MILTON MACIEL
38 – DE MENINA A GUERREIRA
Fim do cap. 36: "Também a sua experiência de iniciação sexual tinha sido a melhor possível, pois Leon Schlikmann lhe servira de companheirinho de jogos infantis primeiro e, depois, de parceirinho sexual de uma forma natural, espontânea, sem grilos.
Já ela, Gládis, tivera um enorme número de abordagens, cantadas,
assédios, bolinas, tentativas de estupro, um inferno! Sua bunda, desde
menininha, parecia que tinha um ímã gigantesco, atraía tudo quanto era pinto
duro inoportuno nas encoxadas de condução, ainda em Santos. Depois que escapou,
por pura esperteza e muita velocidade para correr, de duas tentativas de
estupro, aos dez e onze anos, ficou esperta e, por conta própria, aprendeu a se
defender com técnicas de judô e karatê. E se encontrou quando foi admitida em
um curso gratuito só para meninas, dado por uma abnegada instrutora da Polícia
Militar.
Essa moça, a sargento Joyce Paranhos, foi de grande importância em sua
vida. Encontrou-a em uma cabine de polícia na orla da praia de José Menino,
justamente quando conseguiu fugir de dois sujeitos que tentaram pegá-la à força,
quando passava por um construção meio abandonada. Com uma enorme agilidade
natural, ela escapou do primeiro abraço por trás e conseguiu dar um tranca-pé
no outro homem, derrubando-o e tendo tempo de correr. Correu assustada até
encontrar a cabine de polícia e, para sorte sua, ali estava a policial Joyce,
que a ouviu e acalmou.
A policial saiu a caminhar com a menina pela praia, parou num quiosque,
comprou sorvete e, depois, cachorro-quente e refrigerante para a garotinha.
Ganhou sua simpatia e confiança. Depois pegou a viatura e foi levar a menina em
casa, no Gonzaga. Ali conversou longamente com a avó de Gládis, na época Carmen
já estava trabalhando em São Paulo. Conseguiu convencer a avó a deixar a menina
praticar técnicas de autodefesa. As palavras de Joyce, um verdadeiro anjo que
caiu em sua vida na hora e minuto exatos, ficaram para sempre muito vivas na
memória da garota; foi a primeira vez que ela ouviu a expressão inglesa sex appeal:
– Gládis, você já está ficando uma mocinha e acontece que você já é, e
vai ser cada vez mais, uma mocinha diferente.
Muito diferente. Você tem uma coisa que a gente tem ou não tem. Nasce com ela
ou sem ela. Você nasceu com a coisa. E muito, muito forte. Lá fora chamam isso
de sex appeal, que quer dizer apelo sexual. Ou seja, você tem uma
coisa que atrai os homens com muita força, com uma intensidade anormal. É tão
forte em você, que, já aos seus onze anos, faz os caras ficarem tarados por
você. Aí os mais desequilibrados assediam ou tentam pegar você à força. Foi o
que aconteceu hoje e pode acontecer de novo, várias vezes. Você não tem como
evitar essa sua força e ela, se bem usada, até pode lhe ser favorável em certas
ocasiões. Mas você vai estar sempre exposta à ação desrespeitosa ou até mesmo
agressiva de homens anormais. Por isso é que eu acho que você tem que aprender
a se defender, a praticar um tipo de luta que nós aprendemos na Policia
Militar. Sua avó concordou e eu me ofereço para ser sua instrutora, totalmente
sem custo para vocês.
Gládis ficou fascinada com a oferta, sempre tivera uma admiração muito
grande por mulheres de ação, policiais, militares, lutadoras. Aceitou encantada
e a policial Joyce passou a frequentar a cada delas duas ou três vezes por
semana, na saída do seu serviço. Aí foi a vez da PM ficar encantada com a
facilidade com que a menina aprendia tudo, com a dedicação com que ela se
entregava à prática, horas a fio sozinha, e, depois, obrigando a coitada da avó
a servir de sparing. Quando Gládis
fez doze anos, Joyce disse que não tinha mais nada que ensinar à garota, que
até já estava começando a aprender alguns golpes que a menina descobrira em
livros na biblioteca pública, em espanhol.
O fato foi que a instrutora declarou Gládis plenamente capaz de se
defender sozinha de ataques sexuais de todos os tipos. E de tentativas de
agressão com punhos, pontapés, porretes e arma branca. A menininha era um
verdadeiro prodígio. Pouco depois Joyce conseguiu uma promoção e foi
transferida para Batatais, no interior de São Paulo. Ao vir se despedir, trouxe
um presente especial para sua pupila e ensinou-a a usá-lo: um soco inglês! Sua
garota estava pronta, era um prodígio, um caso único. Ai de quem se metesse com
aquela menina já tão alta e com musculatura tão desenvolvida. E, mais do que
tudo, com tanta habilidade natural e tanta experiência de treinamento
acumulada.
