MILTON MACIEL
25 – INDEPENDÊNCIA OU MORTE
Fim do cap. 24:"Aquilo era caso para um corretivo muito mais sério, ela ia ver o que era se meter com Valdemar Silva, ainda que fosse sua filha. Azar dela! Na pressa e no sufoco, nem percebeu que Larissa não estava mais em casa. Estava na casa ao lado."
Quando Fúlvio Rondelli viu, pela janela, quem
tocava a campainha, levou um susto. Era sua menina, chorando desesperada e com
algo que parecia sangue no rosto. Correu para ela, levou-a para dentro, ouviu a
história macabra, pensou em buscar o revólver e entrar na casa daquele macaco
nojento. Mas teve certeza que não teria controle, ia matar o desgraçado e quem desgraçada
ia ficar era a sua menina.
Não, ele tinha que ter cabeça, não podia ir para a
cadeia e deixar sua anjinha entregue ao mundo sem sua proteção. O importante
agora era tratar do ferimento dela e, como sempre fizera, não deixar que aquele
ogro entrasse em sua casa, para buscar a filha maltratada e bater nela de novo.
Era inacreditável que aquele filho da puta fosse capaz de fazer isso com uma
moça de 23 anos de idade, como se fosse a mesma criança que ele surrava com
frequência na infância.
O ferimento, felizmente, revelou-se
superficial. Assim que conseguiu estancar o sangramento do nariz, com muito
chumaço de algodão embebido em água oxigenada, só ficou uma marca avermelhada
na maçã do rosto, que certamente ia escurecer depois. A marca da batalha ficaria
vários dias no rostinho mimoso de sua afilhada. Mas a marca maior, que aquele
monstro fizera mais uma vez, a pior, era na alma daquela criaturinha que era a
bondade, a doçura em pessoa, a última na face da Terra a merecer essa
selvageria.
Voltou a pensar no revólver, desta vez ele ia
ter que tomar uma atitude. Não podia mais permitir que aquelas brutalidades se
repetissem, ia abrir hostilidade direta com o Silva, um sujeito perigoso, que
tinha crescido na vida deixando um rastro de desafetos e, diziam a boca não
pequena, de cadáveres pelo caminho.
Larissa contou, ainda que superficialmente, sua
experiência maravilhosa de poder se abrir com Gládis, de mulher para mulher.
Fúlvio compreendeu como aquilo era importante para a afilhada, estimulou-a a
continuar com a interação, também ele aprendera a gostar muito da sagaz
bruxinha do bem, a espanholita de Celso Teles.
Então ela contou, detalhe por detalhe, toda a
confusão com a mãe e a agressão do pai. E como ela, pela primeira vez na vida,
havia enfrentado o agressor, com certeza que seria agredida e sem medo dele,
tal a raiva que estava sentindo. O grande divisor de águas de sua vida tendo
sido a alusão a Gládis e Carmen e às outras moças como vagabundas! Ela tinha tido coragem de falar um monte de desaforos e
até um palavrão para o velho e, por fim, algo que ela não podia entender até
agora como acontecera, tinha enfiado as unhas da mão ensanguentada na cara
dele, lanhando-a fundo. E tivera a coragem de dar o seu grito do Ipiranga:
Acabou!
Por isso aquela malinha mínima e a mochilinha
com seus materiais de banheiro e toucador. Ela simplesmente estava saindo da
casa dos pais. Nunca mais iria voltar aquele antro onde fora infeliz a infância
inteira e continuava infeliz depois de adulta. Enfim tinha encontrado a coragem
dentro de si, uma coragem que ela nunca acreditou que teria um dia.
Levava consigo pouco mais do que a roupa do
corpo, seu computador portátil, alguns poucos livros, um par de chinelos, seu
robe de estimação, roupa íntima e seu conjuntinho azul, que era o seu favorito
total. O resto que ficasse, que o mão-de-vaca vendesse pros brechós e ficasse
um pouco mais rico. Ela não queria nada que viesse dele. Que ele enfiasse o
dinheiro dele onde ela tinha dito, na hora da fúria. Ela proclamara sua
independência e independência era não usar, nunca mais, um único tostão daquele
sovina. Agora ela tinha um emprego, tinha um salário fixo médio, mas já tinha
uma comissão para receber da venda para Neco Palhares, um valor que ela levara
um susto ao saber como era alto.
Explicou a Fúlvio que precisava de um lugar
para morar e que sabia que não podia ser ali, na casa do padrinho, porque o pai
dela faria um pandemônio e ia botar seus capangas para ameaçar Rondelli, não
queria que ele se arriscasse a um enfrentamento com o velho Silva.
