quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 25   
MILTON MACIEL  

25 – INDEPENDÊNCIA OU MORTE
Fim do cap. 24:"Aquilo era caso para um corretivo muito mais sério, ela ia ver o que era se meter com Valdemar Silva, ainda que fosse sua filha. Azar dela! Na pressa e no sufoco, nem percebeu que Larissa não estava mais em casa. Estava na casa ao lado." 

Quando Fúlvio Rondelli viu, pela janela, quem tocava a campainha, levou um susto. Era sua menina, chorando desesperada e com algo que parecia sangue no rosto. Correu para ela, levou-a para dentro, ouviu a história macabra, pensou em buscar o revólver e entrar na casa daquele macaco nojento. Mas teve certeza que não teria controle, ia matar o desgraçado e quem desgraçada ia ficar era a sua menina. 

Não, ele tinha que ter cabeça, não podia ir para a cadeia e deixar sua anjinha entregue ao mundo sem sua proteção. O importante agora era tratar do ferimento dela e, como sempre fizera, não deixar que aquele ogro entrasse em sua casa, para buscar a filha maltratada e bater nela de novo. Era inacreditável que aquele filho da puta fosse capaz de fazer isso com uma moça de 23 anos de idade, como se fosse a mesma criança que ele surrava com frequência na infância.

O ferimento, felizmente, revelou-se superficial. Assim que conseguiu estancar o sangramento do nariz, com muito chumaço de algodão embebido em água oxigenada, só ficou uma marca avermelhada na maçã do rosto, que certamente ia escurecer depois. A marca da batalha ficaria vários dias no rostinho mimoso de sua afilhada. Mas a marca maior, que aquele monstro fizera mais uma vez, a pior, era na alma daquela criaturinha que era a bondade, a doçura em pessoa, a última na face da Terra a merecer essa selvageria.

Voltou a pensar no revólver, desta vez ele ia ter que tomar uma atitude. Não podia mais permitir que aquelas brutalidades se repetissem, ia abrir hostilidade direta com o Silva, um sujeito perigoso, que tinha crescido na vida deixando um rastro de desafetos e, diziam a boca não pequena, de cadáveres pelo caminho.

Larissa contou, ainda que superficialmente, sua experiência maravilhosa de poder se abrir com Gládis, de mulher para mulher. Fúlvio compreendeu como aquilo era importante para a afilhada, estimulou-a a continuar com a interação, também ele aprendera a gostar muito da sagaz bruxinha do bem, a espanholita de Celso Teles.

Então ela contou, detalhe por detalhe, toda a confusão com a mãe e a agressão do pai. E como ela, pela primeira vez na vida, havia enfrentado o agressor, com certeza que seria agredida e sem medo dele, tal a raiva que estava sentindo. O grande divisor de águas de sua vida tendo sido a alusão a Gládis e Carmen e às outras moças como vagabundas! Ela tinha tido coragem de falar um monte de desaforos e até um palavrão para o velho e, por fim, algo que ela não podia entender até agora como acontecera, tinha enfiado as unhas da mão ensanguentada na cara dele, lanhando-a fundo. E tivera a coragem de dar o seu grito do Ipiranga: Acabou!

Por isso aquela malinha mínima e a mochilinha com seus materiais de banheiro e toucador. Ela simplesmente estava saindo da casa dos pais. Nunca mais iria voltar aquele antro onde fora infeliz a infância inteira e continuava infeliz depois de adulta. Enfim tinha encontrado a coragem dentro de si, uma coragem que ela nunca acreditou que teria um dia.

Levava consigo pouco mais do que a roupa do corpo, seu computador portátil, alguns poucos livros, um par de chinelos, seu robe de estimação, roupa íntima e seu conjuntinho azul, que era o seu favorito total. O resto que ficasse, que o mão-de-vaca vendesse pros brechós e ficasse um pouco mais rico. Ela não queria nada que viesse dele. Que ele enfiasse o dinheiro dele onde ela tinha dito, na hora da fúria. Ela proclamara sua independência e independência era não usar, nunca mais, um único tostão daquele sovina. Agora ela tinha um emprego, tinha um salário fixo médio, mas já tinha uma comissão para receber da venda para Neco Palhares, um valor que ela levara um susto ao saber como era alto.

Explicou a Fúlvio que precisava de um lugar para morar e que sabia que não podia ser ali, na casa do padrinho, porque o pai dela faria um pandemônio e ia botar seus capangas para ameaçar Rondelli, não queria que ele se arriscasse a um enfrentamento com o velho Silva.

