MILTON MACIEL
Recebi um e-mail de mim mesmo. Algo super
comum hoje em dia. Mas não esse: esse vinha do FUTURO! Exatamente 12 anos, 6
meses e 3 dias no futuro: 9 de Julho de 2025. Claro, vocês vão achar que é só
erro do clock do computador de onde veio. Ou que foi gozação de alguém. Pois
não foi!
A começar pelo título: Fagulha, seu pateta! Aqui nesta cidade grande, onde vivo há doze
anos também, ninguém sabe desse meu apelido. Aliás, em minha cidadezinha natal,
de onde saí aos 15 para vir para cá, também não houve quem soubesse. Explico:
só uma pessoa lá me chamou assim, na intimidade. E ela morreu poucos dias
depois de me aplicar o apelido. Seu Madureira era um português de 60 anos,
muito amigo nosso, dono de uma banca de revistas. Ele me ensinava inglês,
quando eu tinha meus 9 anos. Assim: em simples conversas ali na banca. Ele
pegava revistas em inglês e me desafiava a traduzir a palavra que ele apontasse
no momento, sempre em títulos grandes associados a ilustrações coloridas. Eu
chutava, de acordo com a foto, e acabava aprendendo.
Quando errei cinco vezes uma palavra, spark, ele se irritou e deu a resposta: É fagulha, seu pateta! E dali em diante
passou a me chamar de Fagulha. Só ele fazia isso. E nunca o fez na presença de
outra pessoa. Só que ele morreu menos de um mês depois de inventar o apelido,
infarto fulminante. Fiquei sem meu primeiro professor de inglês. E sem o
apelido, para o resto da vida.
Por isso levei um choque quando li o título
daquele e-mail: Fagulha, seu pateta! O
remetente era EU MESMO. O endereço de e-mail do remetente eu nunca tinha visto:
fagulha@hvn.net. Quando li o texto, gelei:
“Fagulha, entes que você pense bobagem,
não, não sou o Seu Madureira. Eu sou você, seu pateta. Pateta, mil vezes
pateta! Viu a data do e-mail? Pois é isso mesmo. Eu estou escrevendo do FUTURO.
Seu futuro, seu imbecil! Droga de futuro graças a você, por isso eu vou
continuar chamando você de pateta, seu idiota. Sabe onde estou agora: no céu!
É, eu morri faz uma semana. Digo no céu para você entender, seu beócio. Só que
de céu aqui não tem nada. Não fica nas nuvens, nem nas estrelas. É um lugar
como outro qualquer na Terra.
Ta, tenho que admitir que é muito mais
bonito. Aqui a gente tem paz, algo que eu nunca conheci antes. Tem muita gente,
tudo gente comum como eu e você. Quer dizer, como eu e eu; ou você e você. Ah,
sei lá, não importa. O pessoal aqui não encrenca, vive legal, não precisa
trabalhar. Parece que depois de algum tempo eles arrumam um trampo pra gente,
mas não logo que a gente chega aqui. Parece mais uma clínica de repouso.
O maior barato é que tem uns laguinhos, um
monte deles, e eles funcionam como se fossem telões. E aí a gente aprende a
focalizar a vontade e, depois de alguns dias (É, é meio difícil no começo!) a
gente se reúne ao redor de um laguinho e pode ver as pessoas que deixou na
Terra, dá até pra ver noticiários e ler jornal. É um barato.
Engraçado que, no dia que eu me dei conta
que ia conseguir, era dia de Gre-Nal. Aí focalizei toda a minha concentração
nisso e, de repente, eu estava vendo o jogo no Beira Rio. Nós perdemos! E vi
que eu não estava sozinho na torcida, não: Quando o time deles fez o único gol
da partida, pelo menos uns quinze caras se levantaram pra comemorar gritando e
se abraçando. Um outro tanto amarrou a cara, alguns xingaram, como eu.
Bom, isso também não interessa. Estou
mencionando só pra você saber, sua besta, que tem os laguinhos aqui. Pois é por
causa do que eu vi num deles, no dia seguinte ao Gre-Nal, que eu estou
escrevendo esta mensagem. Sabe, foi a primeira vez que eu consegui ver a minha
esposa na Terra.
Conseguir essa sintonização é muito mais
difícil, por causa do desgaste emocional, mas a gente sempre chega lá. Eu
sempre fui apaixonado, louco por essa mulher. Desde que começamos a namorar, eu
nunca mais quis saber de outra. Fui fiel sempre. Ela era uma esposa perfeita:
linda, carinhosa, um vulcão na cama, trabalhadeira, solidária. A gente não teve
filhos, estávamos casados há 10 anos e meio quando eu adoeci.
Foi uma doença esquisita, que minou
rapidamente minhas energias. Ela tinha um médico de família, muito competente,
homem de seus quarenta anos, que foi quem cuidou de mim. Menos de um mês depois
da primeira crise braba, eu tive que ser internado às pressas. O Dr. Maurício
não arredava pé, era de uma dedicação espantosa. Quando eu fui para a UTI, aí
mesmo que ele estava por lá sempre que podia. Mas não adiantou.
