MILTON MACIEL
30 – O FARMACÊUTICO WAISSMANN
Fim do cap. 29: " – Ai, Paula, só você mesmo pra reescrever um texto bíblico dizendo tanto palavrão numa frase tão curta! Porque você não reescreve toda a bíblia, criatura? Ia ser um best seller absoluto, o grande sucesso editorial do ano, o Prêmio Jabuti da boca suja."
A gargalhada espalhou-se geral. Larissa ria
também, empolgada, sentindo-se feliz novamente, completamente feliz com aquelas
mulheres maravilhosas, com seu chefinho maravilhoso. E com seu padrinho
maravilhoso, que estava lá na oficina. Ah, a vida podia ser tão boa!
E Deus
era bom, porque permitia que existissem pessoas maravilhosas como aquelas. E
bom demais com ela, uma sonsa inexpressiva, uma embalagem vazia, bonitinha por
fora, mas que aquelas mulheres incríveis insistiam em dizer que tinha algo bom por
dentro também. E porque Ele tinha permitido que ela estivesse agora tão próxima
daquelas mulheres que estava até morando no mesmo edifício que todas elas. Era
tão incrível que isso tudo tivesse acontecido com ela, justamente com ela...
E era ainda mais inacreditável que ela, agora,
não estivesse mais sentindo aquele medo horroroso, mórbido, patológico, de seu
pai. Revia-o batendo nela, mas sendo por ela destratado e agredido de volta. E,
principalmente, revia-o levando aquela surra memorável de Gládis, a sua Gládis,
a mulher mais fantástica que podia existir na face da Terra!
Ah, se elas a
amavam, como ela, Larissa, amava Gládis, Carmen e também as outras duas
garotas, Gládis acima de todas e de tudo! Gládis que havia reduzido seu
monstruoso pai a subnitrato de pó de traque. Enquanto todas riam e comentavam
“A Bíblia segundo Paula Novaes”, Larissa revia repetidas vezes aquela cena
luminosa, que chegara a assistir depois de seu curto desmaio, lá no jardim da
Teles: Gládis abrindo a mão feminina e delicada, expondo as seis balas de
revólver rebrilhantes ao sol. E ela ria mais do que todas, mas ria lembrando
dessa cena, ria de alívio e felicidade. Deus, como estava feliz agora!
Viu os olhos de Celso Teles, que também a
olhavam com a mesma ternura que surpreendia em Gládis, em Carmen, nas outras
moças. Até seu chefe, uma criatura tão boa, parecia que gostava um pouco dela,
tinha uma paciência infinita com ela, ia mandar buscar Maria Amália para ser
sua analista. Ah, também aquilo parecia bom demais para ser verdade, mas devia
ser, porque quem era bom demais, na verdade, era Celso Teles!
Aquele era outro ser iluminado, tinha um toque
de Midas misturado com um toque de Madre Teresa, fazia as coisas crescerem e
fazia as pessoas felizes, fazia as vidas das pessoas mudarem sempre para
melhor. E também nisso Deus se lembrara dela, bendito dia em que ela tivera a
coragem de ir lhe pedir aquele emprego, de importuná-lo lá na academia do
Nelson! O dia abençoado em que tudo começara a mudar na vida dela.
E agora ela estava ali naquela sala, junto com
as pessoas mais admiráveis que, junto com padrinho Fúlvio, junto com Jeniffer,
que tinha saído dali, podiam existir no
mundo. E todas pareciam gostar dela. Se isso não fosse felicidade, o que seria?
Seu devaneio e as risadas gerais foram
interrompidos pela entrada de Jeniffer, que retornava.
– Pessoal, boas novas: Maria Amália embarca na
segunda que vem, desce em Navegantes às 11 da manhã, a gente vai buscar a fera
lá, em menos de duas horas ela está aqui com a gente.
Larissa deu um pulo, um gritinho e se atracou
com Jeniffer. Beijou-a várias vezes, tomou-lhe as mãos sedosas entre as suas e
murmurou seu já clássico “Deus lhe
pague”. Mais alguma coisa assim, em cima de tudo o que já estava vivendo e
sentindo naquele momento, e ela podia era morrer de tanta felicidade.