– Padrinho eu pensei em ir para aquele apart-hotel onde vivem as meninas, o que é da Dona Sonia Assad. Elas falam tão bem de lá. Eu fui lá uma vez com a Jennifer, buscar uma coisa que ela tinha esquecido, foi muito rápido, mas eu achei uma maravilha, fiquei sonhando acordada, louca para poder, um dia, ter coragem de sair de casa e ir viver num lugar assim. Pois agora eu acho que chegou a hora!

Fúlvio coçou a cabeça, pensou, pensou e acabou concordando:

– Pois olhe, minha filha, que eu acho que você está certa. Aliás, eu estou tão surpreso e tão feliz com a sua atitude, a sua coragem nestas últimas horas. E estou muito orgulhoso de você, se você quer saber! É isso mesmo, ficar aqui seria um problema grande para mim, mas eu não fugiria disso. Contudo, seria um problema muito pior para você. Vamos dar um jeito nessa história de apart-hotel e vai ser já, antes que aquele infeliz desabe por aqui e comece a criar encrenca de novo. Vamos para o carro.

Aí ele lembrou do SUV de Larissa:

– E o seu carro, como é que vai ficar?

– Ora, vai ficar ficando, padrinho. Aquilo está em nome da firma, nunca foi meu de verdade. Mas, mesmo que estivesse no meu nome, eu não ia levar. É independência ou é morte, não é mesmo?

– Tem razão, minha filha. Carro a gente dá um jeito, falo com o Celso e...

– Não mesmo, padrinho, nada disso. Pelo amor de Deus, não fale com o chefe, isso não é problema dele, é meu. Eu não quero passar de um rico para outro, não quero depender de mais ninguém. Eu não nasci com carro, posso viver perfeitamente sem um. Se as minhas vendas forem boas, quem sabe eu não posso realizar aquele meu velho sonho, que o senhor sabe muito bem qual é, o carrinho que eles nunca me deixaram ter porque é carro de pobre.

– É mesmo, o seu fusca! Mas isso é verdade mesmo? Você andaria num fusca, depois de ter tido todos esses carrões que você teve?

– Eu não tive carrão algum, padrinho, eram todos dele. O fusca, quando eu puder, vai ser o meu primeiro carro. E aí eu vou andar nele com o maior orgulho, pela primeira vez eu vou estar dirigindo algo que eu comprei com o meu trabalho.

Rondelli deu um tapa na testa.

– Caramba, lembrei de uma coisa, espere aí, vou lá dentro buscar.

Entrou rápido em seu quarto e voltou com o cheque de Neco Palhares, que ainda não havia depositado. Entregou-o a Larissa:

– Está aí, minha filha, é todo seu, para você começar sua nova vida. De mim você não vai poder dizer que não quer depender, que não quer passar de um rico para outro, porque eu sou, segundo o próprio Palhares falou duas vezes, só um durango.

– O senhor é um amor, padrinho. Mas esse dinheiro é seu.

– Meu, coisa nenhuma, querida. Esse dinheiro é do Celso, você sabe, ele simplesmente deu pra mim, com aquela generosidade que só ele tem neste mundo. Eu confesso que ainda não metabolizei isso direito, nem sabia o que fazer com esse dinheiro. Você me conhece, sabe que eu sou um homem muito simples e econômico, vivo com muito pouco. Mas agora, com esse salário enorme que o Celso me paga, já estou com uma poupança gorda no banco.

– Mas padrinho...

– Não tem mas, nem meio mas... Você é a filha que eu nunca tive, se eu vivo a minha vida contente é porque eu tenho você comigo, você sabe muito bem. E um pai verdadeiro não deixa uma filha desvalida numa hora dessas. Aceite o dinheiro que o Celso nos deu, vamos usar para começar sua nova vida. Vamos pagar o aluguel adiantado, vamos comprar o seu fusca, pode deixar que eu acho um e deixo o carrinho zero bala para você.

Larissa, como seria de se esperar, esvaiu-se em lágrimas de gratidão, abraçada a Fúlvio Rondelli:

– Um pai tão maravilhoso como o senhor, padrinho, e eu tinha que vir ao mundo pelas mãos daquele desgraçado que só me encheu de bofetada e vergonha. Deus teve piedade de mim padrinho. Então tá, eu aceito, porque esse dinheiro caiu do céu, não veio do seu suor. E também porque, se ele passou pela mão e pelo coração do Celso, então só pode ser um dinheiro abençoado, o que a gente fizer com ele está fadado a dar certo, como tudo que o nosso Celso Romano faz.

