar algum. O da sedução, por exemplo, para citar apenas o primeiro dos seus honestos afazeres de muita responsabilidade.

Mas, de novo, estamos vendo as coisas – e as rotulando – com nossa pobre ótica de cientistas formais, não compatível com a genialidade do nosso personagem. Sedução, dizemos nós.

Sedução um cacete! – diria Ataliba – Solidariedade! Solidariedade com S bem maiúsculo – E a explicação que ele dá encerra toda a lógica deste mundo:

– Ora, você vê uma coroa caidaça, com ar de cachorro pidão, solitária que ninguém mais ousa passar nos peitos sabe-se lá há quanto tempo. Quem vai lhe fazer a fineza, o benefício? Quem vai lhe esquentar a cama gelada de solteirona, viúva ou divorciada? Quem vai lhe dar do bem-bom com que brincar, regalar os olhos, as mãos, a boca, fazer reverdecer a desperseguida já madura e chocha, quem sabe descobrir tardiamente o regalo de virar do outro lado?

Pois para toda essa verborragia desatada de perguntas, a resposta é uma só: Ataliba Robério das Mercês

– Este vosso criado!

Ah, coerente este Ataliba! Um criado do amor, um serviçal solícito, sempre pronto a fazer felizes suas virgens redonzelas.

Redonzelas?!!

Sim, para nosso filósofo das ruas paulistanas, as mulheres maduras desamadas tornam-se novamente donzelas. Redonzelas, portanto. Criam um cabaço novo, renascido na alma, o pior de todos os cabaços, duríssimo. Difícil de tirar, exige grande perícia, muita tática, maior técnica, indizível cortesia, incansável carinho, incomparável paciência.

Paciência, já sabemos, Ataliba tem de sobra. Toda a paciência do mundo, a paciência dos que não têm pressa, dos que não têm obrigações nem compromissos e, não os tendo, desconhecem a tirania dos cronogramas e nem mesmo relógio usam ou olham por aí. Ora, para que perguntar que horas são? Coisa mais sem sentido!

Afinal, para um verdadeiro Mestre da Vida, como nosso herói Ataliba, tempo é aquilo que você sente por dentro, tempo é algo de que você é o dono, de que você dispõe como melhor que aprouver e convier. Ataliba não é escravo do tempo e, consequentemente, de seus esbirros, os relógios, que trazem todos os outros paulistanos atropelados, angustiados, esmagados entre suas engrenagens dentadas, suíças; ou eletrônicas, chinesas.

Não, para o Sábio o tempo existe para servi-lo, constitui-se num servo muito bom, ao invés de um amo muito mau, como o é para o comum das criaturas.

Quanto a técnicas, táticas, cortesias... Bem, o melhor é ouvir algumas das próprias interessadas, das suas redonzelas redivivas, milagres de Lázaro do amor que Ataliba distribui generosamente, em profusão, às mãos-cheias. Ouçamos, por exemplo, a renomada manicure Nezinha do Brás:

“ Dívida de gratidão, seu moço, dívida difícil de pagar. Nem tudo o que eu fizer chega para retribuir o bem que ele me fez. Olhe, eu estava praticamente morta, morta por dentro, sabe? Eu estava resignada a virar uma velha, me sentindo moça por dentro, desencantada de tudo, desiludida de homem, descrente da vida. Ah, eu lhe digo, moço, que não tem coisa mais triste, mais murcha, do que mulher mal-amada. Para mim agora é Deus no céu e Santo Ataliba na Terra, meu salvador!”

Ou a respeitada Solange Sacoleira, comerciante internacional de maravilhas de paraguaia procedência:

“Que coração de ouro! E outras... coisas, também. Para mim, foi a diferença entre a morte e a vida. Me fez voltar a viver, será que é pouco?

Extraído de “ATALIBA, UM PAULISTANO FELIZ” –  Milton Maciel, IDEL 2009


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