Celso Teles também se adiantou e abraçou
Jeniffer efusivamente:
– Boa menina, sempre objetiva, sempre prática,
sempre perfeita. Muito obrigado. E ela, como reagiu? Você teve que pressionar
muito? Olhe que eu conheço bem você, depois que você começa, não tem quem possa
fugir de você.
– Que nada, chefe! Maior moleza, parece que ela
estava esperando por um convite para sair de São Carlos. Ela adorou a ideia,
disse que já estava criando teia de aranha naquele sítio, disse que ia resolver
algumas coisas práticas, contratar alguém para ficar por lá uns dias e se
mandava pra cá em seguida.
– Puxa, que maravilha, menina. Confesso que
fiquei surpreso com essa. Uma bela surpresa. E aí?
– Aí em entrei na Internet e montei a viagem
para ela. Liguei de novo, ela concordou na hora, eu passei o meu cartão de
crédito e já comprei as passagens. Só falta resolver quem vai buscar a fera em
Navegantes, na segunda.
– Eu vou! – gritou Larissa, entusiasmada. Mas
aí se deu conta da sai situação – Ai, não, eu não tenho mais carro...
– Eu vou e você vai comigo! – falou Jeniffer,
positiva. Está decidido e não se fala mais nisso. A menos que o chefe tenha uma
solução melhor.
– Não, não, Jeniffer, está perfeito assim.
Vocês vão as duas, até é bom que Maria Amália venha conhecendo a Larissa pelo
caminho. Duas horas conversando abobrinha com aquela mulher e ela arranca até
as cuecas da gente pela boca.
Larissa sentiu em estremecimento agradável, um
frisson de entusiasmo, mal podia esperar a hora de receber sua analista, sabia
que ela ia ser maravilhosa também, unanimidade que era para todas aquelas
pessoas fantásticas ali.
Celso foi o primeiro a sair da sala:
– Tudo está bom, garotas, mas eu tenho que
fazer um monte de coisas ainda. Estou saindo. Tenham um bom dia aqui. Vou
passar na oficina pra dar um abraço no Rondelli e desapareço por aí. Paula não resistiu e fez a provocação: juntou
os dedos da mão direita, fez o sinal dos lábios “lá de baixo” se abrindo e perguntou:
– E quando as coitadinhas chegarem de rabo fervendo,
chefinho, o que a gente diz pra elas? Não quer, ao menos, deixar o endereço de
um motel?
– Peste! – exclamou Celso Teles, rindo e
pegando Paula pelo queixo, sacudindo sua bela cabeça para os lados – Você não
presta mesmo.
– Crueldade, chefe, vai deixar as coitadinhas
na mão. Na mão direita, provavelmente.
Celso saiu e todas as outras ficaram numa
gargalhada geral, imaginando um exército de mulheres de rabo fervendo, tentando
apagar o fogo com a mãozinha ágil.
Enquanto ria, Gládis não desgrudava os olhos de
Larissa. E viu que o riso de Larissa era aquele desbotado, sempre no afã de
agradar os outros. Pobre Fofinha, está P da vida, não gostou nem um pouquinho
da brincadeira, mas não pode contrariar os outros, tem que rir também. Mas...
Ah, como ela se entrega, quando será que ela vai perceber tudo? Talvez se eu...
Não, não se deve assustar uma gazela, ela foge na hora e é tão veloz que você
não a alcança nunca mais. Isso é trabalho para Super Maria Amália, não se meta,
Gládis De Rios, a sua parte você já fez. Não apresse o rio...
Nesse momento soou o fone e a recepção avisou
que chegavam dois clientes ao mesmo tempo. Carmen tirou do bolsinho seu cartão
de escala, consultou-o e designou:
– Paula e Larissa, é a vez de vocês.
Larissa estremeceu. Céus, outra vez, assim de
repente! Olhou em pânico para Gládis, pedindo socorro com os olhos. Na venda
para Neco Palhares, ela tinha sido ajudada por Gládis e até por padrinho
Fúlvio. Mas e agora? Como é que ela ia enfrentar um cliente sozinha?