E a prova dos noves não demorou muito a acontecer. Na escola, durante uma
aula, ela pediu para sair, para ir ao banheiro. Na saída dele, dois molecões de
mais de dezesseis anos, que a viram entrar e estavam cabulando aula, estavam
esperando por ela. No mesmo instante ela percebeu o que ia acontecer – sua
bendita intuição! – e se preparou para reagir. De fato, um dos rapazes, muito
forte, a segurou por trás e tapou sua boca com a mão; o outro levantou sua saia
e levou a mão para a calcinha dela. Ele chegou a notar que a pochette que a menina tinha presa à
cintura estava aberta. Não deu importância, estava mais interessado na maciez
tépida que seus dedos estavam encontrando.
Mas os dedos da garota estavam enfiados em uma coisa metálica e
brilhante, que estivera até então dentro da pochette! Isso nenhum dos dois viu. Até que o de trás deu um berro horrível, os dedos do
pé esmagados por um pisão dado pelo calçado escolar da menina, que ela dizia
que era “forte e feio como sapato de
padre”. Então os dois, o da frente primeiro, o de trás depois, descobriram
o que é e para que serve um soco inglês. A mão da garota subiu de repente,
liberados que estavam seus braços do arrocho do sujeito de trás e aquela coisa
metálica fez o maior estrago na cara do imbecil que estava com os dedos
mergulhados na sua calcinha. O sangue espirrou e ela pulou para não ser
atingida por ele. Isso a colocou de frente para o agressor de trás. Então o
soco inglês abriu duas brechas impressionantes na cara desse sujeito, que já
tinha o pé arrebentado.
Logo a seguir os dois agressores estavam sentados no chão, sangrando
e gemendo, a menina em pé, com o soco inglês na mão direita, que estava toda
avermelhada. Ela então lhes mostrou uma foto pequena, plastificada, que tinha
na pochette:
– Esta aqui comigo é a minha irmã, oficial da Polícia Militar, foi ela
que me ensinou a lutar e me deu este soco inglês, que arrebentou as caras de
vocês. E me ensinou a atirar e me deu um revólver pra mulher, que eu vou trazer
pra escola a partir de amanhã. Hoje vocês só apanharam. A partir de amanhã, o
primeiro que se meter comigo, leva chumbo, tá morto. E comigo não acontece
nada, sou menor de idade como vocês e minha irmã livra a minha cara. E agora
vocês desapareçam, porque eu vou telefonar pro batalhão e ela vai providenciar
que a PM dê um jeito em vocês. Aí é que vocês vão ver o que é apanhar, vão
ficar com saudade de mim. Podem ir para casa, podem se esconder onde quiserem,
que a polícia acha vocês.
Com a mentira da irmã PM e a mentira do revólver, a espertíssima Gládis
conseguiu insuflar tal pânico nos dois que eles saíram correndo porta afora na
mesma hora. Eram péssimos alunos, maus elementos, viviam criando encrenca e
matando aula. Nunca mais apareceram.
Gládis levou um bom tempo lavando as mãos e o soco inglês. E voltou para
a aula com toda tranquilidade, como se nada tivesse acontecido, passando o resto do período grudada na foto
plastificada, agradecendo vezes sem fim a seu anjo da guarda, a oficial Joyce
Paranhos da Polícia Militar de São Paulo.
O NÃO!!!
O maior trabalho que Gládis teve, no exato início do treinamento físico
de Larissa, foi ensiná-la a gritar NÃO!
– Isso, é absolutamente vital. Enquanto você não conseguir gritar não com toda a força e toda a raiva,
você não vence o seu medo.
– Mas por que?
– Porque você precisa aprender a transformar seu medo em indignação e
sua indignação em raiva. Quando um cara te ataca sexualmente, ele está fazendo
a pior, a mais horrorosa, a mais desrespeitosa afronta que uma mulher pode
receber.
– Sim, é verdade, é mesmo.
– É o cúmulo do desrespeito a um ser humano, o cara se achando no
direito de profanar, de penetrar o teu corpo contra tua vontade. Geralmente as
mulheres ficam apavoradas, mortas de medo então.
– Eu ficaria, tenho certeza.
– Pois aí é que está o erro, Fofinha.