– Padrinho eu pensei em ir para aquele
apart-hotel onde vivem as meninas, o que é da Dona Sonia Assad. Elas falam tão
bem de lá. Eu fui lá uma vez com a Jennifer, buscar uma coisa que ela tinha
esquecido, foi muito rápido, mas eu achei uma maravilha, fiquei sonhando
acordada, louca para poder, um dia, ter coragem de sair de casa e ir viver num
lugar assim. Pois agora eu acho que chegou a hora!
Fúlvio coçou a cabeça, pensou, pensou e acabou
concordando:
– Pois olhe, minha filha, que eu acho que você
está certa. Aliás, eu estou tão surpreso e tão feliz com a sua atitude, a sua
coragem nestas últimas horas. E estou muito orgulhoso de você, se você quer
saber! É isso mesmo, ficar aqui seria um problema grande para mim, mas eu não
fugiria disso. Contudo, seria um problema muito pior para você. Vamos dar um
jeito nessa história de apart-hotel e vai ser já, antes que aquele infeliz
desabe por aqui e comece a criar encrenca de novo. Vamos para o carro.
Aí ele lembrou do SUV de Larissa:
– E o seu carro, como é que vai ficar?
– Ora, vai ficar ficando, padrinho. Aquilo está
em nome da firma, nunca foi meu de verdade. Mas, mesmo que estivesse no meu
nome, eu não ia levar. É independência ou
é morte, não é mesmo?
– Tem razão, minha filha. Carro a gente dá um
jeito, falo com o Celso e...
– Não mesmo, padrinho, nada disso. Pelo amor de
Deus, não fale com o chefe, isso não é problema dele, é meu. Eu não quero
passar de um rico para outro, não quero depender de mais ninguém. Eu não nasci
com carro, posso viver perfeitamente sem um. Se as minhas vendas forem boas,
quem sabe eu não posso realizar aquele meu velho sonho, que o senhor sabe muito
bem qual é, o carrinho que eles nunca me deixaram ter porque é carro de pobre.
– É mesmo, o seu fusca! Mas isso é verdade mesmo?
Você andaria num fusca, depois de ter tido todos esses carrões que você teve?
– Eu não tive carrão algum, padrinho, eram
todos dele. O fusca, quando eu puder, vai ser o meu primeiro carro. E aí eu vou
andar nele com o maior orgulho, pela primeira vez eu vou estar dirigindo algo
que eu comprei com o meu trabalho.
Rondelli deu um tapa na testa.
– Caramba, lembrei de uma coisa, espere aí, vou
lá dentro buscar.
Entrou rápido em seu quarto e voltou com o
cheque de Neco Palhares, que ainda não havia depositado. Entregou-o a Larissa:
– Está aí, minha filha, é todo seu, para você
começar sua nova vida. De mim você não vai poder dizer que não quer depender,
que não quer passar de um rico para outro, porque eu sou, segundo o próprio
Palhares falou duas vezes, só um durango.
– O senhor é um amor, padrinho. Mas esse
dinheiro é seu.
– Meu, coisa nenhuma, querida. Esse dinheiro é
do Celso, você sabe, ele simplesmente deu pra mim, com aquela generosidade que
só ele tem neste mundo. Eu confesso que ainda não metabolizei isso direito, nem
sabia o que fazer com esse dinheiro. Você me conhece, sabe que eu sou um homem
muito simples e econômico, vivo com muito pouco. Mas agora, com esse salário
enorme que o Celso me paga, já estou com uma poupança gorda no banco.
– Mas padrinho...
– Não tem mas, nem meio mas... Você é a filha
que eu nunca tive, se eu vivo a minha vida contente é porque eu tenho você
comigo, você sabe muito bem. E um pai verdadeiro não deixa uma filha desvalida
numa hora dessas. Aceite o dinheiro que o Celso nos deu, vamos usar para
começar sua nova vida. Vamos pagar o aluguel adiantado, vamos comprar o seu
fusca, pode deixar que eu acho um e deixo o carrinho zero bala para você.
Larissa, como seria de se esperar, esvaiu-se em
lágrimas de gratidão, abraçada a Fúlvio Rondelli:
– Um pai tão maravilhoso como o senhor,
padrinho, e eu tinha que vir ao mundo pelas mãos daquele desgraçado que só me
encheu de bofetada e vergonha. Deus teve piedade de mim padrinho. Então tá, eu
aceito, porque esse dinheiro caiu do céu, não veio do seu suor. E também
porque, se ele passou pela mão e pelo coração do Celso, então só pode ser um
dinheiro abençoado, o que a gente fizer com ele está fadado a dar certo, como
tudo que o nosso Celso Romano faz.