Gládis entendeu o pedido e se aproximou dela.
Mas ao invés de se oferecer para ajudar, simplesmente a empurrou para a porta
e, na saída, deu-lhe um tapão na bunda:
– Vai, garota. Quem embolachou a cara de um
Valdemar Silva está pronta para enfrentar qualquer fera. Treinada você está até
demais. Charme e inteligência você tem de sobra. Vai firme, Fofinha, eu garanto que você não vai nos
decepcionar! Seja você mesma e deixe o resto vir naturalmente. Beijo.
E fechou a porta da sala da gerência, deixando
Larissa e Paula no grande salão, onde os dois clientes aguardavam, examinando
os carros lenta e atentamente.
Paula pegou a mão de Larissa e foi caminhando
com ela. E falou baixinho:
– Não se estresse, Fofinha, eu também já fiquei assim no maior cagaço na primeira
vez. Mas foi muito pior na primeira vez que eu dei o rabinho, aquilo sim é que era
medo! O cara tinha uma rola deste tamanho!
Conseguiu o que queria, Larissa teve que rir
muito e relaxou completamente. Ah, nada como uma boa mentira piedosa numa hora
dessas! Que deste tamanho, que nada! O cara era normal e ela, adolescente, de
tanto ver filme pornô antes, estava esperando um pintão cinematográfico de metro
e meio. E terminou sua tática de estimulação:
– Agora fica aqui um pouquinho, se retarda uns
dois minutinhos e vê como eu vou fazer. Aí é só repetir. E depois de começar,
bem, aí fica moleza, você só fica nervosa nos primeiros dois minutos. Depois, é
como aquela comédia carioca: “Trair e Coçar É Só Começar”.
Larissa apertou forte a mão de Paula que ainda
estava na sua e esta retribuiu o aperto sabendo o que ele significava:
– Está certo, Deus me pague. Agora vamos lá.
E soltou a mão de Larissa. O cordão umbilical
estava definitivamente cortado. Cada uma por si, Deus por todas.
Pela fresta da porta levemente entreaberta da
sala da gerência, três pares de olhos espiavam curiosos. A dona de um deles, uma
deusa negra, uma Rainha de Sabá, murmurou:
– Boa, Paula! Menina esperta.
Gládis sussurrou:
– Vai, Fofinha,
arrasa, mostra que você virou adulta ontem à noite.
– Amém – completou Carmen de Rios,
persignando-se confiante.
Puderam então ouvir uma tranquila Larissa se
aproximar de Tancredo Waissmann, prestigioso farmacêutico, dono da rede de
farmácias Waissmann e dizer:
– Bom dia, senhor. Seja muito bem vido à Teles
Automóveis. Sua preferência por nossa empresa nos enche de satisfação. Eu sou a
atendente Larissa e estou pronta, assim como toda a nossa equipe, para
servi-lo. Basta que o senhor diga o que deseja e nós faremos o possível e até o
impossível para atendê-lo.
A resposta do farmacêutico, um senhor de seus
sessenta e muitos anos, foi surpreendente:
– Mas é nossa Miss Amarante! Bom dia, minha
filha. E não precisa ficar com a mãozinha cobrindo ro osto, eu já estou sabendo
de tudo, aliás a cidade inteira já está. Deixe eu ver esse ferimento aí.
O profissional falava mais alto dentro do velho
Waissmann. Ele examinou detidamente o grande hematoma no rosto da moça,
pensando em como era justo que aquele pai desnaturado tivesse levado uma surra
de criar bicho, aplicada por uma jovem mulher daquela mesma empresa. Pena que
aquela cidade ainda fosse tão atrasada que um milionário como Valdemar Silva,
mesmo tendo sido preso, nunca seria sequer julgado, que dirá condenado, pela
tentativa de assassinato presenciada por mais de duas dezenas de testemunhas.
Quando chegaria o dia em que Amarante não teria mais lugar para bandidos como
Valdemar Silva? Certamente ele, Tancredo Waissmann nunca veria isso. Talvez sua
neta Cecília...