Rondelli deu um beijo no cheque e falou:

– Deixe comigo. Amanhã eu desconto sem fazer nove horas e deposito o dinheiro na sua conta.

– Que conta, padrinho? Eu nunca tive conta em banco, meu pai disse que eu não precisava, que o dinheiro era dele e ele é que dava, quando achasse que eu merecia.

– Maldito! Mas amanhã, com certeza, a gente vai ao meu banco e o Murilo abre a sua conta na hora. Ainda mais com um valor alto desses e um cheque especial justo do Neco Palhares. Bem, mas agora vamos tomar o rumo da Sonia Assad?

– Vamos, padrinho. Vamos sair logo. Eu vou aproveitar que o seu carro está na garagem e entro nele ali mesmo. É que eu não quero nem olhar pra essa casa onde eu vivi esse inferno todos esses anos. Se puder, não boto meus olhos nela nunca mais. Vamos!

Eram nove e vinte da noite quando o interfone tocou no apartamento de Gládis e Carmen. Uma voz rouca, impessoal, com timbre anasalado, masculino, falou:

– Alô, é do 23?

Fofinha, você aqui?! O que foi que aconteceu?

– Ah, não vale, eu fiz outra voz, bem disfarçada! Como você sabe que sou eu?

– Ora, sabendo, Fofinha. Isso de disfarçar a voz comigo, desista. Não funciona nunca. Mas o que você está fazendo aqui a esta hora da noite? E com esse coraçãozinho batendo que parece que vai sair pela boca...

– Pois se prepare, você vai cair de costas. Eu sou a sua nova vizinha, vou morar aqui no 32.

– O que?!! Mamita, a Fofinha enlouqueceu, disse que acaba de se mudar pra cá, pro 32, aqui em cima. Puxa, onde é que você está neste momento?

– No meu apartamento, ora.

– Caramba, não sai daí, estou subido, vou meio pelada mesmo. Mamita, pega alguma coisa pra me cobrir e vem atrás de mim. Eu já estou na corrida.

Segundos depois uma esbaforida corredora espanhola invadia o apartamento 32, de baby doll semitransparente. Um espetáculo para os olhos cansados de Fúlvio Rondelli, que agradeceu a Deus a recompensa tão rápida pelo cheque que dera a Larissa. Que coisa mais linda aquele corpo, a calcinha, as ancas, os seios rígidos sem sutiã sob o tecido semitransparente, as auréolas, os bicos! Rondelli ficou de olhos arregalados, sem tentar disfarçar seu encantamento. Gládis não se perturbou nem um pouquinho, Se havia uma coisa que ela não tinha era falsos pudores. Sempre soube, desde que botou corpo na puberdade, que tinha uma coisa explosiva para os homens, que depois soube que chamavam de sex appeal. Rondelli que desfrutasse, coitado. Olhar não tirava pedaço. Aliás, se tirasse, pobre Gládis, ia ficar sem ter sobre o que sentar naquela noite.

De qualquer forma, o momento mágico durou pouco, para pesar de Fúlvio Rondelli. A cavalaria chegou logo atrás, uma espanholita-mãe trazendo um casaquinho três quartos. Ela mesma o vestiu em Gládis, escondendo peitos e ancas. Mas, ainda assim, deixando de fora aquele par de coxas monumentais para desconcentrar o pobre do italiano. Que disfarçou o que deu, mas volta e meia arriscava um olho, procurando o triângulo rosa da calcinha exposta entre as coxas cruzadas. Ah, em certas horas ser homem mantem o cidadão suspenso entre o céu e o inferno! E ele pensava, divertido:

Catzo, que injusto! Eu todo perturbado aqui. Imagine só se fosse o contrário. Eu de perna cruzada, um pedacinho da cueca aparecendo. E elas morrendo de rir de mim, sem o menor tesão.

A excitação que tomava conta das mulheres era outra, era a de querer saber o que aquela súbita mudança representava. Até então  Larissa tivera o cuidado de manter a mão sobre a maçã do rosto, do lado esquerdo. Aí retirou-a e ficou observando a reação das outras duas.

– Filho da puta! – Gládis deu um berro impressionante, assustando Carmen – Eu mato esse velho!

Para ela não era necessário dizer o que era aquela marca feia e quem a fizera.

Mamita, olha só o que o merda daquele macaco fez com a carinha dela. Ah, mas eu vou capar esse desgraçado!

Larissa olhou para Carmen, suas lágrimas de novo abundantes confirmando o que Gládis acabara de deduzir. Ou melhor, intuir.

