sábado, 12 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 27   
MILTON MACIEL  

27 – CASTIGO FINAL
Fim do cap. 26: "– Mata nada, gente, isso aí é um ridículo, um cagão, anão de jardim, um palhaço.
Foi a derradeira passada da capa vermelha. Todos viram, horrorizados, Valdemar Silva dar cinco vezes com o dedo no gatilho, atirando à queima-roupa, com a arma encostada no seio de Gládis De Rios!" 

Mas não se ouviu estampido algum. Foram cinco tlec-tlec suaves, metálicos. A arma tinha falhado!

Maldito revólver, o que aconteceu?!  – perguntou-se, atônito, Valdemar Silva, sem compreender mais nada.

Gládis de Rios enfiou a mão no bolso esquerdo da calça. Remexeu ali e saiu com alguma coisa dentro da mão fechada. Então abriu-a calmante na frente do aparvalhado e possesso assassino em potencial, perguntando:

– É isto que você procura, debiloide?

Na bela mão aberta, seis douradas balas de 38 brilhavam ao sol.

– Vem buscar.

Mais uma isca que funcionava. O homenzinho se atirou em direção àquela maldita mão, precisava pegar aquelas balas, carregar o revólver, descarregá-lo todo contra a desgraçada.

Mas, mais uma vez, a incrivelmente ágil e lúcida moça apanhou o braço que avançava e fez o homem girar, desta vez sem sair do chão, levando-o a fazer um rodopio vertical ao redor de si mesmo. O braço da mão que segurava o revólver apareceu agora preso firmemente atrás do corpo do homem, que gemia de dor, a mão à altura dos omoplatas. Mais um pouco de pressão e ele, com um grito, soltou a arma, que se estatelou no chão com estardalhaço. Um segurança deu um salto e a segurou. 

Então Gládis concluiu sua obra. E o fez com toda calma, dizendo primeiro:

– Seu maluco, você tentou me matar na frente de toda esta gente! Cinco tiros! E me chamou de puta, de vagabunda. Olhe, tudo isso, até os tiros, até que não me incomoda muito. Mas você me chamou de filha da puta. Então você ofendeu minha mamita. Isso sim, me deixa puta. Não tem perdão. Azar seu, seu asqueroso, que o meu maior defeito é justamente esse: Gládis de Rios não sabe perdoar!

E, fazendo um gesto rápido, mas com muita energia, forçou o braço preso para trás e para cima além de todo limite. Ouviu-se um cloc estranho, alto, duas vezes. E as articulações do braço direito de Valdemar Silva foram detonadas instantaneamente. Um berro lancinante acompanhou a surpresa do homem. As dores eram absolutamente insuportáveis. Então Gládis procedeu à última etapa do tratamento de choque do paciente:

– Hora de nanar, neném. Não pra anestesiar você da dor, mas porque ninguém merece ficar ouvindo esse berreiro de velha histérica.

E vibrou-lhe um certeiro golpe de cutelo atrás do pescoço. Valdemar Silva desabou na mesma hora como um saco de batatas, inconsciente.

Gládis dirigiu-se a um dos seguranças:

– Pegue um carro, vá buscar a polícia, o delegado. Foi por isso que fiz esse animal dormir. Tentativa de assassinato assim deve ser crime inafiançável, não se pode perder o flagrante. Vá, rápido!

Apenas oito minutos depois, quando o delegado Amaral chegou com dois praças, Valdemar Silva ainda dormia. Teve então a confirmação daquela história sem pé nem cabeça, que o segurança da Teles jurava, no carro, que era verdade. Ali havia mais de vinte pessoas que tinham testemunhado tudo, inclusive a própria filha do sujeito, que já estava em pé, recuperada do desmaio. 

O homem tinha tentado agredir a mulher diversas vezes, no soco, na pedra e na bala. Mas tinha levado a pior sempre, apanhara como se fosse uma criança, apanhara de uma mulher aparentemente frágil e delicada. E bonita, danada de bonita! Como é que ele podia acreditar que aquela coisinha gostosa, sem sequer uma única marca de luta, um arranhado no corpo, um amassado na roupa, tinha feito todo aquele estrago em um homem baixo, porém retaco, gordote e forte, como o ex-caminhoneiro, hoje o homem mais rico de Amarante.

