terça-feira, 8 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 24   
MILTON MACIEL  

24 – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E REAÇÃO
Fim do cap. 23:"Gládis de Rios esperava que um dia viesse a ter a serenidade de mamita. Mas isso só quando tivesse a idade de mamita. Enquanto isso, e pelos próximos vinte anos, ela se permitiria continuar com o seu pior defeito: Gládis De Rios não sabia perdoar!

Ela então recostou Larissa no sofá, disse-lhe que ia buscar um cafezinho. Na verdade, voltou com um cálice de um licor medianamente forte e fez a moça tomar tudo de uma só vez. Pouco tempo depois, Larissa se ergueu e quis falar algo, para demonstrar sua gratidão a Gládis. Esta, porém, colocou-lhe a mão sobre os lábios e disse:

– Não, não, não! Chega de emoções fortes por hoje. Outra hora você me diz o que está querendo dizer. Ou nem precisa, não esqueça que eu sou uma bruxinha e sinto perfeitamente o que você está sentindo agora.

Larissa então fez algo que ela só a vira fazer com Fúlvio Rondelli: Em pé como estavam, abraçou-se a Gládis e afundou sua cabeça no pescoço da espanholita, os cabelos loiros se fundindo e se perdendo dentro da massa de cabelos negros longos e abundantes. Para Gládis, aquilo era mais do que todo um discurso de palavras de agradecimento. Era como se sua Fofinha lhe dissesse: eu reconheço você como minha amiga, confio em você, me entrego a você.

Gládis achou lindo aquilo. Era uma entrega verdadeira, uma maneira de Larissa dizer que se sentia agradecida e, muito mais do que isso, que se sentia segura, protegida, com Gládis. Exatamente como ela demonstrava, inúmeras vezes, sempre se repetindo, jogando a cabecinha no peito largo de Fúlvio Rondelli. Com era diferente de todo mundo aquela menina! Um mulherão no físico, mas, em muitos sentidos, ainda uma menina, uma criança sem maldade alguma, uma coelhinha assustada e insegura.

Que ironia! Pois todos, vendo sua beleza desmedida e pensando nela como a moça mais rica de Amarante, jamais poderiam imaginar por que razões ela não era um poço de vaidade e de soberba. Era ainda mais incrível que, sendo alvo certeiro da inveja de um sem número de mulheres, por ser a mais bonita de todas, que ela também as invejasse por seu turno, porque sonhara desde criancinha ser menos bela, ser como as outras, ser apenas normal.

Gládis de Rios prolongou o abraço com que envolveu Larissa durante todo o tempo em que ela quis permanecer assim aconchegada. Não havia pressa, estavam se dizendo coisas que as palavras comuns dificilmente conseguem transmitir. Mas, enquanto isso, a espanholita não conseguia deixar de pensar também naqueles dois velhos malditos, o anão de jardim esbofeteando a carinha linda de sua Fofinha. E o porco comprido seviciando-a meses a fio. Ah, mas isso não ia ficar assim, não ia mesmo!

Mas resolveu que era melhor deixar para pensar com mais calma, afinal, se havia um ditado popular em que ela acreditava era aquele que dizia que “Vingança é um prato que se come frio”.

Finalmente Larissa saiu suavemente do abraço de Gládis, tomou-lhe as mãos entre as suas e, como sempre fazia, murmurou aquele ‘Deus lhe pague’ que vinha do fundo do coração. Despediu-se dizendo:

– Você não pode imaginar o tamanho do bem que você me fez, Gládis. Eu venho com esses segredos atravessados na garganta desde criança, nunca tive ninguém com quem dividir o fardo. Saber que eu pude botar todo esse lixo pra fora e você não me condenou por nada, me aceita assim do mesmo jeito... Ah, isso não tem preço, por mais que eu viva nunca vou poder pagar o que você fez.

– Não vai pagar porque não tem nada a ser pago. Amigas são assim, fazem tudo uma pela outra, sem esperar nada de volta. O que conta é que a gente se gosta e só isso é importante. Agora pode ir, vá direto para casa, se preferir, eu tenho autoridade para dispensar você e mamita com certeza concordaria. Vá descansar, esfriar essa cabecinha. E eu só quero dizer uma coisa para terminar: Para mim, você continua tão pura como eu sempre pensei. Te amo, Fofa.