Lembro da minha adorada triste pelos cantos
antes e, depois, chorando aos gritos, inconsolável, ao receber a notícia do meu
falecimento. Não adiantava o doutor ampará-la, os parentes e amigos recearam
que ela fosse se matar, tal o desespero que tomou conta dela. Ficaram vários
dias vigiando-a, o mesmo médico teve que tratar dela em casa. Você nem pode
imaginar o meu sofrimento, que era duplo: eu ia ficar sem meu grande amor para
sempre e ela ia sofrer brutalmente por causa da minha perda. Fiquei
revoltadíssimo. Xinguei Deus de tudo que é palavrão. Mas, é claro, não
adiantou. Horas depois já estava eu aqui neste lugar, com um monte de gente
tratando de me consolar e aliviar. Aliviar, aliviaram. Consolar, não!
Mas como eu estava contando, chegou o dia
em que eu já tinha treinamento suficiente para rever minha adorada. A água do laguinho
foi assumindo, para a minha visão, a forma de um vapor e, segundos depois, eu
estava tendo uma visão mais que celestial, muito melhor do que a que eu esperava
ver.
Ela estava deitada em nossa cama e
COMPLETAMENTE NUA! Fiquei em êxtase, contemplando toda aquela beleza. Cheguei a
ir às lágrimas, tal a emoção. Só que no segundo seguinte, tudo mudou. Do nosso
banheiro saiu um cara peludo. Peludo e pelado, também. Fiquei em estado de
choque, quis parar de ver na mesma hora, só que parece que o processo é meio
irreversível. Felizmente, eles não fizeram nada, já tinham feito, pelo jeito
tranqüilo dos dois. Mas o que eles falaram foi que me deixou ensandecido.
– Tudo seguro, amor? Você tem certeza que
não ficou nenhum vestígio mesmo? Posso dormir sossegada?
– Claro que tenho, querida. Afinal eu sou
médico ou não sou? Você deu o veneno pra ele em casa, mas o grosso do trabalho
fui eu que fiz no hospital, dando as injeções que fizeram ele piorar. E depois,
na UTI, quando eu desliguei um dos aparelhos o tempo suficiente para ele
apagar, estava garantida a nossa vitória. Já tinha dado tempo suficiente para
ele eliminar a maior parte do veneno da última injeção. Se eu não desligo a
máquina por uns minutos, ele começava a reagir e ia acabar ficando bom.
– Então não tem perigo mesmo, nenhum outro
médico vai ficar desconfiado?
– Claro que não, meu anjo. Ou você já
esqueceu quem fez a autópsia? Pois não foi o Oliveira, comigo junto, porque era
grande amigo da família?
– É, foi. Então você acha que eu já posso
entrar com os papéis na seguradora.
– Lógico, amor. Em coisa de trinta dias
você vai ser uma viúva rica. E alegre!
– É, alegre, sim. Não só pelo dinheiro, que
é bom é claro, quase um milhão. Mas por ter me livrado daquele mala e poder
ficar com você pra sempre, meu tesouro. E ai você pode vir pra cá, escondidinho
como agora por uns tempos, depois a gente casa e pronto. Vamos poder economizar
uma grana em motel. Imagine só o quanto nós gastamos nisso nestes quatro anos,
não é, meu tesão?
– Amooor! – E um tranqüilo beijo selou
aquele diálogo diabólico entre minha, até então, adorada mulher e o meu, até
então, dedicado Dr. Maurício.
Pois é, seu paspalho, fui assim que eu
morri. Fui assassinado pela minha doce esposa e por meu médico, que se comiam
há quatro anos. Enlouqueci por uns dias. Quis morrer! Mas não deu, eu já estava
morto! Pelo menos tecnicamente, estava. Mas aí morri de novo, emocionalmente. Bom,
mas não é isso que me leva a quebrar a regras daqui e conseguir um canal de
interação com o passado aí na Terra. O que eu quero te avisar, seu imbecil, é
que essa mulher linda e adorável é exatamente essa por quem você está
apaixonado agora. E que você vai cair direitinho na armadilha dela e da família
dela. Hoje eles vão fazer a coisa de um tal jeito, que você vai aceitar casar logo
com ela.
Não caia nessa, Fagulha, seu paspalho! Essa
filha da puta vai me matar, vai te matar, dentro de poucos anos. Estou
avisando. Cai fora, muda de cidade, faz qualquer coisa pra se livrar desse
monstro. VOCÊ TEM QUE NOS SALVAR!"
Pois é! Que coisa, que dilema. Ontem estive
com a Isildinha, nos beijamos, trocamos caricias, juras de amor. Como é que eu
vou acreditar que uma menina tão amorosa, tão frágil, tão sensível, seja capaz
de uma torpeza dessas. Não dá.
Pedi a mão dela em casamento. Vai ser em
Abril, daqui a três meses. Dane-se o e-mail! O cara do lado de lá está certo
numa coisa: eu sou mesmo um homem APAIXONADO!
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