MILTON MACIEL
27 – CASTIGO FINAL
Fim do cap. 26: "– Mata nada, gente, isso aí é um ridículo, um cagão, anão de jardim, um palhaço.
Foi a derradeira passada da capa vermelha. Todos viram, horrorizados, Valdemar Silva dar cinco vezes com o dedo no gatilho, atirando à queima-roupa, com a arma encostada no seio de Gládis De Rios!"
Mas não se ouviu estampido algum. Foram cinco
tlec-tlec suaves, metálicos. A arma tinha falhado!
– Maldito
revólver, o que aconteceu?! –
perguntou-se, atônito, Valdemar Silva, sem compreender mais nada.
Gládis de Rios enfiou a mão no bolso esquerdo da
calça. Remexeu ali e saiu com alguma coisa dentro da mão fechada. Então abriu-a
calmante na frente do aparvalhado e possesso assassino em potencial, perguntando:
– É isto que você procura, debiloide?
Na bela mão aberta, seis douradas balas de 38
brilhavam ao sol.
– Vem buscar.
Mais uma isca que funcionava. O homenzinho se
atirou em direção àquela maldita mão, precisava pegar aquelas balas, carregar o
revólver, descarregá-lo todo contra a desgraçada.
Mas, mais uma vez, a incrivelmente ágil e
lúcida moça apanhou o braço que avançava e fez o homem girar, desta vez sem
sair do chão, levando-o a fazer um rodopio vertical ao redor de si mesmo. O
braço da mão que segurava o revólver apareceu agora preso firmemente atrás do corpo
do homem, que gemia de dor, a mão à altura dos omoplatas. Mais um pouco de
pressão e ele, com um grito, soltou a arma, que se estatelou no chão com estardalhaço. Um
segurança deu um salto e a segurou.
Então Gládis concluiu sua obra. E o fez com toda calma,
dizendo primeiro:
– Seu maluco, você tentou me matar na frente de
toda esta gente! Cinco tiros! E me chamou de puta, de vagabunda. Olhe, tudo
isso, até os tiros, até que não me incomoda muito. Mas você me chamou de filha
da puta. Então você ofendeu minha mamita.
Isso sim, me deixa puta. Não tem perdão. Azar seu, seu asqueroso, que o meu
maior defeito é justamente esse: Gládis
de Rios não sabe perdoar!
E, fazendo um gesto rápido, mas com muita
energia, forçou o braço preso para trás e para cima além de todo limite.
Ouviu-se um cloc estranho, alto, duas
vezes. E as articulações do braço direito de Valdemar Silva foram detonadas
instantaneamente. Um berro lancinante acompanhou a surpresa do homem. As dores
eram absolutamente insuportáveis. Então Gládis procedeu à última etapa do
tratamento de choque do paciente:
– Hora de nanar, neném. Não pra anestesiar você
da dor, mas porque ninguém merece ficar ouvindo esse berreiro de velha
histérica.
E vibrou-lhe um certeiro golpe de cutelo atrás
do pescoço. Valdemar Silva desabou na mesma hora como um saco de batatas, inconsciente.
Gládis dirigiu-se a um dos seguranças:
– Pegue um carro, vá buscar a polícia, o
delegado. Foi por isso que fiz esse animal dormir. Tentativa de assassinato
assim deve ser crime inafiançável, não se pode perder o flagrante. Vá, rápido!
Apenas oito minutos depois, quando o delegado
Amaral chegou com dois praças, Valdemar Silva ainda dormia. Teve então a
confirmação daquela história sem pé nem cabeça, que o segurança da Teles
jurava, no carro, que era verdade. Ali havia mais de vinte pessoas que tinham
testemunhado tudo, inclusive a própria filha do sujeito, que já estava em pé,
recuperada do desmaio.
O homem tinha tentado agredir a mulher diversas vezes,
no soco, na pedra e na bala. Mas tinha levado a pior sempre, apanhara como se
fosse uma criança, apanhara de uma mulher aparentemente frágil e delicada. E
bonita, danada de bonita! Como é que ele podia acreditar que aquela coisinha
gostosa, sem sequer uma única marca de luta, um arranhado no corpo, um amassado
na roupa, tinha feito todo aquele estrago em um homem baixo, porém retaco,
gordote e forte, como o ex-caminhoneiro, hoje o homem mais rico de Amarante.