– Ele teve coragem de bater em você, minha filha? Mas por que? O de sempre? Casar com o filho do Schlikmann?

Foi Rondelli quem respondeu:

– Também isso, Carmen. Mas foi principalmente porque o macaco, como a Gládis o chamou, proibiu Larissa de continuar indo à Teles Automóveis e disse que lá era lugar onde só trabalhavam vagabundas. Foi a gota d’água, a menina tomou as dores de vocês e partiu pra cima do homem, possessa, dizendo um monte de ofensas, disse que até palavrão conseguiu falar pra ele. E, no fim, sentou as unhas na cara dele, arranhou aquela cara de anão de jardim.

A glória!!! – e Gládis saltou sobre Larissa, enchendo-a de beijos, no maior entusiasmo – Minha Fofinha virou gente grande!

– Ele não podia dizer isso de você e da Carmen, Gládis! Não podia! Aí eu fiquei que nem louca, fui pra cima dele, sabendo que ia apanhar, mas, pela primeira vez na vida, sem medo, só com raiva. Eu sempre tive raiva dele, mas eu era muito covarde, meu medo era sempre maior que a minha raiva. Hoje foi o contrário. Quando ele falou aquilo de vocês, eu... Ah, não sei explicar o que me aconteceu, mas, de repente, eu era outra pessoa, uma Larissa que eu nunca conheci.

– Não é fofa demais, mamita? Enfrenta a fera pra defender as belas.

Foi a vez de Carmen de Rios se aproximar e abraçar Larissa:

– Obrigada, minha filha. Você foi muito corajosa hoje. E nos defendeu, com certeza.

Rondelli, que agora não tinha mais Gládis sentada, de pernas cruzadas – pero no mucho! – para perturbar seu raciocínio entrou na conversa:

– E isso não foi tudo. O animal acabou agredindo também a própria esposa, botou ela a nocaute. Só que foi sem querer, ele mandou um soco com toda força na carinha da Larissa, mas, nessa hora, a mãe entrou no meio deles e o murro atingiu foi a cara dela. Lona direto!

– Céus, coitada! – comentou Carmen, surpresa.

– Bem feito pros dois – foi a resposta de Gládis de Rios, a que não sabia perdoar. Vão ter problemas de sobra, o castigo está chegando a galope.

– Mas, como está ela?

– A gente não sabe, Carmen. E nem eu acho que a Larissa deva querer saber. É problema deles. Ela já tem os dela de sobra. Amanhã mesmo o tal macaco, quando tiver certeza que Larissa não voltou pra casa dela e que não está na minha, vai montar num porco e fazer o maior escarcéu.

– Ah, mas é tudo o que eu mais quero! Que esse merda me apareça aqui ou na firma, ele que ouse! – Gládis esbravejava altíssimo de novo.

– Minha filha, calma. Você parece que vai ter um troço.

– Eu vou ter um troço se eu não fizer nada, mamita! A Fofinha tomou as dores por nós e nos defendeu. Agora é a nossa vez de tomarmos as dores por ela. E nós é que vamos defender a nossa defensora.

– Hum..  e eu acho que já sei muito bem o que minha hijita está pensando fazer. Sua menina danada!

– E ele não merece, mamita?

– Merece, sim. Está de bom tamanho, hijita. E não adianta eu dizer para você não fazer, não é?

– Claro que não, mamita. Que pergunta boba!

Larissa ficou inquieta, com medo que Gládis fosse se expor a algum perigo, imprudentemente:

– O que é que você vai fazer, Gládis? Pelo amor de Deus, não se arrisque, meu pai é um homem perigoso.

– E eu não sei? Mas aí é que está a graça, isso é que deixa a coisa mais gostosa.

– Mas o que você vai fazer? Ai, por favor, você está me deixando assustada. Eu não quero que nada de ruim aconteça com você nunca.

– Mas que menina mais fofinha! Ela vira bicho na hora de defender nossa honra e depois não quer que eu vire bicho na hora de defender a carinha dela. Agora é tarde, garotinha. Você já conquistou as De Rios. E, quando alguém ataca quem as De Rios amam, então atacam as De Rios. Não é assim, mamita?

– Com certeza, agora é na base do “um por todos, todos por um”.

– Isso, mamita. E eu vou ser o d’Artagnan de saias. Aliás, de baby doll, não é Fúlvio?

O italiano engasgou, virou para o outro lado, fez que não tinha ouvido nada. Moça danada aquela! O tempo todo devia estar curtindo com a cara dele, seus olhares disfarçados para as coxas e a calcinha dela. Catzo!

CONTINUA


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