Aos poucos, enquanto se convencia que aquilo tudo era verdade e que o homem mais rico de Amarante passava à condição de réu de tentativa de assassinato, com cinco malogradas puxadas de gatilho à queima-roupa, o delegado viu que poderia estar tirando a sorte grande. Tinha que encanar o homem em seguida, lavrar o auto de prisão em flagrante, aproveitar enquanto ele ainda estava desacordado, arrolar todas as testemunhas e aí esperar que o milionário chamasse os advogados, obtivesse o habeas corpus e ganhasse a liberdade. É claro que, depois disso, nada ia acontecer com ele. Um homem com todo o dinheiro que ele tinha, nunca seria condenado em um julgamento. Ainda mais que seria julgado ali em Amarante mesmo.

Mas agora tinha que aproveitar esse maná que caia do céu. Era levar o homem, cumprir a lei, criar o máximo de dificuldades, para poder vender, muito caro, facilidades pra ele depois. Já foi pensando em como é que podia ajeitar aquela espelunca para criar um aposento ao menos sem pulgas e baratas, para o homem passar uns poucos dias, antes de ser solto pelo habeas corpus. Como carcereiro do ricaço, tinha que ser generoso, magnânimo, para receber a gratidão do pitoco. Pitoco que estava todo encrencado mesmo. Que sorte pra ele, Otílio Amaral!

Aí olhou para a moça toda contente com a proeza dela, cercada por todos, sendo tratada como um grande herói de revista em quadrinhos por aqueles tontos todos e lamentou. Puxa, uma gata tão linda, tão gostosa, um tesão que dava nos bagos... E ia virar presunto logo, tão logo o Valdemar tivesse condições de encomendar a morte dela. Que desperdício!

Fantasiou, enquanto anotava depoimentos, que conseguia convencer a gostosa a fugir do Brasil para salvar a pele. Fugia com ele, Otílio Amaral, seu herói e salvador. Atravessavam o pantanal, entravam na Bolívia, despistavam seus perseguidores fugindo para o Peru pelo lago Titicaca, ela toda derretida de amores pelo seu macho, pedindo sexo fogoso todos os dias, várias vezes por dia. Depois de uns dois anos, ele se fartava, enjoava dela, negociava a venda da presa para o ainda furioso e sempre vingativo Valdemar Silva, que mandava executar a desafeta no Peru, pagando a módica quantia de dois milhões de dólares pela entrega da prisioneira.

Ah, era mulher demais aquilo! Que pena que era areia demais pro caminhãozinho dele, que só podia devanear com ela, que nunca tinha comido e jamais ia comer na vida, na facha, sem pagar uma fortuna, uma deusa como aquela. Esse mundo era muito injusto mesmo!

No fim, conformou-se e tratou de tirar da cabeça o corpo, a bunda, os peitos, a cara, a boca daquela gata. De qualquer jeito, dentro de pouco tempo, se ele não ia comer, a terra ia. Valdemar Silva não brincava em serviço e ele sabia, de fonte segura, que outras vezes ela já tinha dado de comer à terra, que apascentara com diversos corpos de desafetos e concorrentes.

Mandou colocar o desacordado Valdemar na viatura, com algemas colocadas nos pulsos, com o estranho braço todo desconjuntado já inchando de maneira assombrosa. Era chegar na delegacia e mandar buscar o Doutor Bernardo urgente. Quando aquele homem acordasse, ia fazer um berreiro dos diabos, precisava socorro médico mais do que urgente.

Outro que ia ficar numa boa, o Doutor Bernardo! Uma bela grana, talvez até uma boa cirurgia. Otílio Amaral devaneou de novo: Ele era o médico, chegava na delegacia, dava um sossega-leão violento na veia do nanico, daqueles de fazer elefante dormir um dia inteiro, levava pro hospital e operava na marra, num monte de lugares, precisasse ou não. Quando o unha-de-fome acordasse, enfim, apresentava a conta milionária. Largava a polícia, ia viver no Caribe. Mas, saindo do devaneio, perguntou-se: Será que não daria para ele pegar uma beirinha na cobrança real do Dr. Bernardo, nem que fossem uns míseros dez por cento?  Tinha que ver isso com o médico.

Outro que ia se dar muito bem era o Gimenes, o dono do jornal e da rádio. Quanto o Silva não ia pagar praquele cachaceiro venal, para que a imprensa local não caísse em cima do escândalo? O nanico apanhando de mulher, sendo todo quebrado e estropiado por uma gata daquelas de fechar o comércio, que matéria que não ia dar, coisa para explorar por semanas inteiras! Essa ia ser uma grana pesada, aí o delegado podia, com certeza, abiscoitar uma comissão respeitável. É, tinha que ligar para o Gimenes e marcar um papo ainda hoje, para combinarem estratégias e valores.