Aos poucos, enquanto se convencia que aquilo
tudo era verdade e que o homem mais rico de Amarante passava à condição de réu
de tentativa de assassinato, com cinco malogradas puxadas de gatilho à
queima-roupa, o delegado viu que poderia estar tirando a sorte grande. Tinha
que encanar o homem em seguida, lavrar o auto de prisão em flagrante,
aproveitar enquanto ele ainda estava desacordado, arrolar todas as testemunhas
e aí esperar que o milionário chamasse os advogados, obtivesse o habeas corpus e ganhasse a liberdade. É
claro que, depois disso, nada ia acontecer com ele. Um homem com todo o dinheiro
que ele tinha, nunca seria condenado em um julgamento. Ainda mais que seria
julgado ali em Amarante mesmo.
Mas agora tinha que aproveitar esse maná que
caia do céu. Era levar o homem, cumprir a lei, criar o máximo de dificuldades,
para poder vender, muito caro, facilidades pra ele depois. Já foi pensando em como é que
podia ajeitar aquela espelunca para criar um aposento ao menos sem pulgas e
baratas, para o homem passar uns poucos dias, antes de ser solto pelo habeas corpus. Como carcereiro do
ricaço, tinha que ser generoso, magnânimo, para receber a gratidão do pitoco.
Pitoco que estava todo encrencado mesmo. Que sorte pra ele, Otílio Amaral!
Aí olhou para a moça toda contente com a proeza
dela, cercada por todos, sendo tratada como um grande herói de revista em
quadrinhos por aqueles tontos todos e lamentou. Puxa, uma gata tão linda, tão
gostosa, um tesão que dava nos bagos... E ia virar presunto logo, tão logo o
Valdemar tivesse condições de encomendar a morte dela. Que desperdício!
Fantasiou, enquanto anotava depoimentos, que
conseguia convencer a gostosa a fugir do Brasil para salvar a pele. Fugia com
ele, Otílio Amaral, seu herói e salvador. Atravessavam o pantanal, entravam na
Bolívia, despistavam seus perseguidores fugindo para o Peru pelo lago Titicaca,
ela toda derretida de amores pelo seu macho, pedindo sexo fogoso todos os dias,
várias vezes por dia. Depois de uns dois anos, ele se fartava, enjoava dela,
negociava a venda da presa para o ainda furioso e sempre vingativo Valdemar
Silva, que mandava executar a desafeta no Peru, pagando a módica quantia de
dois milhões de dólares pela entrega da prisioneira.
Ah, era mulher demais aquilo! Que pena que era
areia demais pro caminhãozinho dele, que só podia devanear com ela, que nunca
tinha comido e jamais ia comer na vida, na facha, sem pagar uma fortuna, uma
deusa como aquela. Esse mundo era muito injusto mesmo!
No fim, conformou-se e tratou de tirar da
cabeça o corpo, a bunda, os peitos, a cara, a boca daquela gata. De qualquer
jeito, dentro de pouco tempo, se ele não ia comer, a terra ia. Valdemar
Silva não brincava em serviço e ele sabia, de fonte segura, que outras vezes
ela já tinha dado de comer à terra, que apascentara com diversos corpos de
desafetos e concorrentes.
Mandou colocar o desacordado Valdemar na
viatura, com algemas colocadas nos pulsos, com o estranho braço todo
desconjuntado já inchando de maneira assombrosa. Era chegar na delegacia e
mandar buscar o Doutor Bernardo urgente. Quando aquele homem acordasse, ia
fazer um berreiro dos diabos, precisava socorro médico mais do que urgente.
Outro que ia ficar numa boa, o Doutor Bernardo!
Uma bela grana, talvez até uma boa cirurgia. Otílio Amaral devaneou de novo:
Ele era o médico, chegava na delegacia, dava um sossega-leão violento na veia
do nanico, daqueles de fazer elefante dormir um dia inteiro, levava pro
hospital e operava na marra, num monte de lugares, precisasse ou não. Quando o
unha-de-fome acordasse, enfim, apresentava a conta milionária. Largava a
polícia, ia viver no Caribe. Mas, saindo do devaneio, perguntou-se: Será que não
daria para ele pegar uma beirinha na cobrança real do Dr. Bernardo, nem que
fossem uns míseros dez por cento? Tinha
que ver isso com o médico.
Outro que ia se dar muito bem era o Gimenes, o
dono do jornal e da rádio. Quanto o Silva não ia pagar praquele cachaceiro
venal, para que a imprensa local não caísse em cima do escândalo? O nanico
apanhando de mulher, sendo todo quebrado e estropiado por uma gata daquelas de
fechar o comércio, que matéria que não ia dar, coisa para explorar por semanas
inteiras! Essa ia ser uma grana pesada, aí o delegado podia, com certeza,
abiscoitar uma comissão respeitável. É, tinha que ligar para o Gimenes e marcar
um papo ainda hoje, para combinarem estratégias e valores.