E, pensando nela, tirou o celular do bolso e
ligou para sua farmácia central:
– Cecília, minha filha, pegue material de
curativo, a poção mágica do velho Waissmann, seu bisavô, entre no carro e voe
para cá. Sabe quem está aqui: a Larissa Silva!
Do outro lado da linha, a voz soprou um
apressado “É pra já, vô!”
Foram exatamente três minutos até Cecilia
entrar no grande saguão com a sua malinha. Então ela e o avô trabalharam
juntos, com incrível perícia, durante rápidos minutos, aplicando a mesma velha
poção que o pai de Tancredo Waissmann tinha inventado no final do século
dezenove. Prenderam a bandagem com um esparadrapo leve e disseram para Larissa
e para as outras três mulheres que tinham aparecido de repente do nada:
– A bandagem fica meio feia agora, mas a ferida
dela iria ficar muito mais feia amanhã e nos próximos dias. Com a poção do meu
pai, a renovação celular vai ser muito rápida e a recuperação vai parecer
milagrosa. Agora, mantenham a bandagem e, de duas em duas horas, vocês reponham a
poção derramando um pouquinho pela parte de cima, que eu deixei semiaberta, até
aparecer líquido na parte de baixo, que vocês secam com uma gaze. Façam isso hoje
e manhã. E ela pode seguir suas atividades normalmente. Como, agora, me vender
um carro novo, que está mais do que na hora de trocar aquele carango velho lá
de casa.
As outras moças se retiraram, agradecendo muito
ao farmacêutico e sua neta. Larissa, com a voz embargada e os olhos traindo sua
emoção, falou:
– Deus está sendo tão bom comigo nesta hora!
Mandou dois anjos como vocês para me ajudarem, eu nem sei como agradecer por
tanta bondade. Quanto estou devendo pelo curativo, pelo frasco de poção, pelas
gazes que ficaram?
– Ah, isso é fácil, Miss Amarante. Encontre o
melhor carro para meu avô e consiga o melhor preço também.
– Quanto ao curativo e os produtos, não precisa
pagar nada. Digamos que é a melhor maneira de um velho farmacêutico prestar
solidariedade e homenagem a sua eterna Miss Amarante. E agora vamos ao carro?
A partir daí Larissa desempenhou seu trabalho
com impressionante desenvoltura, sentindo-se muito à vontade com aquele homem
gentil e bondoso, que deixara de lado o que viera fazer para cuidar do
ferimento dela em primeiro lugar. Cecília, a neta dele, era extremamente
simpática e bem-humorada, de forma que o que aconteceu foi uma espécie de
agradável passeio pela loja toda, com o farmacêutico mostrando os carros que
mais o haviam impressionado. No fim, com a orientação das fichas técnicas
convenientemente exibidas pela moça, Waissmann chegou ao ponto final. Tinha
dois possíveis automóveis em vista, restava agora ver a questão do preço final
e do possível desconto.
Larissa sabia, que, nesses casos especiais,
devia recorrer à gerente geral da loja, cuja autoridade final prevaleceria
sempre. Entrou na sala da gerente e disse:
– Carmen, com licença. O Seu Waissmann está
pedindo um desconto maior, coisa que eu não posso dar. Mas eu lhe peço o
seguinte: ele foi tão bom comigo, tão solidário, que eu posso ceder o desconto
da minha comissão. Pode tirar tudo para ele, eu não me importo, até vou ficar
muito feliz.
– Fofinha!
– exclamou Gládis, que estava na sala da mãe – Mas que coraçãozinho de ouro. E
que curativo mais caro esse, hein, mamita!
– Minha filha, não precisa o seu sacrifício,
você tem que ganhar a sua comissão, é justo e é necessário para você, agora que
saiu de casa. Pode deixar, eu tenho a minha margem de manobra, é suficiente
para resolver a parada.
No fim, negociando o preço com a própria
gerente, o farmacêutico saiu feliz com 10% de desconto, já dirigindo seu carro
novo, um Peugeot com apenas um ano de uso, que fizera o seu coração pular mais
forte, amor à primeira vista. Aliás, ao primeiro prazo, pois parte do total foi
rapidamente aprovado para financiamento em 12 meses.
CONTINUA
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