Ah, se todo mês uma cabeça coroada dessas caísse nas garras da lei, aí sim ia compensar ser delegado de uma cidade morfética como aquela, quase sem crimes de gente realmente com dinheiro, gente que podia irrigar as bolsas de muitos como ele.

Valdemar Silva voltou a si na sala do delegado, já sob efeito de sedativos e analgésicos, aplicados pelo Doutor Bernardo. O médico havia recolocado as articulações nos lugares e imobilizado braço e antebraço com pré-gesso. Chapas de raios-X e um ortopedista eram necessários, mas isso só no hospital, teria que esperar a soltura. O milionário parecia um leão enjaulado, não aceitava que ele, sendo quem era e tendo o que tinha, tivesse que ficar mais do que um dia ainda naquela delegacia imunda.

Seu advogado, o velho Aristides Lobo, apareceu em seguida e disse que ele precisava de um especialista, um criminalista, o que não era a praia dele. Saiu dali com um polpudo cheque assinado e a missão de buscar em Florianópolis o melhor especialista que encontrasse, pagando-lhe um sinal de 50% sobre o serviço, para que viesse logo a Amarante, para conseguir o tal habeas corpus e tirá-lo imediatamente daquela pocilga. 

O velho Aristides Lobo calculou que conseguiria isso com uns 60% do valor do cheque, tinha que fazer uma composição com o colega de Florianópolis, para que eles rachassem a diferença a mais no valor do chequeAgora que estava praticamente aposentado, na modorra das pequenas causas de Amarante, seu odioso genro havia lhe colocado um apelido que infelizmente havia pegado: o Lobo do Lar!


 Na Teles o assunto era só um: como é que Gládis de Rios tinha conseguido fazer aquilo tudo com um homem que, embora baixo, era forte e retaco como um touro.

A razão não era desconhecida por nenhuma de suas outras colegas de venda, Paula, Jennifer e, muito menos, sua mãe Carmen: Gládis de Rios era uma especialista em artes marciais! Normalmente ela não falava jamais sobre isso. E a razão era óbvia, tinha aparecido claramente momentos atrás, na sua tourada. Era o fator surpresa! Ninguém, muito menos um homem, podia esperar que uma mulher de aparência tão jovem, tão bonita e tão sensual, fosse capaz de reagir a uma agressão da maneira que ela podia reagir.

Gládis tratou de se livrar do burburinho e de se afastar das outras pessoas, especialmente os homens. Foi encerrando os papos e entrando na empresa, levando em comboio as colegas, inclusive uma ainda muito trêmula Larissa. Conduzi-as até a sala da gerência e ocupou a cadeira de Carmen, dizendo:

– Ai, mamita, permita um instantinho de descanso da guerreira.

– Claro, meu amor. Você sabe que esta sala é nossa e que tudo o que é meu é seu. E como você merece esse descanso!

– Bem, na verdade eu não fiquei nem um pouquinho cansada, eu quase não fiz força, quem fez força foi o Touro Sentado.

Carmen bateu os pés em ritmo, bateu palmas e estalou os dedos como castanholas, num belo e rápido passo de flamenco, com um gracioso giro sobre si mesma. E exclamou, sorrindo:

– Olé!

– Mas eu cansei a mente; seja como for, foram momentos de muita tensão. Mas agora já está tudo bem, tudo normal.

Só então Larissa, ainda muito assustada, conseguiu falar:

– Como é que você pode, como é que consegue?!! Deus do céu, como você é incrível, como você é maravilhosa! E agora ainda por cima, fica nessa calma toda... Ai, eu fiquei tão apavorada, tão assustada, que desmaiei... Me diz, pelo amor de Deus, como é que você consegue enfrentar um homem assim?

– Calma, Fofinha – falou Jennifer – essa aí sabe tudo de autodefesa feminina, de artes marciais, de krav-magá.

– De que? O que é isso, crav... crav o que?

Paula respondeu:

Krav-magá é uma forma de luta corpo a corpo israelense. A nossa subgerente aí é fera nisso e num monte de outras formas de luta. Só que a gente mantem isso em segredo e não conta para ninguém, principalmente para homens.

– Mas por que, Paula?

– Ora, para não perder a vantagem do fator surpresa. Como aconteceu com você, que está de queixinho caído.  E com aquele canalha do... bem, do seu pai, que deve estar é de queixo quebrado. Desculpe, mas ele é um canalha.

– Não se desculpe, Paula. Ele é isso mesmo, eu sempre tive, além de muito medo, muita vergonha dele.

