LATA D’ÁGUA E MUITO AMOR:
Você sabe o que é isso?
MILTON
MACIEL
“Lata
d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria.” (*)
Maria
vai subindo o morro, subindo todos os morros do mundo, andando todas as
caatingas, todos os sertões, todos os agrestes, todos os desertos, todos os
vilarejos, todas as favelas de todas as cidades. Sabe, se você tivesse olhos de
ver, veria que Maria mora aí bem perto de você.
Lá
vai Maria, vilipendiada e destituída dos seus mais básicos direitos, como esse
de ter acesso a água de qualidade. Ou a qualquer água que seja. Pela mão leva a
criança e...
(Como? Ah, você quer que eu espere um
pouquinho, não é que não esteja interessado no resto, mas é que você quer um
tempinho pra pegar uma cervejinha gelada pra você e uma agüinha com gás pra
patroa. Não, tudo certo, vai firme, eu espero).
Bem,
eu estava dizendo que lá vai Maria, no caso dela, uma Maria carioca, morro acima. “Sobe o morro e não se cansa,
Pela mão leva a criança...”
Pois
é, que adianta Maria se cansar? Que adianta Maria reclamar. Pra quem? Sabe, ela
está acostumada, faz isso desde criancinha. Tá, com uma vasilha menor, então, concordo.
Mas você acha que isso é justo para uma criança? Acha que é certo que uma
menina tenha que aprender desde cedo a andar com um fardo cada vez maior na
cabeça, comprimindo sua coluna vertebral em desenvolvimento? A menina cresce,
crescem o tamanho e o peso da lata cheia. E Maria sobe o morro todos os dias:
menina, adolescente, grávida, mulher, mãe. Nessa ordem... Então, pela mão leva
a criança e...
(Como? Quem mandou ficar grávida? Quem
mandou abrir as pernas? Deu por que quis! É isso que você está dizendo? Cara, você está
me decepcionando. Será que além de insensível, você é tão burro assim? Pois
deixe eu lhe refrescar a memória: Quantas menininhas abriram as pernas prá
você, desde a sua puberdade e, quem sabe, se não até hoje, agora que você tem
grana? Elas também deram por que quiseram, não foi? Eu espero que você nunca
tenho forçado nenhuma, porque se eu souber, perco o controle e quebro essa sua cara
gorda na mesma hora. Pára de coçar esse barrigão e me escuta direito, sem fazer
observação imbecil. Senão eu perco o controle e...).
Bem,
retomando depois da sua interrupção idiota: Maria sobe o morro e pela mão leva a criança.
Sim, porque ela, mãe solteira, assumiu seu filho com toda a dignidade e com
todo o amor de que só em uma mulher-mãe é capaz. Não abandonou seu bebê. Não o
deu pra ninguém criar. Não aceitou vendê-lo para adoção.
(Cara, Maria é digna, Maria é Mãe! Muito
mais mãe do que aquela sua velha embotoxada que, quando você era criança, deixava
você com as babás e sumia no mundo pra farrear).
Pois
é, “Maria sobe o morro e não se cansa,
pela mão leva a criança”. Que vai crescendo assim, aos trancos e barrancos,
vendo o sacrifício da mãe, se acostumando com a pobreza e a fome. Sabe o que Maria faz para sobreviver??
“Maria lava roupa lá no alto, lutando
pelo pão de cada dia”. Pois é, dureza! Lava lá no alto, tem que buscar água cá em baixo.
Todo dia. Não tem feriado, não tem domingo. Lata d’água na cabeça, esforço que
nenhum malandro agüenta fazer por muito tempo. Só Maria, que é forte, mais do
que qualquer homem do pedaço.