Os caras sabem disso, contam com isso. A mulher fica paralisada, travada, com
medo de levar porrada, de ser penetrada e seviciada. E de ser assassinada no
fim.
– Que coisa horrível, acontece tantas vezes...
– Acontece todos os dias, dezenas de vezes por dia, nem 10% dos casos
chegam a conhecimento da polícia, as mulheres agredidas morrem de vergonha do que
aconteceu e morrem de medo da retaliação do estuprador, que sempre ameaça matá-la
se ela o denunciar. Isso sem falar que, nesta sociedade machista calhorda, não
vai faltar quem diga que a estuprada é a culpada, porque estava usando esta ou
aquela roupa chamativa, ou porque saiu de noite, ou porque passou por um lugar
perigoso. “Estava pedindo”, dizem muitos homens e até algumas mulheres muito filhas
da puta!
– E o grito?...
– O grito serve para você vencer o seu medo, você troca seu medo por sua
raiva, nascida da indignação de ser desrespeitada assim. Se você travar, se
você não gritar não, só está favorecendo a ação do desgraçado. Ele já está
começando o ataque, não vai parar mais até conseguir enfiar dentro de você. Se
você gritar de medo, ele vai te embolachar, te encher de porrada pra você
parar ou desmaiar.
– Mas você diz que tem que gritar...
– Tem que gritar NÃO! Olhando o filho da puta nos
olhos, sem mostrar medo, só mostrando raiva. Ele está te ameaçando e você
também está ameaçando o maldito. E aí você se coloca nesta posição aqui, ó:
– Desse jeito que você está?
– Exatamente assim: Você afasta as pernas, arqueia levemente o corpo,
ergue os braços à altura dos ombros, mas voltados para a frente, as mãos
abertas e voltadas para o sujeito, numa posição típica de luta, pronta para o
ataque. O imbecil não espera ter que enfrentar uma mulher que pode reagir com ameaça, que pode atacar também, que dê a impressão que aprendeu a lutar. Muitos caras afinam e fogem já nessa hora, vão procurar uma vítima mais fácil.
– Mas que ataque que eu posso fazer, Gládis? Ainda mais com os braços,
que vocês disseram que não têm força e...
– Não é que não tenham força, menina! Não têm tanta força como os do
homem à sua frente, mas têm força suficiente para acabar com ele em um segundo,
um segundo somente!
– Mas como? Atacando a cara dele? E com as mãos abertas? Dando tapas?
– Não, Fofinha, atacando os OLHOS dele!
– Os olhos?!
– Sim, isso mesmo. Atacando os olhos dele com os seus DEDOS e as as suas UNHAS. Você vai
receber treinamento específico para isso, vai praticar centenas de vezes,a té ficar automático. Você está
com os 10 dedos perto da cara do sujeito. Basta que só um, um único deles, atinja um dos olhos e pronto, o estrago está feito. O cara jamais vai esperar
por isso, o seu treinamento capacita você a jogar um bote ultrarrápido, o
imbecil não tem como se defender de um ataque que ele não espera, que é rápido demais
para admitir esquiva ou revide. Quando ele vê... Bem, ele vê é um ou mais dedos
seus invadindo o olho dele. Ou os dois olhos ao mesmo tempo, porque você joga o
bote nos dois. E, a partir daí, ele está acabado.
– Mas só com isso?!
– Só? Que tal lembrar o que você sente quando entra um cisco no seu
olho.
– Ai, é horrível, arde, dói, enche d’água, só de imaginar dá um arrepio!
– Pois é, agora imagine um dedo entrando com toda a sua força no olho do
cara. Tanto faz se o olho está aberto ou se ele chegou a fechar a pálpebra, o que geralmente não dá tempo de fazer. O efeito é o mesmo. Ele está acabado. A dor é completamente insuportável e ele perde a visão
daquele olho na hora. Isso se tiver sorte. Porque, se não tiver – e não merece
ter – o dedo simplesmente fura o olho dele!
– Que horror! E sangra?
– Claro. E, nesse caso, o cara já ficou cego daquele olho na mesma hora. E é pra
sempre, pro filha da mãe nunca mais esquecer o que aconteceu nesse dia.
– Que massa!...
– Mas isso é assunto para outro dia, você vai treinar isso com o Celso,
que tem uma técnica maravilhosa para ensinar o ataque aos olhos. Agora eu só
quero preparar você para gritar não e para reagir a um ataque sexual
por trás. Vamos ao grito de novo.
– Mas Gládis, se eu der um berro aqui, o que a Sonia Assad, o pessoal
dela, mais algum hóspede que estiver aqui, vão pensar?
