terça-feira, 15 de janeiro de 2013


O  “300”  
Ou: A precoce vocação de um menino para deputado   
MILTON MACIEL  

Título estranho, não é? Muita gente reclamou: Por que você não escreve por extenso: o Trezentos? Bem, se você tiver um pouco de paciência, vai ver que só usando o numeral é que eu posso contar a história direito.

O 300 é meu cunhado. É, mas não é culpa minha, pô! Cunhado a gente não escolhe, vem junto com o pacote de casamento. Inteiramente grátis. Quer dizer, isso para os cunhados dos outros. O meu não veio de graça coisíssima nenhuma. O que ele me custou de cara, virou o apelido dele. Vou contar.

A irmã dele e eu – a gente na casa dos 20 anos – estávamos no maior corpo a corpo no sofá da sala da casa dela. Todo mundo tinha saído, disso a gente tinha certeza. Pois então de onde é que surgiu aquele molequinho de nove anos apenas, com uma câmera fotográfica na mão? Ela curvada de joelhos, eu por trás dela ajudando na reza  tipo muçulmana, o tipo da coisa que se faz usualmente sem roupa, e aí ouvimos um clic!  Claro, era o capeta! Ele estava vendo tudo há não sei quanto tempo e tinha ido pegar a câmera do pai, que ele, precoce em tudo, já sabia usar.

A Neide deu o maior grito de pavor e correu com as roupas pro banheiro. Eu comecei a correr atrás do moleque, mas não rendia, tinha que ir me vestindo no caminho. Quando acabei de botar tudo, menos os tênis, ele já tinha corrido pra casa vizinha. E ali, da calçada, olhando triunfalmente pra mim, ele gritou:

– Manhêeee!

Puxa, a mãe estava ali do lado! Eu estava ferrado, tinha que impedir que aquele desgraçado contasse tudo e, pior, mostrasse o que tinha fotografado. Felizmente, naquele tempo era preciso esperar a revelação do filme, se fosse hoje, com máquina digital, eu tinha dançado na mesma hora.

O pai da Neide era um desembargador aposentado e o sujeito mais careta que eu já conheci. Ele tinha certeza que a filhinha dele era virgem. Vivia alardeando isso. Bem, ele estava absolutamente certo, mas só até que a sua inocente Neidinha fez quatorze anos. Depois disso, ela se divertia escondida, que remédio. Sabe como é, porteira que passa um boi, passa uma boiada. Mas, para o pai, ela mantinha a farsa da virgindade. Velho cretino!

Bom, a gente estava namorando há uns seis meses, éramos ambos jovens e liberais, acabamos nos gostando de verdade. Assim quando analisamos a tempestade que ia rolar assim que o capetinha contasse o que viu e entregasse a câmera ao pai, eu não tive dúvida:

– A gente casa!

A Neidinha não esperava essa minha atitude, caiu no maior chororô, levou mais de meia hora derramando lágrimas comovidas e me beijando apaixonada. Decidimos a estratégia a utilizar: eu ia pra casa, ela saía pro shopping e eu convocava meu velho para vir conversar com o velho dela, fazer o pedido. Aí a gente, se não anulava, pelo menos minimizava os efeitos devastadores de uma revelação bombástica do tipo: Sua filhinha não é mais virgem, estava dando de quatro...

Mas sabe o que aconteceu? Antes que eu saísse da sala, o diabo do moleque reapareceu. Sem a câmera, é claro. A Neide tentou aplicar o golpe da irmã boazinha, chorou, pediu, implorou. O moleque nem aí pra ela. Só olhava pra mim. Aí eu entrei na jogada, tratei de comprar o silêncio dele, perguntei se ele queria uma bola nova, um par de patins, um monte de outras coisas de guri e ele... nada! Por fim o pestinha falou:

– Quero uma carteira como a sua. Posso ver?

Tirei a carteira de couro, cara pra burro, e mostrei pra ele. Ele, sem cerimônia nenhuma, a tomou da minha mão e examinou tudo o que tinha lá dentro. Só se interessou pelo dinheiro. Tinha três notas de cem, que eu tinha acabado de retirar do caixa automático. Ele pegou as notas. Trezentos (300)!!!  Aí sacudiu a carteira invertida, fazendo cair o restante do conteúdo, retirou os documentos e colocou as três notas de volta. Fechou a carteira e se mandou com ela.

Da porta ele me disse:

– Fica frio, não vou mostrar pra ninguém, não vou falar nada. Quer dizer, só vou falar que você me deu a sua carteira de presente. Sem dinheiro, é claro. Vocês confirmem. Eu já sei botar e tirar o filme da câmera, já tirei e guardei bem escondido aquele lá. Sabe como é, garantia pro futuro, não é?

