segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A MENINA DA LADEIRA  - 1ª. Parte
MILTON  MACIEL
Blush, rímel, sombra, batom – pronto, já pode sair. Se pudesse não iria, a noite de sábado está fria, tem vento, vai penar com esse vestidinho mínimo. Mas que remédio? A fome não lhe deixa opção, tem que ir à luta. Abre a bolsinha, tira o penúltimo chiclete: ajuda a enganar o estômago, suaviza o hálito. São sete e meia e ela desce agora a ladeira mal iluminada, com passos firmes, apressados. Lá embaixo, mais dois quilômetros de caminhada por ruas planas e chegará ao ponto, junto ao trapiche do rio, onde as outras meninas e mulheres com certeza já estão, na triste espera de todas as noites. Acelera ainda mais o passo, está atrasada. O esforço maior ajuda a esquentar o corpo, engana o frio. As lembranças querem voltar, insistentes, dolorosas, precisa espantá-las já. Começa mecanicamente a repetir sua ladainha de todas as noites:
   Deus, tenha pena de mim. Me deixe ter um cliente hoje, um só que seja. Que ele não seja bruto. Que ele não seja sujo. Que ele não seja enorme. Que aceite a proteção, que não me passe coisa ruim. Deus, tenha pena de mim. Me ajude, por favor. Que eu não seja assaltada. Que eu não tenha aquelas lembranças. As lembranças... Deus, tenha pena de mim...
A garota repete as palavras incansavelmente, em voz alta, ninguém além dela para ouvi-la naquele trecho da ladeira. A repetição afasta as memórias ruins, a prece produz a ilusão de que esta noite pode, quem sabe, ser melhor. No meio da descida, cruza com o velho da casinha de madeira sobre o penhasco. Alto, forte, espigado, ainda um homem de bela presença, ele está prestes a entrar em casa.
 Ela lhe sorri um convite, requebra mais, por um momento interrompe a descida. Quem sabe não tem a sorte de se acertar com o homem, nunca esteve frente a frente com ele. Vê que ele lhe lança um olhar interessado, encara suas coxas roliças. O coração da garota dispara: sim, se ele quiser, ela não precisa ir para o ponto, entra na casa, mata o desejo dele, pega o dinheiro e corre para matar sua fome muito mais cedo. Deus, permita que ele me queira, tô com tanta fome!...
Mas o homem nada fala, está olhando fundo dentro dos olhos dela, o que a faz sentir-se estranhamente perturbada. Fica sem jeito, balbucia um “boa noite” tímido. Estranho: o velho parece mais perturbado ainda do que ela, baixa o olhar, hesita, depois retoma os passos em direção à porta, transpõe a soleira, gira a chave na fechadura. E, sem voltar a encará-la nos olhos, gagueja um “boa noite, moça” em voz quase inaudível.
Não deu certo! Paciência, já está acostumada com rejeição, incontáveis vezes a conheceu nestes três anos de profissão. Tem agora quatorze, sua mãe forçou-a a prostituir-se aos onze. Mas a decepção, embora seja só mais uma, acaba por vencer suas frágeis defesas e as lembranças ruins rompem a barreira, incoercíveis.
 Mais uma vez se sente estremecer, as mãos do cunhado fecham sua boca e suas narinas, ela tem dez anos, sufoca, desfalece. Ela tem onze anos, o macaco peludo para o qual a mãe a vendeu arranca sua calcinha à força, no próprio quarto dela. A tremedeira de novo, o frio é maior porque vem de dentro agora. As mãos do marido da irmã profanam seu corpo sem curvas de criança; as mãos peludas do amante da mãe machucam suas dobras delicadas. O cunhado a violou. E a mãe a traiu, vendeu-a duas vezes, duplo Judas!
A vertigem volta, sempre vem quando a lembrança irrompe, agora é mais forte por causa da fome, treme mais por causa do frio, por mais que suas mãos delicadas apertem os braços enregelados. Irreprimíveis, lágrimas rolam quentes sobre um rosto gelado, a vista se turva, a ladeira desaparece, os dois homens e a mãe giram-lhe ao redor como espectros inevitáveis, mais uma vez roubam o seu presente.
A menina pára. Sabe que tem que esperar que a vertigem passe, tem medo de cair, desmaiar, se machucar como em outras vezes. Apóia-se no muro de uma casa, respira ofegante, precisa se acalmar, os fantasmas têm que ir embora. Recomeça a ladainha, mais desesperada que nunca: Deus tenha pena de mim. Tire as visões... por favor... as visões...
(continua amanhã)

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