– E você acha que eu já não avisei a menina dela, que estava lá na
portaria quando a gente entrou? Não conversei rapidinho com ela? E você acha
que a gente já não fez muito barulho aqui, com os nossos treinamentos? E você
acha que eu já não catequizei essa garotinha também? Pois vou lhe dizer: ela já
aprendeu a gritar não e a aplicar
alguns golpes de defesa.
– Nossa, a Samira? Quem diria...
– Ela não é bonitinha e gostosinha? E está louquinha pra dar, é virgem,
por incrível que pareça. E isso, minha filha, é como mel pra atrair formiga,
parece que os homens aspiram um feromônio nas meninas nessa fase. Eu já percebi
que ela está dando corda num corretor malandro, que é casado e que já, já, come
a garota. Se eu deixar, é claro.
– Ué, você pode fazer algo?
– Claro que posso, Fofinha. Ainda não me decidi, mas é quase certo que
eu vou dar um corridão nesse besta. É muito melhor quando a primeira vez é com
alguém que a gente gosta e ele também gosta da gente, vai continuar um tempo
com a gente, não é? Aquele miserável vai comer e cair fora, é claro. Se a
menina ficar vidrada nele, vai sofrer à toa.
– Nossa, Gládis, você é demais. Até nisso você pensa...
– Bem, eu estou aproveitando as lições que eu e a Paula estamos dando para a menina e
abrindo os olhos dela, ensinando como é que ela tem que fazer para dar e se
realizar como mulher, sem se tornar joguete na mão de um cafajeste qualquer,
como esse corretor. Mas chega de papo furado, pode começar a gritar.
Larissa bem que tentou, mas ou o grito falhava, ou saía baixo demais, E
ela ficava vermelha como pimentão cada vez que tinha que gritar. E foi assim
durante muito tempo, até que Gládis recorreu ao recurso que estava reservando
para o fim:
– Muito bem. De novo. Posição de espera, braços entreabertos. O direito
um pouco mais alto que o esquerdo. Isso. O corpo um pouquinho mais arqueado.
Agora eu vou ser o cara que vai atacar você. Eu chego e grito o nome do cara. Pronta?
– Pronta.
Gládis avançou com ímpeto asustador em direção a Larissa e gritou o nome do atacante:
– Adolfo Schlikmann! Vou te comer na marra, sua puta!
– NÃAAAAO!!! – O berro de Larissa foi ensurdecedor, até ela ficou
assustada com ele.
– Pronto, Fofinha, saiu!
Parabéns. É simples assim.
Larissa deixou-se cair no chão, chorando copiosamente, aos soluços,
muito alto. Por uma fração de segundo ela viu efetivamente o velho Schlikmann
avançando para ela, aquele pau maldito em riste, o sorriso sarcástico de
superioridade, o olhar lúbrico de fauno em cio. O grito veio lá do fundo de sua
alma. E não foi um grito de medo! Como Gládis lhe ensinara, de repente toda a
sua revolta, sua indignação, sua raiva daquele velho desgraçado tinham encontrado
caminho para o mundo exterior através de sua garganta.
Gládis nada fez, deu tempo para que a criança abusada de 12 anos pudesse
se libertar através do choro convulsivo da criança de 23. Que, neste exato
momento, estava dando passagem a uma mulher adulta de 23 anos pela primeira vez!
Quando enfim a crise de choro passou, Larissa conseguiu falar:
– Meu Deus, o que foi isso? Que grito horroroso! Como é que eu fiz isso?
De onde eu arranjei tanta força na voz?
– Da sua raiva, mocinha. De sua santa e abençoada raiva. Agora você está
pronta para a parte final do nosso treino de hoje. Agora eu vou ensinar você a
pisar em pé, dar cotovelada em plexo solar e em nariz. E vou ensinar você a
derrubar um homem com um mínimo de esforço. E aí você vai estar pronta para a
sua primeira grande ação de correção.
– Como assim, correção...
– Ah, minha filha, você pode ser um anjinho, mas sua instrutora aqui é
uma capeta das piores, sua amiga não é boazinha como você, não sabe perdoar. E
está com um filho da puta atravessado na garganta desde que você lhe contou as
chantagens e os estupros de um certo velho porco.
– Nossa, Gládis! Você vai bater nele?
– Não, eu não!
– Puxa, do jeito que você falou, até fiquei com receio que você...
– Eu não vou bater nele, mas outra pessoa vai, Fofinha.
– Outra pessoa? Nossa, quem?
– Você, Dona Larissa Silva. Você!
CONTINUA
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