Miss Amarante saiu como que flutuando, tinha um sorriso beatífico preso nos lábios, não queria pensar em mais nada, a não ser nas palavras gostosas de Gládis e no incrível fato que aquela mulher iluminada sabia que era ela, Larissa, que queria falar com ela – e, não, o contrário. Ah, certos dias da vida eram tão bons de se viver! Gládis era tão madura, tão forte, tão corajosa, tão... paranormal, dava-lhe tanta segurança! E, no entanto, tinha exatamente a mesma idade dela, 23 anos somente.

Foi embora para casa mesmo. Já que Gládis a dispensara e, certamente, ia dar alguma justificativa que não a comprometesse para o padrinho, preferiu chegar logo na solidão do seu quarto para saborear cada momento de sua maravilhosa experiência com sua nova amiga. Nova? Como nova? Única! Que outra mulher, em Amarante, ela poderia chamar de amiga, não só agora, como sempre? Talvez só tia Christa tivesse sido sua amiga, mas, ao mesmo tempo, atormentara-a tanto com seu fanatismo religioso...

Entrou feliz e cantando, estava leve e eufórica como não lhe acontecia há muito tempo, talvez desde criança. Mas teve o azar de dar de cara com sua mãe logo no primeiro minuto:

– Ainda bem que você teve a inteligência de voltar mais cedo daquela oficina. Nestes últimos dias você parece uma operária, uma tipinha qualquer. Onde já se viu uma moça fina e educada como você, além disso a mulher mais bonita desta cidade, enfiada numa oficina com um monte de homens, mecânicos, ainda por cima.

Larissa respondeu com muita calma:

– Meu padrinho é mecânico e é o melhor homem que eu conheci na vida.

– Seu padrinho é um sujeito bom, não se pode negar. Mas daí a dizer que ele é o melhor homem que você já conheceu... E o seu pai? E o seu noivo? Esses é que você tem que considerar bons na sua vida. E são gente do seu nível, não são reles mecânicos...

– Mãe, o Leon não é meu noivo! Não é mais, já esqueceu?

– Não é porque você é uma ignorante, uma paspalhona. Onde você vai encontrar melhor partido em Amarante do que Leon Schlikmann?

– E quem disse que eu tenho que casar, se eu não tenho vontade?

– Ora, mas que idiotice! O que pode acontecer de mais importante na vida de uma mulher do que fazer um bom casamento, se tornar uma senhora de respeito na sociedade?

– Trabalhar. Trabalhar e ter uma carreira é muito melhor!

– Trabalhar? Mas trabalhar pra quê? Que coisa mais ridícula que você está dizendo. Você não precisa trabalhar, tem todo o dinheiro do mundo a seu dispor.

– Tenho o dinheiro do meu pai, que nunca está a meu dispor e nem ao seu. O dinheiro é dele, ele deixa isso muito claro sempre. A gente que mendigue até ele se dar por satisfeito.

– Sua desaforada! Isso é jeito de falar do seu pai? Ah, se ele escuta isso. E, pior, se escuta que você acha trabalhar melhor do que casar com um Schlikmann... Ah, mas ele enche você de bofetada e eu apoio.

– Ai, mãe, para, por favor, não estraga o meu dia, que foi tão maravilhoso.

– Maravilhoso um dia numa oficina mecânica? Você enlouqueceu? Ah, mas eu vou falar pro seu pai, está na hora dele proibir você de ir pra esse antro de vagabundos todo santo dia, só para ajudar o Rondelli, trabalhando de graça para ele. Que coisa horrível. E olhe só pra você: Que coisa horrível que está esse seu cabelo, há quantos dias você não vai ao salão de beleza, não faz uma hidratação, um bom penteado. Você está parecendo uma zinha qualquer, só falta me aparecer aqui com um macacão todo sujo de graxa. Olha só esse seu vestido, já vi você com ele umas três vezes nos últimos dias. Cadê a classe da Miss Amarante? Desaprendeu tudo o que eu ensinei a vida inteira? Ah, mas é hoje que eu falo com seu pai e ele proíbe você de voltar pra essa oficina.

– Você é que enlouqueceu, mãe. Para com isso, me deixa em paz, por favor.

E, fazendo meia volta, correu para seu quarto e trancou a porta.

Ah, que coisa, aquela louca ia querer estragar o melhor dia dela na Teles! Não, ela não ia deixar que isso acontecesse.