– Bem, você viu uma boa parte do que a Paula fez com ele. Você viu com que calma, com que sangue frio ela agiu. Ao passo que ele...

– Agiu o tempo todo como a fera que sempre foi, um bruto, um primitivo, um animal.

Gládis assumiu o leme:

Fofinha, a gente veio pra cá, longe dos homens, pra dizer o resto do segredo só pra você. TODAS nós sabemos lutar.

– Nossa! Todas vocês... as quatro?! Até sua mãe?

– Até Dona Carmen de Rios, que me ajudou e ajuda muito nos treinamentos. E, claro, tanto Paula, quanto Jennifer, se forem atacadas por alguém, seja mulher, seja homem, podem fazer picadinho da criatura em poucos segundos.

– Mas... Mas o que aconteceu? Por que vocês todas quiseram aprender essas coisas tão brutas, tão violentas, essas lutas de homem?

Fofinha – atalhou Carmen de Rios – aí é que você se engana. Essas não são lutas de homem. São de homem e de mulher também.

– Mas mulher não tem força, não pode...

– Errado de novo, garota – disse Jennifer – Isso é o que as pessoas pensam. E até que é bom pra gente que elas pensem assim. Mas mulher tem, sim, muita, muita força.

– Mas força como? Onde?

Carmen de Rios assumiu seu tranquilo ar professoral de mamita e explicou:

– Querida, a gente não tem a  mesma força de um homem nos braços, não tem da cintura para cima. Mas, em compensação, da cintura para baixo...

– Da cintura para baixo?...

–Aí a gente é igual ou melhor do que eles – garantiu Paula, triunfante.

– Melhor?... Eu não consigo entender como...

Jennifer voltou à carga:

– Fofinha, como é que o homem atacou a Gládis?

– Bem foi com soco, que eu saiba. Como ele sempre fez comigo...

– Muito bem. E como foi que a Gládis contra-atacou o dito cujo? Foi com soco? Foi com os braços?

– Não, foi com os ... OS PÉS!!! É isso! Isso é que quer dizer o da cintura pra baixo!

– Bingo, Fofinha! Agora você entendeu a mecânica da coisa. Só que não foi exatamente com os pés.

– Não foi, Gládis? Mas o sapatão que bateu nele...

– Menina – falou Paula – pé não tem força nenhuma. Quem tem força é COXA! E quadril e perna. O pé só vai na onda, é a ponta da nossa arma mais importante para golpear. Veja só o coxão dessa aí – e apalpou a coxa direita de Gládis, por sobre o  moleton esticado – Venha, aperte aqui você também.

Larissa aproximou-se e apertou com as duas mãos a ampla circunferência da coxa de Gládis, um palmo acima do joelho.

– Minha nossa, como é dura! Parece de madeira...

– Coxa e perna de atleta e de bailarina de flamenco, de sapateadora, garota. Na nossa firma, acho que é difícil achar um homem que tenha coxa e perna forte assim como a dela. Com exceção, é claro, do nosso instrutor, nosso mestre de artes marciais.

– Ué, mas tem um homem assim na empresa? De perna e coxa superforte? Eu nunca vi, não faço a menor ideia de quem...

– Ah, você já viu, Fofinha, já viu sim. Está cansada de ver todos os dias.

– Eu?! Mas quem, então, Paula? O Lucas? Mas ele não é fortão. É algum homem da segurança, então?

– Não, Fofinha. É um homem da administração.

– Nossa, da administração? Então tem um cara que eu ainda não conheço na empresa, é isso?

– O que é isso, garota? Eu não disse que você vê esse cara todos os dias. Pense bem: Você vê todos os dias e o cara é da administração.

– Mas, Paula, o único homem assim aqui na firma é... é... Ah, não, não pode ser quem eu estou pensando agora... É demais!

– Bingo de novo, menina! Duplamente: acertou e o cara é demais, muito demais mesmo.

O chefe!!! Mas ele não é lutador, é jogador de futebol. O lutador é o Nicanor da obra.

Carmen explicou pacientemente:

– Larissa, minha filha Gládis sabe lutar melhor que nós três e que qualquer homem, exceto o Celso. E nem por isso ela é lutadora, não é mesmo? O mesmo acontece com o próprio Celso. Ele sabe tudo de lutas e é instrutor também. Foi ele que nos instruiu e treinou, até ficar satisfeito com o nosso desempenho, como ele dizia, “Até poder confiar que vocês já podem confiar em vocês mesmas”.

CONTINUA

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