MILTON MACIEL
Blush, rímel, sombra, batom – pronto, já pode sair. Se
pudesse não iria, a noite de sábado está fria, tem vento, vai penar com esse
vestidinho mínimo. Mas que remédio? A fome não lhe deixa opção, tem que ir à
luta. Abre a bolsinha, tira o penúltimo chiclete: ajuda a enganar o estômago,
suaviza o hálito. São sete e meia e ela desce agora a ladeira mal iluminada,
com passos firmes, apressados. Lá embaixo, mais dois quilômetros de caminhada
por ruas planas e chegará ao ponto, junto ao trapiche do rio, onde as
outras meninas e mulheres com certeza já estão, na triste espera de todas as
noites. Acelera ainda mais o passo, está atrasada. O esforço maior ajuda a
esquentar o corpo, engana o frio. As lembranças querem voltar, insistentes,
dolorosas, precisa espantá-las já. Começa mecanicamente a repetir sua ladainha
de todas as noites:
Deus, tenha pena de
mim. Me deixe ter um cliente hoje, um só que seja. Que ele não seja bruto. Que
ele não seja sujo. Que ele não seja enorme. Que aceite a proteção, que não me
passe coisa ruim. Deus, tenha pena de mim. Me ajude, por favor. Que eu não seja
assaltada. Que eu não tenha aquelas lembranças. As lembranças... Deus, tenha
pena de mim...
A garota repete as palavras incansavelmente, em voz alta, ninguém
além dela para ouvi-la naquele trecho da ladeira. A repetição afasta as
memórias ruins, a prece produz a ilusão de que esta noite pode, quem sabe, ser
melhor. No meio da descida, cruza com o velho da casinha de madeira sobre o
penhasco. Alto, forte, espigado, ainda um homem de bela presença, ele está
prestes a entrar em casa.
Ela lhe sorri um convite,
requebra mais, por um momento interrompe a descida. Quem sabe não tem a sorte
de se acertar com o homem, nunca esteve frente a frente com ele. Vê que ele lhe
lança um olhar interessado, encara suas coxas roliças. O coração da garota
dispara: sim, se ele quiser, ela não precisa ir para o ponto, entra na casa,
mata o desejo dele, pega o dinheiro e corre para matar sua fome muito mais
cedo. Deus, permita que ele me queira, tô com tanta fome!...
Mas o homem nada fala, está olhando fundo dentro dos olhos dela, o
que a faz sentir-se estranhamente perturbada. Fica sem jeito, balbucia um “boa
noite” tímido. Estranho: o velho parece mais perturbado ainda do que ela,
baixa o olhar, hesita, depois retoma os passos em direção à porta, transpõe a
soleira, gira a chave na fechadura. E, sem voltar a encará-la nos olhos,
gagueja um “boa noite, moça” em voz quase inaudível.
Não deu certo! Paciência, já está acostumada
com rejeição, incontáveis vezes a conheceu nestes três anos de profissão. Tem
agora quatorze, sua mãe forçou-a a prostituir-se aos onze. Mas a decepção,
embora seja só mais uma, acaba por vencer suas frágeis defesas e as lembranças
ruins rompem a barreira, incoercíveis.
Mais uma
vez se sente estremecer, as mãos do cunhado fecham sua boca e suas narinas, ela
tem dez anos, sufoca, desfalece. Ela tem onze anos, o macaco peludo para o qual
a mãe a vendeu arranca sua calcinha à força, no próprio quarto dela. A
tremedeira de novo, o frio é maior porque vem de dentro agora. As mãos do
marido da irmã profanam seu corpo sem curvas de criança; as mãos peludas do
amante da mãe machucam suas dobras delicadas. O cunhado a violou. E a mãe a
traiu, vendeu-a duas vezes, duplo Judas!
A vertigem volta, sempre vem quando a lembrança
irrompe, agora é mais forte por causa da fome, treme mais por causa do frio,
por mais que suas mãos delicadas apertem os braços enregelados. Irreprimíveis,
lágrimas rolam quentes sobre um rosto gelado, a vista se turva, a ladeira
desaparece, os dois homens e a mãe giram-lhe ao redor como espectros
inevitáveis, mais uma vez roubam o seu presente.
(continua amanhã)
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