Entrou no banho, encheu a banheira, ficou um longo tempo de molho, degustando os momentos maravilhosos com Gládis de Rios. Sua fada madrinha! Tão moça e já tão poderosa... Ah, como devia ser bom ser Gládis de Rios, como devia ser bom ter uma mãe como Carmen de Rios. Bondosa, centrada, grande profissional, companheira de tudo para a filha. Todos comentavam como as duas se davam bem. Paula contou que Gládis lhe dissera, um dia, que Carmen jamais ergueu o braço para bater nela, que nunca soube o que era apanhar na infância. E nem na vida adulta.

Como devia ser maravilhoso nunca ter apanhado. Nunca! Já ela tinha sido saco de pancadas tanto da mãe como do pai, vezes sem fim. E teria sido muito pior ainda, se não tivesse sido pelo padrinho Fúlvio. Mas segurou a emoção, não queria chorar, não queria estragar aquele dia fantástico.

Mas, quando acabou o longo banho e colocou um robe, para descer e comer alguma coisa rapidamente na cozinha, antes que sua mãe recomeçasse a ladainha, alguém se encarregou de estragar de vez o seu dia: Valdemar Silva.

O pai estava esperando ao pé da escada que ela descesse. E foi direto ao assunto:

– Será que você não aprende, não tem jeito mesmo? Sempre fazendo a pobre da sua mãe sofrer com suas impertinências. A coitada me ligou aos prantos, disse que tinha tomado um remédio forte para os nervos, que não ia aguentar o que você fez. Eu larguei a firma e vim correndo para cá. A coitada está lá, jogada na cama, num sofrimento horrível. Você não presta mesmo!

Larissa já sabia o resto do script. Vezes sem conta isso tinha acontecido em sua vida. A mãe fingia, fazia sua chantagem e o tonto do pai caía direitinho na armação dela. O que ela queria, sempre, é que ele batesse nela. Isso lhe daria um enorme prazer, ela sabia que a mãe era assim, doente, neurótica. E sabia que o pai gostava de bater, para se sentir superior. Tinha complexo por causa do tamanho, por ter sido muito pobre, por não ter estudo. Vivia se exibindo de todas as maneiras, principalmente humilhando seus empregados e outras pessoas, que não tinham dinheiro como ele.

Ficou nervosíssima. Parecia mentira que aquele dia tão fantástico ia terminar com uma agressão. Todo o enorme medo que ela tinha de sofrer violência tomou conta dela, seu corpo começou a tremer e ele apenas balbuciou:

– Por favor, pai, calma. Não precisa apelar pra violência, vamos conversar...

– Ah, agora você quer conversar, não é? Por que não conversou com sua mãe, quando ele quis lhe enfiar juízo nessa cabeça oca? Quando falou pra ela que não quer casar com o Leon, que prefere trabalhar. Trabalhar uma pinoia! Mulher minha e filha minha não trabalham fora, que eu não deixo. Nunca deixei, você fez aquela faculdade de frescura, porque eu não permito que você trabalhe e ponto final. E de hoje em diante a senhora não me sai de casa por uma semana. E está proibida de ir naquela firma, naquela oficina onde o Rondelli trabalha. Aquilo é lugar de peão e de mulher vagabunda.

Larissa ficou possessa, vendo o pai chamar sua Gládis, mais Carmen, Jennifer e Paula de vagabundas. E não se conteve:

– Vagabunda é quem não trabalha, tendo dois braços.

Furioso, Valdemar Silva vibrou-lhe um violento tapa no rosto, que a fez cambalear, desequilibrar-se e, por fim, cair batendo com o nariz no chão. Levantou-se com o nariz espirrando sangue e chegou bem junto do pai. Pela primeira vez na vida ela o encarou frente a frente, olhos nos olhos, sabendo que ia ser espancada, mas desta vez era diferente! Ele tinha ofendido suas amigas, mulheres dignas, trabalhadeiras, profissionais da maior competência e respeito, que valiam mais do que dez dúzias daquela idiota da sua mãe mentirosa. Ele tinha ofendido Gládis, a pessoa que ela compreendeu, nesse momento, que era quem ela mais amava em Amarante. Sentiu uma energia diferente, sentiu raiva, permitiu-se sentir essa raiva, libertou-se de ter medo daquele monstro e o desafiou:

– Covarde! Maldito! Eu te odeio, desgraçado! Bate mais, bate mesmo, mata logo. Mas mata mesmo, porque se não matar, eu juro que vou prestar queixa na delegacia agora mesmo. Chega, eu tenho 23 anos, você não vai mais bater em mim, monstro.