Rondelli deu um beijo no cheque e falou:
– Deixe comigo. Amanhã eu desconto sem fazer nove
horas e deposito o dinheiro na sua conta.
– Que conta, padrinho? Eu nunca tive conta em
banco, meu pai disse que eu não precisava, que o dinheiro era dele e ele é que
dava, quando achasse que eu merecia.
– Maldito! Mas amanhã, com certeza, a gente vai
ao meu banco e o Murilo abre a sua conta na hora. Ainda mais com um valor alto
desses e um cheque especial justo do Neco Palhares. Bem, mas agora vamos tomar
o rumo da Sonia Assad?
– Vamos, padrinho. Vamos sair logo. Eu vou
aproveitar que o seu carro está na garagem e entro nele ali mesmo. É que eu não
quero nem olhar pra essa casa onde eu vivi esse inferno todos esses anos. Se
puder, não boto meus olhos nela nunca mais. Vamos!
Eram nove e vinte da noite quando o interfone
tocou no apartamento de Gládis e Carmen. Uma voz rouca, impessoal, com timbre anasalado, masculino, falou:
– Alô, é do 23?
– Fofinha,
você aqui?! O que foi que aconteceu?
– Ah, não vale, eu fiz outra voz, bem
disfarçada! Como você sabe que sou eu?
– Ora, sabendo, Fofinha. Isso de disfarçar a voz comigo, desista. Não funciona
nunca. Mas o que você está fazendo aqui a esta hora da noite? E com esse
coraçãozinho batendo que parece que vai sair pela boca...
– Pois se prepare, você vai cair de costas. Eu
sou a sua nova vizinha, vou morar aqui no 32.
– O que?!! Mamita,
a Fofinha enlouqueceu, disse que
acaba de se mudar pra cá, pro 32, aqui em cima. Puxa, onde é que você está
neste momento?
– No meu apartamento, ora.
– Caramba, não sai daí, estou subido, vou meio
pelada mesmo. Mamita, pega alguma
coisa pra me cobrir e vem atrás de mim. Eu já estou na corrida.
Segundos depois uma esbaforida corredora
espanhola invadia o apartamento 32, de baby
doll semitransparente. Um espetáculo para os olhos cansados de Fúlvio
Rondelli, que agradeceu a Deus a recompensa tão rápida pelo cheque que dera a
Larissa. Que coisa mais linda aquele corpo, a calcinha, as ancas, os seios
rígidos sem sutiã sob o tecido semitransparente, as auréolas, os bicos!
Rondelli ficou de olhos arregalados, sem tentar disfarçar seu encantamento.
Gládis não se perturbou nem um pouquinho, Se havia uma coisa que ela não tinha
era falsos pudores. Sempre soube, desde que botou corpo na puberdade, que tinha
uma coisa explosiva para os homens, que depois soube que chamavam de sex appeal. Rondelli que desfrutasse,
coitado. Olhar não tirava pedaço. Aliás, se tirasse, pobre Gládis, ia ficar sem
ter sobre o que sentar naquela noite.
De qualquer forma, o momento mágico durou
pouco, para pesar de Fúlvio Rondelli. A cavalaria chegou logo atrás, uma
espanholita-mãe trazendo um casaquinho três quartos. Ela mesma o vestiu em
Gládis, escondendo peitos e ancas. Mas, ainda assim, deixando de fora aquele
par de coxas monumentais para desconcentrar o pobre do italiano. Que disfarçou
o que deu, mas volta e meia arriscava um olho, procurando o triângulo rosa da
calcinha exposta entre as coxas cruzadas. Ah, em certas horas ser homem mantem
o cidadão suspenso entre o céu e o inferno! E ele pensava, divertido:
– Catzo,
que injusto! Eu todo perturbado aqui.
Imagine só se fosse o contrário. Eu de perna cruzada, um pedacinho da cueca
aparecendo. E elas morrendo de rir de mim, sem o menor tesão.
A excitação que tomava conta das mulheres era
outra, era a de querer saber o que aquela súbita mudança representava. Até
então Larissa
tivera o cuidado de manter a mão sobre a maçã do rosto, do lado esquerdo. Aí
retirou-a e ficou observando a reação das outras duas.
– Filho da puta! – Gládis deu um berro impressionante, assustando Carmen – Eu mato esse
velho!
Para ela não era necessário dizer o que era
aquela marca feia e quem a fizera.
– Mamita,
olha só o que o merda daquele macaco fez com a carinha dela. Ah, mas eu vou
capar esse desgraçado!
Larissa olhou para Carmen, suas lágrimas de
novo abundantes confirmando o que Gládis acabara de deduzir. Ou melhor, intuir.
