quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 30   
MILTON MACIEL  

30 – O FARMACÊUTICO WAISSMANN
Fim do cap. 29: – Ai, Paula, só você mesmo pra reescrever um texto bíblico dizendo tanto palavrão numa frase tão curta! Porque você não reescreve toda a bíblia, criatura? Ia ser um best seller absoluto, o grande sucesso editorial do ano, o Prêmio Jabuti da boca suja."

A gargalhada espalhou-se geral. Larissa ria também, empolgada, sentindo-se feliz novamente, completamente feliz com aquelas mulheres maravilhosas, com seu chefinho maravilhoso. E com seu padrinho maravilhoso, que estava lá na oficina. Ah, a vida podia ser tão boa!

 E Deus era bom, porque permitia que existissem pessoas maravilhosas como aquelas. E bom demais com ela, uma sonsa inexpressiva, uma embalagem vazia, bonitinha por fora, mas que aquelas mulheres incríveis insistiam em dizer que tinha algo bom por dentro também. E porque Ele tinha permitido que ela estivesse agora tão próxima daquelas mulheres que estava até morando no mesmo edifício que todas elas. Era tão incrível que isso tudo tivesse acontecido com ela, justamente com ela...

E era ainda mais inacreditável que ela, agora, não estivesse mais sentindo aquele medo horroroso, mórbido, patológico, de seu pai. Revia-o batendo nela, mas sendo por ela destratado e agredido de volta. E, principalmente, revia-o levando aquela surra memorável de Gládis, a sua Gládis, a mulher mais fantástica que podia existir na face da Terra! 

Ah, se elas a amavam, como ela, Larissa, amava Gládis, Carmen e também as outras duas garotas, Gládis acima de todas e de tudo! Gládis que havia reduzido seu monstruoso pai a subnitrato de pó de traque. Enquanto todas riam e comentavam “A Bíblia segundo Paula Novaes”, Larissa revia repetidas vezes aquela cena luminosa, que chegara a assistir depois de seu curto desmaio, lá no jardim da Teles: Gládis abrindo a mão feminina e delicada, expondo as seis balas de revólver rebrilhantes ao sol. E ela ria mais do que todas, mas ria lembrando dessa cena, ria de alívio e felicidade. Deus, como estava feliz agora!

Viu os olhos de Celso Teles, que também a olhavam com a mesma ternura que surpreendia em Gládis, em Carmen, nas outras moças. Até seu chefe, uma criatura tão boa, parecia que gostava um pouco dela, tinha uma paciência infinita com ela, ia mandar buscar Maria Amália para ser sua analista. Ah, também aquilo parecia bom demais para ser verdade, mas devia ser, porque quem era bom demais, na verdade, era Celso Teles!

Aquele era outro ser iluminado, tinha um toque de Midas misturado com um toque de Madre Teresa, fazia as coisas crescerem e fazia as pessoas felizes, fazia as vidas das pessoas mudarem sempre para melhor. E também nisso Deus se lembrara dela, bendito dia em que ela tivera a coragem de ir lhe pedir aquele emprego, de importuná-lo lá na academia do Nelson! O dia abençoado em que tudo começara a mudar na vida dela.

E agora ela estava ali naquela sala, junto com as pessoas mais admiráveis que, junto com padrinho Fúlvio, junto com Jeniffer, que tinha saído dali,  podiam existir no mundo. E todas pareciam gostar dela. Se isso não fosse felicidade, o que seria?

Seu devaneio e as risadas gerais foram interrompidos pela entrada de Jeniffer, que retornava.

– Pessoal, boas novas: Maria Amália embarca na segunda que vem, desce em Navegantes às 11 da manhã, a gente vai buscar a fera lá, em menos de duas horas ela está aqui com a gente.

Larissa deu um pulo, um gritinho e se atracou com Jeniffer. Beijou-a várias vezes, tomou-lhe as mãos sedosas entre as suas e murmurou seu já clássico “Deus lhe pague”. Mais alguma coisa assim, em cima de tudo o que já estava vivendo e sentindo naquele momento, e ela podia era morrer de tanta felicidade.

Celso Teles também se adiantou e abraçou Jeniffer efusivamente:

– Boa menina, sempre objetiva, sempre prática, sempre perfeita. Muito obrigado. E ela, como reagiu? Você teve que pressionar muito? Olhe que eu conheço bem você, depois que você começa, não tem quem possa fugir de você.

– Que nada, chefe! Maior moleza, parece que ela estava esperando por um convite para sair de São Carlos. Ela adorou a ideia, disse que já estava criando teia de aranha naquele sítio, disse que ia resolver algumas coisas práticas, contratar alguém para ficar por lá uns dias e se mandava pra cá em seguida.

– Puxa, que maravilha, menina. Confesso que fiquei surpreso com essa. Uma bela surpresa. E aí?

– Aí em entrei na Internet e montei a viagem para ela. Liguei de novo, ela concordou na hora, eu passei o meu cartão de crédito e já comprei as passagens. Só falta resolver quem vai buscar a fera em Navegantes, na segunda.

– Eu vou! – gritou Larissa, entusiasmada. Mas aí se deu conta da sai situação – Ai, não, eu não tenho mais carro...

– Eu vou e você vai comigo! – falou Jeniffer, positiva. Está decidido e não se fala mais nisso. A menos que o chefe tenha uma solução melhor.

– Não, não, Jeniffer, está perfeito assim. Vocês vão as duas, até é bom que Maria Amália venha conhecendo a Larissa pelo caminho. Duas horas conversando abobrinha com aquela mulher e ela arranca até as cuecas da gente pela boca.

Larissa sentiu em estremecimento agradável, um frisson de entusiasmo, mal podia esperar a hora de receber sua analista, sabia que ela ia ser maravilhosa também, unanimidade que era para todas aquelas pessoas fantásticas ali.

Celso foi o primeiro a sair da sala:

– Tudo está bom, garotas, mas eu tenho que fazer um monte de coisas ainda. Estou saindo. Tenham um bom dia aqui. Vou passar na oficina pra dar um abraço no Rondelli e desapareço por aí. Paula não resistiu e fez a provocação: juntou os dedos da mão direita, fez o sinal dos lábios “lá de baixo” se abrindo e perguntou:

– E quando as coitadinhas chegarem de rabo fervendo, chefinho, o que a gente diz pra elas? Não quer, ao menos, deixar o endereço de um motel?

– Peste! – exclamou Celso Teles, rindo e pegando Paula pelo queixo, sacudindo sua bela cabeça para os lados – Você não presta mesmo.

– Crueldade, chefe, vai deixar as coitadinhas na mão. Na mão direita, provavelmente.

Celso saiu e todas as outras ficaram numa gargalhada geral, imaginando um exército de mulheres de rabo fervendo, tentando apagar o fogo com a mãozinha ágil.

Enquanto ria, Gládis não desgrudava os olhos de Larissa. E viu que o riso de Larissa era aquele desbotado, sempre no afã de agradar os outros. Pobre Fofinha, está P da vida, não gostou nem um pouquinho da brincadeira, mas não pode contrariar os outros, tem que rir também. Mas... Ah, como ela se entrega, quando será que ela vai perceber tudo? Talvez se eu... Não, não se deve assustar uma gazela, ela foge na hora e é tão veloz que você não a alcança nunca mais. Isso é trabalho para Super Maria Amália, não se meta, Gládis De Rios, a sua parte você já fez. Não apresse o rio...

Nesse momento soou o fone e a recepção avisou que chegavam dois clientes ao mesmo tempo. Carmen tirou do bolsinho seu cartão de escala, consultou-o e designou:

– Paula e Larissa, é a vez de vocês.

Larissa estremeceu. Céus, outra vez, assim de repente! Olhou em pânico para Gládis, pedindo socorro com os olhos. Na venda para Neco Palhares, ela tinha sido ajudada por Gládis e até por padrinho Fúlvio. Mas e agora? Como é que ela ia enfrentar um cliente sozinha?

Gládis entendeu o pedido e se aproximou dela. Mas ao invés de se oferecer para ajudar, simplesmente a empurrou para a porta e, na saída, deu-lhe um tapão na bunda:

– Vai, garota. Quem embolachou a cara de um Valdemar Silva está pronta para enfrentar qualquer fera. Treinada você está até demais. Charme e inteligência você tem de sobra. Vai firme, Fofinha, eu garanto que você não vai nos decepcionar! Seja você mesma e deixe o resto vir naturalmente. Beijo.

E fechou a porta da sala da gerência, deixando Larissa e Paula no grande salão, onde os dois clientes aguardavam, examinando os carros lenta e atentamente.

Paula pegou a mão de Larissa e foi caminhando com ela. E falou baixinho:

– Não se estresse, Fofinha, eu também já fiquei assim no maior cagaço na primeira vez. Mas foi muito pior na primeira vez que eu dei o rabinho, aquilo sim é que era medo! O cara tinha uma rola deste tamanho!

Conseguiu o que queria, Larissa teve que rir muito e relaxou completamente. Ah, nada como uma boa mentira piedosa numa hora dessas! Que deste tamanho, que nada! O cara era normal e ela, adolescente, de tanto ver filme pornô antes, estava esperando um pintão cinematográfico de metro e meio. E terminou sua tática de estimulação:

– Agora fica aqui um pouquinho, se retarda uns dois minutinhos e vê como eu vou fazer. Aí é só repetir. E depois de começar, bem, aí fica moleza, você só fica nervosa nos primeiros dois minutos. Depois, é como aquela comédia carioca: “Trair e Coçar É Só Começar”.

Larissa apertou forte a mão de Paula que ainda estava na sua e esta retribuiu o aperto sabendo o que ele significava:

– Está certo, Deus me pague. Agora vamos lá.

E soltou a mão de Larissa. O cordão umbilical estava definitivamente cortado. Cada uma por si, Deus por todas.

Pela fresta da porta levemente entreaberta da sala da gerência, três pares de olhos espiavam curiosos. A dona de um deles, uma deusa negra, uma Rainha de Sabá, murmurou:

– Boa, Paula! Menina esperta.

Gládis sussurrou:

– Vai, Fofinha, arrasa, mostra que você virou adulta ontem à noite.

– Amém – completou Carmen de Rios, persignando-se confiante.

Puderam então ouvir uma tranquila Larissa se aproximar de Tancredo Waissmann, prestigioso farmacêutico, dono da rede de farmácias Waissmann e dizer:

– Bom dia, senhor. Seja muito bem vido à Teles Automóveis. Sua preferência por nossa empresa nos enche de satisfação. Eu sou a atendente Larissa e estou pronta, assim como toda a nossa equipe, para servi-lo. Basta que o senhor diga o que deseja e nós faremos o possível e até o impossível para atendê-lo.

A resposta do farmacêutico, um senhor de seus sessenta e muitos anos, foi surpreendente:

– Mas é nossa Miss Amarante! Bom dia, minha filha. E não precisa ficar com a mãozinha cobrindo ro osto, eu já estou sabendo de tudo, aliás a cidade inteira já está. Deixe eu ver esse ferimento aí.

O profissional falava mais alto dentro do velho Waissmann. Ele examinou detidamente o grande hematoma no rosto da moça, pensando em como era justo que aquele pai desnaturado tivesse levado uma surra de criar bicho, aplicada por uma jovem mulher daquela mesma empresa. Pena que aquela cidade ainda fosse tão atrasada que um milionário como Valdemar Silva, mesmo tendo sido preso, nunca seria sequer julgado, que dirá condenado, pela tentativa de assassinato presenciada por mais de duas dezenas de testemunhas. Quando chegaria o dia em que Amarante não teria mais lugar para bandidos como Valdemar Silva? Certamente ele, Tancredo Waissmann nunca veria isso. Talvez sua neta Cecília...

E, pensando nela, tirou o celular do bolso e ligou para sua farmácia central:

– Cecília, minha filha, pegue material de curativo, a poção mágica do velho Waissmann, seu bisavô, entre no carro e voe para cá. Sabe quem está aqui: a Larissa Silva!

Do outro lado da linha, a voz soprou um apressado “É pra já, vô!”

Foram exatamente três minutos até Cecilia entrar no grande saguão com a sua malinha. Então ela e o avô trabalharam juntos, com incrível perícia, durante rápidos minutos, aplicando a mesma velha poção que o pai de Tancredo Waissmann tinha inventado no final do século dezenove. Prenderam a bandagem com um esparadrapo leve e disseram para Larissa e para as outras três mulheres que tinham aparecido de repente do nada:

– A bandagem fica meio feia agora, mas a ferida dela iria ficar muito mais feia amanhã e nos próximos dias. Com a poção do meu pai, a renovação celular vai ser muito rápida e a recuperação vai parecer milagrosa. Agora, mantenham a bandagem e, de duas em duas horas, vocês reponham a poção derramando um pouquinho pela parte de cima, que eu deixei semiaberta, até aparecer líquido na parte de baixo, que vocês secam com uma gaze. Façam isso hoje e manhã. E ela pode seguir suas atividades normalmente. Como, agora, me vender um carro novo, que está mais do que na hora de trocar aquele carango velho lá de casa.

As outras moças se retiraram, agradecendo muito ao farmacêutico e sua neta. Larissa, com a voz embargada e os olhos traindo sua emoção, falou:

– Deus está sendo tão bom comigo nesta hora! Mandou dois anjos como vocês para me ajudarem, eu nem sei como agradecer por tanta bondade. Quanto estou devendo pelo curativo, pelo frasco de poção, pelas gazes que ficaram?

– Ah, isso é fácil, Miss Amarante. Encontre o melhor carro para meu avô e consiga o melhor preço também.

– Quanto ao curativo e os produtos, não precisa pagar nada. Digamos que é a melhor maneira de um velho farmacêutico prestar solidariedade e homenagem a sua eterna Miss Amarante. E agora vamos ao carro?

A partir daí Larissa desempenhou seu trabalho com impressionante desenvoltura, sentindo-se muito à vontade com aquele homem gentil e bondoso, que deixara de lado o que viera fazer para cuidar do ferimento dela em primeiro lugar. Cecília, a neta dele, era extremamente simpática e bem-humorada, de forma que o que aconteceu foi uma espécie de agradável passeio pela loja toda, com o farmacêutico mostrando os carros que mais o haviam impressionado. No fim, com a orientação das fichas técnicas convenientemente exibidas pela moça, Waissmann chegou ao ponto final. Tinha dois possíveis automóveis em vista, restava agora ver a questão do preço final e do possível desconto.

Larissa sabia, que, nesses casos especiais, devia recorrer à gerente geral da loja, cuja autoridade final prevaleceria sempre. Entrou na sala da gerente e disse:

– Carmen, com licença. O Seu Waissmann está pedindo um desconto maior, coisa que eu não posso dar. Mas eu lhe peço o seguinte: ele foi tão bom comigo, tão solidário, que eu posso ceder o desconto da minha comissão. Pode tirar tudo para ele, eu não me importo, até vou ficar muito feliz.

Fofinha! – exclamou Gládis, que estava na sala da mãe – Mas que coraçãozinho de ouro. E que curativo mais caro esse, hein, mamita!

– Minha filha, não precisa o seu sacrifício, você tem que ganhar a sua comissão, é justo e é necessário para você, agora que saiu de casa. Pode deixar, eu tenho a minha margem de manobra, é suficiente para resolver a parada.

No fim, negociando o preço com a própria gerente, o farmacêutico saiu feliz com 10% de desconto, já dirigindo seu carro novo, um Peugeot com apenas um ano de uso, que fizera o seu coração pular mais forte, amor à primeira vista. Aliás, ao primeiro prazo, pois parte do total foi rapidamente aprovado para financiamento em 12 meses.

CONTINUA

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