Falou tudo isso numa saraivada, aos gritos, como nunca tinha ousado fazer com ninguém, que dirá com aquele gnomo violento de pernas tortas. Junto com os seus gritos, o ar que saía de suas narinas ia carregado do sangue que escorria e manchou toda a camisa do pai.

Nesse momento sua mãe, que a tudo assistia escondida, se apavorou. Uma de suas fraquezas era não poder ver sangue. Ficou desnorteada, assustada com o que estava vendo e ouvindo, percebeu que tinha ido longe demais e que o marido tinha batido com muita força, com muita raiva, descontrolado também.

Deu um salto e se interpôs entre a filha e o soco do marido, que ia certeiro para o rosto da garota. O rosto acertado foi o da mãe, que foi direto a nocaute.

Larissa passou a mão no seu próprio rosto ensanguentado, recolheu o sangue abundante na palma e o esfregou no rosto do pai, sibilando:

– Toma desgraçado, aproveita. É o último que você arranca de mim. Nunca mais!

E num gesto extremo, como nunca imaginou que seria capaz de fazer um dia, subitamente ela entrefechou a mão e lanhou fundo o rosto do homem com suas unhas bem feitas, E completou:

– E é o primeiro que eu arranco de você. Agora vê se reage como um homem e cuida da sua mulher desmaiada, seu covarde nojento. Vocês se merecem. Enfia o seu dinheiro sujo no rabo, eu não preciso dele. Pra mim acabou!

Valdemar Silva estava estático, atônito, sem saber o que fazer, sem conseguir reagir àquela torrente de desaforos e ao gesto de agressão da própria filha. Assustava-o o estrago que fizera no rosto dela, se ela saísse dali e fosse à delegacia, como ameaçara, é claro que o delegado Amaral não ia criar problema nenhum para um Valdemar Silva. Mas o escândalo ia ser dos diabos para a reputação dele.

Mas o pior era com aquela anta desacordada. Primeiro pede para ele vir correndo da firma e dar um corretivo na desaforada, que insistia em não querer casar com Leon Schlikmann, desobedecendo as determinações do pai, falando em trabalhar. Depois se mete no meio e tenta evitar o soco bem dado. Uma idiota, como sempre. O que ele ia fazer agora? Chamar socorro, levar para o hospital, nem pensar. Ia ser um escândalo dos diabos, mesmo!

Pensando assim, esqueceu da filha completamente, tratou de despertar aquela demente. Buscou um balde d’água fria na lavanderia e jogou na cabeça e no corpo da mulher, que deu sinais de vida, começando a voltar a si muito devagar. Mas, quando ela abriu a boca, é que ele viu o estrago maior: O lábio estava cortado por dentro, já inchado e pelo menos dois ou três dentes tinham saído do lugar. Agora é que a coisa tinha ficado feia! Quando a mulher se olhasse num espelho, a casa vinha abaixo! E ela já estava gemendo e chorando de dor, era o diabo! Melhor que ela não acordasse por enquanto. Foi buscar a garrafa de licor Amaranto, que era pura pinga com açúcar e corante verde, e a obrigou a tomar vários copos cheios até à metade, sem que ela atinasse direito com o que estava fazendo, pois estava ainda muito tonta com a pancada. O resultado foi que, depois de alguns minutos, a mulher voltou a entrar num estado de inconsciência, para alivio de Valdemar Silva.

Agora era sair e procurar pelo Doutor Bernardo, na casa dele e contar a história do tombo horroroso da esposa. Se depois ela se lembrasse e contasse a verdade, com o Dr. Bernardo ele estaria seguro, aquele era um silêncio barato de comprar. Ia precisar do raio do dentista depois, mas isso era para se pensar outra hora, levava a mulher para Blumenau.

Deixou-a deitada no chão molhado e saiu de carro, direto para a caso do médico. Mais tarde, quando tudo estivesse sob controle, ia pensar no que ia fazer com a imbecil da filha, Aquilo era caso para um corretivo muito mais sério, ela ia ver o que era se meter com Valdemar Silva, ainda que fosse sua filha. Azar dela.

Na pressa e no sufoco, nem percebeu que Larissa não estava mais em casa. Estava na casa ao lado.

CONTINUA

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