Nós ficamos ali bestificados. Nove anos! Que prodígio de mau caráter  temporão! Recordista mundial de precocidade em chantagem e extorsão! A Neidinha voltou a chorar, desconsolada. Eu, depois de pensar um pouco, tratei de acalmá-la.

– Meu amor, não precisa ficar com medo. Esse bandidinho vai ficar me achacando enquanto puder. Então a gente dá uma volta nele antes: Vamos manter o nosso plano. Eu vou em casa, conto tudo lá, meu velho é meu grande amigo, tenho certeza que ele vem hoje mesmo acertar os ponteiros com o seu. Enquanto isso, você trabalha a sua mãe. Quando o seu velho souber do estouro da boiada, ela ajuda a segurar e o meu pai, também. Aí eu apareço, junto com você, a gente dá uma de pecador, de Madalena arrependida, e trata de marcar logo a data do casamento.

Meu pai é um gênio! Chegou todo feliz na casa do desembargador, trouxe charutos (nenhum dos dois fumava!) e uma garrafa de champanhe. Explicou que era para festejar o casamento dos filhos deles, o desembargador ficou de queixo caído, mas gostou da idéia, nossa família é bem conceituada na praça. Aí ele completou o tratamento, dizendo que "a juventude de hoje em dia não tem mais cabeça, não sabe resistir às tentações, os dois tinham caído em pecado". Mas o filho dele era um homem de caráter, estava pronto para reparar o mal que fizera à moça, sabe, esse papos ridículos do século XIX. O velho dela primeiro quase enfartou. Depois, com a praticidade dos desembargadores, viu que o barco já tinha mesmo afundado e aceitou marcar o casamento pra dali a quatro semanas. Melhor não facilitar, sabe como é.

Pois foi assim, graças àquele moleque sardento, que eu casei com a Neidinha às carreiras. Não posso me queixar. Foi bom e continua sendo, a gente se gosta e se entende bem demais. Sou até obrigado a agradecer: Obrigado, 300!

Ah, sim, eu botei esse apelido nele, só o Neidinha sabia por quê. Foram os trezentos que ele me afanou, na sua primeira extorsão. Tive que agüentar outras, até o dia do casamento. Ele só aceitava dinheiro. E só notas bem novinhas. Acho que ele me arrancou uns oitocentos nesse tempo todo, incluindo aí o lance da compra final do filme não revelado.

Paguei achando que tinha sido tapeado, mas quando fui buscar a revelação, pelas risadinhas das moças da loja de fotografias, vi que era o filme autêntico. No fundo, o moleque foi até onde podia me arrancar algum, mas tinha resolvido poupar a irmã. Sinal que devia ter algum resíduo de ética naquele bandido temporão.

Ledo engano! Aquela foi a sua última ação ética na vida. Com ela, ele esgotou o estoque permanentemente. Bem, de cara eu saquei e falei pra irmã dele, já no dia seguinte ao flagra:

– Seu irmão tem uma grande vocação, pode escrever o que eu digo. Ele é um político nato. Procede com se já fosse um deputado federal, um DEPUFEDE, como dizia o Stanislaw Ponte preta. Eu tenho certeza que vou ver esse moleque envolvido com política, com tudo que é maracutaia do ramo, é só uma questão de tempo.

E não deu outra. Nestes trinta anos que se passaram desde o primeiro golpe dele, aplicado em cima de mim, o cara já foi: Tesoureiro encrencado da União Estadual de Estudantes. Depois, o mais jovem síndico de prédio, exonerado pela Assembléia dos Condôminos por superfaturamento das contas. Aí arranjou um misterioso patrocinador e foi se eleger o mais jovem vereador da cidade Criciúma, em Santa Catarina, onde ele nunca tinha pisado. E agora está em plena campanha para Deputado Federal pelo Estado do Amapá. Disse que aprendeu a lição com a raposa que é o atual padrinho político dele, que sempre se elege senador por aquele Estado sem nunca ter feito política no local. 

Eu fico satisfeito, por que cantei essa pedra quando o ladrãzinho tinha só nove anos. Deputado Federal, não ia dar outra coisa! E vou estender a minha profecia agora: nunca mais ele deixa de se reeleger.  E nunca vai querer ser outra coisa, senador, governador, ministro. Não dá. A vocação dele é só uma: DEPUFEDE. E com ele vai ser assim: “Uma vez DEPUFEDE, sempre DEPUFEDE. DEPUFEDE sempre eu hei de ser...”

(Esta é a postagem número 300 do nosso blog. Daí a pequena homenagem, neste conto leve)

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