(Você duvida? Pô, sua besta, ela é forte também
POR DENTRO, na alma, é uma lutadora. E tem mais, tem uma coisa que nunca vai se
poder dizer de você, seu molenga: Maria é HONESTA! Você é um verme esbanjador,
um comilão, e um baita dum trambiqueiro. O dinheiro que você sonega não permite
que Maria tenha água lá no barraco dela, lá em cima, sabia? É: o que você
sonega e o que os seus parceiros ladrões, aquela curriola de políticos
sanguessugas, desviam. Você, além de trambiqueiro nos negócios, é um
explorador, paga salário de fome pros seus empregados e se vangloria disso com
seu colegas de ramo. Como você é desprezível, sujeito!).
Pela
mão leva a criança e nunca deixa essa criança longe dos seus olhos, dos seus
cuidados. Por mais trabalho que dê, ela vai educando a criança, trabalha com
ela ali no pé do tanque, finge uma alegria que não sente, canta samba pra ela o
tempo todo, falando de coisas alegres, falando de esperança, explicando que a
vida não é só dinheiro, mas que é carinho e amor também.
(Carinho e amor. Você sabe o que é isso?
Não, tá na cara que não sabe. Essa sua mulher bonita e gostosa, cá pra nós, o
despreza. Pô, você tá careca, barrigudo, gordão, feio pra burro. Além do mais,
você tem o papo mais cacete do planeta, sujeito. Pra te aturar, só pela grana,
mesmo. Coitada dela, se não fossem os primos que ela, de vez em quando,
reencontra por aí, família enorme essa dela, não?)
Maria
ama a criança, todo mundo percebe isso, sabe disso. Mas é só olhar nos olhinhos
da criança para se ver que ela ADORA a mãe. Ah, mas é de adorar mesmo. Mãe
valente, lutadora e, ao mesmo tempo, carinhosa igual a essa não existe fácil
por aí, não. Ainda mais quando a luta é contra a miséria, é contra a falta
d’água, é contra a gravidade, subindo morro várias vezes por dia com aquela
enorme lata d’água na cabeça, subindo e descendo morro com aquela enorme trouxa
de roupa na cabeça... Maria trabalha, ama e cuida, cara!
(Pois é, balofo molengão, você com
certeza nunca conseguiu olhar os olhos de sua mãe com o amor, com a adoração
que aquela criança tem no olhar quando contempla a mãe dela. Claro, Maria é
Mãe, já falei! A sua... Bem, aquela velha embotoxada, empitanguizada de hoje
foi o cão, péssima mãe! Não é à toa que
você está aí com a cara toda lambuzada, o barrigão todo respingado desse enorme
pote de sorvete que você está devorando sozinho. Cara, não faz nem meia hora
que você comeu como um porco. Dê-lhe carência afetiva! Olha o infarto, sujeito.
Desse jeito ele não tarda. Não, pensando bem, vai em frente, Melhor assim.
Assim você nos livra logo dessa sua presença asquerosa. Isso aí. Vai atacando
seu sorvetinho, tem mais potes de dois quilos no freezer. Bom, chega de papo
com você, não vou mais perder tempo com uma coisa amorfa e gelatinosa assim.
Passar mal!)
E
Maria sobe e desce o morro, lava roupa lá no alto, busca roupa cá em baixo.
“Sonhando com a vida do asfalto, que acaba, quando o morro principia.” E ama
sua criança, e cuida dela com amor, e passa fome para que ela não passe, e,
ainda assim sonha com dias melhores pra sua criança, lá embaixo, no asfalto,
que começa onde o morro principia. Ah, Maria, você não existe, criatura! Você é
boa demais...
(*) LATA D’ÁGUA - samba
Compositores: Luís Antônio -
Jota Jr
Lata d'água na cabeça,
Lá vai Maria,
Lá vai Maria.
Sobe o morro e não se cansa,
Pela mão leva a criança,
Lá vai Maria
Maria
Lava roupa lá no alto,
Lutando
Pelo pão de cada dia,
Sonhando
Com a vida do asfalto,
Que acaba
Onde o morro principia.
Link: http://www.vagalume.com.br/marlene/lata-dagua.html#ixzz2JAt1Djhq