domingo, 27 de janeiro de 2013


LATA D’ÁGUA E MUITO AMOR:  
Você sabe o que é isso? 
MILTON  MACIEL 

“Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria.” (*)

Maria vai subindo o morro, subindo todos os morros do mundo, andando todas as caatingas, todos os sertões, todos os agrestes, todos os desertos, todos os vilarejos, todas as favelas de todas as cidades. Sabe, se você tivesse olhos de ver, veria que Maria mora aí bem perto de você.

Lá vai Maria, vilipendiada e destituída dos seus mais básicos direitos, como esse de ter acesso a água de qualidade. Ou a qualquer água que seja. Pela mão leva a criança e...

(Como? Ah, você quer que eu espere um pouquinho, não é que não esteja interessado no resto, mas é que você quer um tempinho pra pegar uma cervejinha gelada pra você e uma agüinha com gás pra patroa. Não, tudo certo, vai firme, eu espero). 

Bem, eu estava dizendo que lá vai Maria, no caso dela, uma Maria carioca,  morro acima. “Sobe o morro e não se cansa, Pela mão leva a criança...”

Pois é, que adianta Maria se cansar? Que adianta Maria reclamar. Pra quem? Sabe, ela está acostumada, faz isso desde criancinha. Tá, com uma vasilha menor, então, concordo. Mas você acha que isso é justo para uma criança? Acha que é certo que uma menina tenha que aprender desde cedo a andar com um fardo cada vez maior na cabeça, comprimindo sua coluna vertebral em desenvolvimento? A menina cresce, crescem o tamanho e o peso da lata cheia. E Maria sobe o morro todos os dias: menina, adolescente, grávida, mulher, mãe. Nessa ordem... Então, pela mão leva a criança e...

(Como? Quem mandou ficar grávida? Quem mandou abrir as pernas? Deu por que quis!  É isso que você está dizendo? Cara, você está me decepcionando. Será que além de insensível, você é tão burro assim? Pois deixe eu lhe refrescar a memória: Quantas menininhas abriram as pernas prá você, desde a sua puberdade e, quem sabe, se não até hoje, agora que você tem grana? Elas também deram por que quiseram, não foi? Eu espero que você nunca tenho forçado nenhuma, porque se eu souber, perco o controle e quebro essa sua cara gorda na mesma hora. Pára de coçar esse barrigão e me escuta direito, sem fazer observação imbecil. Senão eu perco o controle e...).

Bem, retomando depois da sua interrupção idiota:  Maria sobe o morro e pela mão leva a criança. Sim, porque ela, mãe solteira, assumiu seu filho com toda a dignidade e com todo o amor de que só em uma mulher-mãe é capaz. Não abandonou seu bebê. Não o deu pra ninguém criar. Não aceitou vendê-lo para adoção.

(Cara, Maria é digna, Maria é Mãe! Muito mais mãe do que aquela sua velha embotoxada que, quando você era criança, deixava você com as babás e sumia no mundo pra farrear).

Pois é, “Maria sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança”. Que vai crescendo assim, aos trancos e barrancos, vendo o sacrifício da mãe, se acostumando com a pobreza e a fome. Sabe o  que Maria faz para sobreviver??

“Maria lava roupa lá no alto, lutando pelo pão de cada dia”. Pois é, dureza! Lava lá no alto, tem que buscar água cá em baixo. Todo dia. Não tem feriado, não tem domingo. Lata d’água na cabeça, esforço que nenhum malandro agüenta fazer por muito tempo. Só Maria, que é forte, mais do que qualquer homem do pedaço.

(Você duvida? Pô, sua besta, ela é forte também POR DENTRO, na alma, é uma lutadora. E tem mais, tem uma coisa que nunca vai se poder dizer de você, seu molenga: Maria é HONESTA! Você é um verme esbanjador, um comilão, e um baita dum trambiqueiro. O dinheiro que você sonega não permite que Maria tenha água lá no barraco dela, lá em cima, sabia? É: o que você sonega e o que os seus parceiros ladrões, aquela curriola de políticos sanguessugas, desviam. Você, além de trambiqueiro nos negócios, é um explorador, paga salário de fome pros seus empregados e se vangloria disso com seu colegas de ramo. Como você é desprezível, sujeito!).

Pela mão leva a criança e nunca deixa essa criança longe dos seus olhos, dos seus cuidados. Por mais trabalho que dê, ela vai educando a criança, trabalha com ela ali no pé do tanque, finge uma alegria que não sente, canta samba pra ela o tempo todo, falando de coisas alegres, falando de esperança, explicando que a vida não é só dinheiro, mas que é carinho e amor também.

(Carinho e amor. Você sabe o que é isso? Não, tá na cara que não sabe. Essa sua mulher bonita e gostosa, cá pra nós, o despreza. Pô, você tá careca, barrigudo, gordão, feio pra burro. Além do mais, você tem o papo mais cacete do planeta, sujeito. Pra te aturar, só pela grana, mesmo. Coitada dela, se não fossem os primos que ela, de vez em quando, reencontra por aí, família enorme essa dela, não?)

Maria ama a criança, todo mundo percebe isso, sabe disso. Mas é só olhar nos olhinhos da criança para se ver que ela ADORA a mãe. Ah, mas é de adorar mesmo. Mãe valente, lutadora e, ao mesmo tempo, carinhosa igual a essa não existe fácil por aí, não. Ainda mais quando a luta é contra a miséria, é contra a falta d’água, é contra a gravidade, subindo morro várias vezes por dia com aquela enorme lata d’água na cabeça, subindo e descendo morro com aquela enorme trouxa de roupa na cabeça... Maria trabalha, ama e cuida, cara!

(Pois é, balofo molengão, você com certeza nunca conseguiu olhar os olhos de sua mãe com o amor, com a adoração que aquela criança tem no olhar quando contempla a mãe dela. Claro, Maria é Mãe, já falei! A sua... Bem, aquela velha embotoxada, empitanguizada de hoje foi o cão, péssima mãe!  Não é à toa que você está aí com a cara toda lambuzada, o barrigão todo respingado desse enorme pote de sorvete que você está devorando sozinho. Cara, não faz nem meia hora que você comeu como um porco. Dê-lhe carência afetiva! Olha o infarto, sujeito. Desse jeito ele não tarda. Não, pensando bem, vai em frente, Melhor assim. Assim você nos livra logo dessa sua presença asquerosa. Isso aí. Vai atacando seu sorvetinho, tem mais potes de dois quilos no freezer. Bom, chega de papo com você, não vou mais perder tempo com uma coisa amorfa e gelatinosa assim. Passar mal!)

E Maria sobe e desce o morro, lava roupa lá no alto, busca roupa cá em baixo. “Sonhando com a vida do asfalto, que acaba, quando o morro principia.” E ama sua criança, e cuida dela com amor, e passa fome para que ela não passe, e, ainda assim sonha com dias melhores pra sua criança, lá embaixo, no asfalto, que começa onde o morro principia. Ah, Maria, você não existe, criatura! Você é boa demais...

(*) LATA D’ÁGUA  - samba

Compositores: Luís Antônio - Jota Jr

Lata d'água na cabeça,
Lá vai Maria,
Lá vai Maria.
Sobe o morro e não se cansa,
Pela mão leva a criança,
Lá vai Maria

Maria 
Lava roupa lá no alto,
Lutando 
Pelo pão de cada dia, 
Sonhando 
Com a vida do asfalto,
Que acaba 
Onde o morro principia.

Link
:    http://www.vagalume.com.br/marlene/lata-dagua.html#ixzz2JAt1Djhq

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