Ah, se todo mês uma cabeça coroada dessas
caísse nas garras da lei, aí sim ia compensar ser delegado de uma cidade
morfética como aquela, quase sem crimes de gente realmente com dinheiro, gente que
podia irrigar as bolsas de muitos como ele.
Valdemar Silva voltou a si na sala do delegado,
já sob efeito de sedativos e analgésicos, aplicados pelo Doutor Bernardo. O
médico havia recolocado as articulações nos lugares e imobilizado braço e
antebraço com pré-gesso. Chapas de raios-X e um ortopedista eram necessários, mas isso só no hospital, teria que esperar a soltura. O milionário parecia um leão enjaulado, não aceitava que
ele, sendo quem era e tendo o que tinha, tivesse que ficar mais do que um dia
ainda naquela delegacia imunda.
Seu advogado, o velho Aristides Lobo, apareceu
em seguida e disse que ele precisava de um especialista, um criminalista, o que
não era a praia dele. Saiu dali com um polpudo cheque assinado e a missão de
buscar em Florianópolis o melhor especialista que encontrasse, pagando-lhe um
sinal de 50% sobre o serviço, para que viesse logo a Amarante, para conseguir o
tal habeas corpus e tirá-lo imediatamente daquela pocilga.
O velho Aristides
Lobo calculou que conseguiria isso com uns 60% do valor do cheque, tinha que
fazer uma composição com o colega de Florianópolis, para que eles rachassem a
diferença a mais no valor do cheque. Agora que estava praticamente aposentado, na
modorra das pequenas causas de Amarante, seu odioso genro havia lhe colocado um
apelido que infelizmente havia pegado: o
Lobo do Lar!
Na Teles
o assunto era só um: como é que Gládis de Rios tinha conseguido fazer aquilo
tudo com um homem que, embora baixo, era forte e retaco como um touro.
A razão não era desconhecida por nenhuma de suas
outras colegas de venda, Paula, Jennifer e, muito menos, sua mãe Carmen: Gládis
de Rios era uma especialista em artes marciais! Normalmente ela não falava
jamais sobre isso. E a razão era óbvia, tinha aparecido claramente momentos
atrás, na sua tourada. Era o fator
surpresa! Ninguém, muito menos um homem, podia esperar que uma mulher de
aparência tão jovem, tão bonita e tão sensual, fosse capaz de reagir a uma
agressão da maneira que ela podia reagir.
Gládis tratou de se livrar do burburinho e de
se afastar das outras pessoas, especialmente os homens. Foi encerrando os papos
e entrando na empresa, levando em comboio as colegas, inclusive uma ainda muito
trêmula Larissa. Conduzi-as até a sala da gerência e ocupou a cadeira de
Carmen, dizendo:
– Ai, mamita,
permita um instantinho de descanso da guerreira.
– Claro, meu amor. Você sabe que esta sala é
nossa e que tudo o que é meu é seu. E como você merece esse descanso!
– Bem, na verdade eu não fiquei nem um
pouquinho cansada, eu quase não fiz força, quem fez força foi o Touro Sentado.
Carmen bateu os pés em ritmo, bateu palmas e
estalou os dedos como castanholas, num belo e rápido passo de flamenco, com um gracioso giro
sobre si mesma. E exclamou, sorrindo:
– Olé!
– Mas eu cansei a mente; seja como for, foram
momentos de muita tensão. Mas agora já está tudo bem, tudo normal.
Só então Larissa, ainda muito assustada,
conseguiu falar:
– Como é que você pode, como é que consegue?!! Deus do céu, como você é incrível, como você é maravilhosa! E agora ainda por
cima, fica nessa calma toda... Ai, eu fiquei tão apavorada, tão assustada, que
desmaiei... Me diz, pelo amor de Deus, como é que você consegue enfrentar um
homem assim?
– Calma, Fofinha
– falou Jennifer – essa aí sabe tudo de autodefesa feminina, de artes marciais,
de krav-magá.
– De que? O que é isso, crav... crav o que?
Paula respondeu:
– Krav-magá
é uma forma de luta corpo a corpo israelense. A nossa subgerente aí é fera
nisso e num monte de outras formas de luta. Só que a gente mantem isso em
segredo e não conta para ninguém, principalmente para homens.
– Mas por que, Paula?
– Ora, para não perder a vantagem do fator surpresa. Como aconteceu com você,
que está de queixinho caído. E com
aquele canalha do... bem, do seu pai, que deve estar é de queixo quebrado.
Desculpe, mas ele é um canalha.
– Não se desculpe, Paula. Ele é isso mesmo, eu
sempre tive, além de muito medo, muita vergonha dele.
– Bem, você viu uma boa parte do que a Paula
fez com ele. Você viu com que calma, com que sangue frio ela agiu. Ao passo que
ele...
– Agiu o tempo todo como a fera que sempre foi,
um bruto, um primitivo, um animal.
Gládis assumiu o leme:
– Fofinha,
a gente veio pra cá, longe dos homens, pra dizer o resto do segredo só pra
você. TODAS nós sabemos lutar.
– Nossa! Todas vocês... as quatro?! Até sua mãe?
– Até Dona Carmen de Rios, que me ajudou e
ajuda muito nos treinamentos. E, claro, tanto Paula, quanto Jennifer, se forem
atacadas por alguém, seja mulher, seja homem, podem fazer picadinho da criatura
em poucos segundos.
– Mas... Mas o que aconteceu? Por que vocês
todas quiseram aprender essas coisas tão brutas, tão violentas, essas lutas de
homem?
– Fofinha
– atalhou Carmen de Rios – aí é que você se engana. Essas não são lutas de
homem. São de homem e de mulher também.
– Mas mulher não tem força, não pode...
– Errado de novo, garota – disse Jennifer –
Isso é o que as pessoas pensam. E até que é bom pra gente que elas pensem
assim. Mas mulher tem, sim, muita, muita força.
– Mas força como? Onde?
Carmen de Rios assumiu seu tranquilo ar professoral
de mamita e explicou:
– Querida, a gente não tem a mesma força de um homem nos braços, não tem
da cintura para cima. Mas, em compensação, da cintura para baixo...
– Da cintura para baixo?...
–Aí a gente é igual ou
melhor do que eles – garantiu Paula, triunfante.
– Melhor?... Eu não consigo entender como...
Jennifer voltou à carga:
– Fofinha, como é que o homem atacou a Gládis?
– Bem foi com soco, que eu saiba. Como ele
sempre fez comigo...
– Muito bem. E como foi que a Gládis
contra-atacou o dito cujo? Foi com soco? Foi com os braços?
– Não, foi com os ... OS PÉS!!! É isso! Isso é
que quer dizer o da cintura pra baixo!
– Bingo, Fofinha!
Agora você entendeu a mecânica da coisa. Só que não foi exatamente com os pés.
– Não foi, Gládis? Mas o sapatão que bateu
nele...
– Menina – falou Paula – pé não tem força
nenhuma. Quem tem força é COXA! E quadril e perna. O pé só vai na onda, é a
ponta da nossa arma mais importante para golpear. Veja só o coxão dessa aí – e
apalpou a coxa direita de Gládis, por sobre o
moleton esticado – Venha, aperte aqui você também.
Larissa aproximou-se e apertou com as duas mãos
a ampla circunferência da coxa de Gládis, um palmo acima do joelho.
– Minha nossa, como é dura! Parece de madeira...
– Coxa e perna de atleta e de bailarina de flamenco,
de sapateadora, garota. Na nossa firma, acho que é difícil achar um homem que
tenha coxa e perna forte assim como a dela. Com exceção, é claro, do nosso
instrutor, nosso mestre de artes marciais.
– Ué, mas tem um homem assim na empresa? De
perna e coxa superforte? Eu nunca vi, não faço a menor ideia de quem...
– Ah, você já viu, Fofinha, já viu sim. Está
cansada de ver todos os dias.
– Eu?! Mas quem, então, Paula? O Lucas? Mas ele
não é fortão. É algum homem da segurança, então?
– Não, Fofinha. É um homem da administração.
– Nossa, da administração? Então tem um cara
que eu ainda não conheço na empresa, é isso?
– O que é isso, garota? Eu não disse que você
vê esse cara todos os dias. Pense bem: Você vê todos os dias e o cara é da
administração.
– Mas, Paula, o único homem assim aqui na firma
é... é... Ah, não, não pode ser quem eu estou pensando agora... É demais!
– Bingo de novo, menina! Duplamente: acertou e
o cara é demais, muito demais mesmo.
– O chefe!!!
Mas ele não é lutador, é jogador de futebol. O lutador é o Nicanor da obra.
Carmen explicou pacientemente:
– Larissa, minha filha Gládis sabe lutar melhor
que nós três e que qualquer homem, exceto o Celso. E nem por isso ela é
lutadora, não é mesmo? O mesmo acontece com o próprio Celso. Ele sabe tudo de
lutas e é instrutor também. Foi ele que nos instruiu e treinou, até ficar
satisfeito com o nosso desempenho, como ele dizia, “Até poder confiar que vocês já podem confiar em vocês mesmas”.
CONTINUA
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