– Ele teve coragem de bater em você, minha
filha? Mas por que? O de sempre? Casar com o filho do Schlikmann?
Foi Rondelli quem respondeu:
– Também isso, Carmen. Mas foi principalmente
porque o macaco, como a Gládis o chamou, proibiu Larissa de continuar indo à
Teles Automóveis e disse que lá era lugar onde só trabalhavam vagabundas. Foi a
gota d’água, a menina tomou as dores de vocês e partiu pra cima do homem,
possessa, dizendo um monte de ofensas, disse que até palavrão conseguiu falar
pra ele. E, no fim, sentou as unhas na cara dele, arranhou aquela cara de anão
de jardim.
– A
glória!!! – e Gládis saltou sobre Larissa, enchendo-a de beijos, no maior
entusiasmo – Minha Fofinha virou gente
grande!
– Ele não podia dizer isso de você e da Carmen,
Gládis! Não podia! Aí eu fiquei que nem louca, fui pra cima dele, sabendo que
ia apanhar, mas, pela primeira vez na vida, sem medo, só com raiva. Eu sempre
tive raiva dele, mas eu era muito covarde, meu medo era sempre maior que a minha
raiva. Hoje foi o contrário. Quando ele falou aquilo de vocês, eu... Ah, não
sei explicar o que me aconteceu, mas, de repente, eu era outra pessoa, uma
Larissa que eu nunca conheci.
– Não é fofa demais, mamita? Enfrenta a fera pra defender as belas.
Foi a vez de Carmen de Rios se aproximar e
abraçar Larissa:
– Obrigada, minha filha. Você foi muito
corajosa hoje. E nos defendeu, com certeza.
Rondelli, que agora não tinha mais Gládis
sentada, de pernas cruzadas – pero no
mucho! – para perturbar seu raciocínio entrou na conversa:
– E isso não foi tudo. O animal acabou
agredindo também a própria esposa, botou ela a nocaute. Só que foi sem querer,
ele mandou um soco com toda força na carinha da Larissa, mas, nessa hora, a mãe
entrou no meio deles e o murro atingiu foi a cara dela. Lona direto!
– Céus, coitada! – comentou Carmen, surpresa.
– Bem feito pros dois – foi a resposta de
Gládis de Rios, a que não sabia perdoar. Vão ter problemas de sobra, o castigo
está chegando a galope.
– Mas, como está ela?
– A gente não sabe, Carmen. E nem eu acho que a
Larissa deva querer saber. É problema deles. Ela já tem os dela de sobra.
Amanhã mesmo o tal macaco, quando tiver certeza que Larissa não voltou pra casa
dela e que não está na minha, vai montar num porco e fazer o maior escarcéu.
– Ah, mas é tudo o que eu mais quero! Que esse
merda me apareça aqui ou na firma, ele que ouse! – Gládis esbravejava altíssimo de
novo.
– Minha filha, calma. Você parece que vai ter
um troço.
– Eu vou ter um troço se eu não fizer nada, mamita! A Fofinha tomou as dores por nós e nos defendeu. Agora é a nossa vez
de tomarmos as dores por ela. E nós é que vamos defender a nossa defensora.
– Hum..
e eu acho que já sei muito bem o que minha hijita está pensando fazer. Sua menina danada!
– E ele não merece, mamita?
– Merece, sim. Está de bom tamanho, hijita. E não adianta eu dizer para você
não fazer, não é?
– Claro que não, mamita. Que pergunta boba!
Larissa ficou inquieta, com medo que Gládis
fosse se expor a algum perigo, imprudentemente:
– O que é que você vai fazer, Gládis? Pelo amor
de Deus, não se arrisque, meu pai é um homem perigoso.
– E eu não sei? Mas aí é que está a graça, isso
é que deixa a coisa mais gostosa.
– Mas o que você vai fazer? Ai, por favor, você
está me deixando assustada. Eu não quero que nada de ruim aconteça com você
nunca.
– Mas que menina mais fofinha! Ela vira bicho
na hora de defender nossa honra e depois não quer que eu vire bicho na hora de
defender a carinha dela. Agora é tarde, garotinha. Você já conquistou as De
Rios. E, quando alguém ataca quem as De Rios amam, então atacam as De Rios. Não
é assim, mamita?
– Com certeza, agora é na base do “um por todos, todos por um”.
– Isso, mamita.
E eu vou ser o d’Artagnan de saias. Aliás, de baby doll, não é Fúlvio?
O italiano engasgou, virou para o outro lado,
fez que não tinha ouvido nada. Moça
danada aquela! O tempo todo devia
estar curtindo com a cara dele, seus olhares disfarçados para as coxas e a
calcinha dela. Catzo!
CONTINUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário