MILTON MACIEL
36 – O CERCO À FORTALEZA DE SABÁ
Fim do cap. 35: "– Rondelli, eu gosto de você demais para deixar você fazer essa asneira. Confie no seu amigo aqui, eu é que vou dar um jeito definitivo nesse filha da mãe do Silva.
– Então o senhor é que vai matar ele, doutor? Verdade?"
Celso afastou-se do abraço, para poder olhar bem na cara de Rondelli:
– Que é isso, carcamano? Tá me achando com cara de burro que nem você? Eu
falei em dar um jeito definitivo no animal, não em matar a besta.
– Mas... Mas definitivo não é só com a... com a morte?
– Claro que não, Rondelli. Tem outras formas, agora mesmo uma delas está
em curso, você só tem que esperar um pouquinho.
– Mas, enquanto isso, doutor, as nossas moças correm o maior perigo.
– Não correm, não, italiano. Vai, senta aí, deixa eu te contar tudo o
que a gente está preparando pro Silva. E pra ratalhada dele.
E, durante mais de meia hora, Celso contou para seu amigo tudo o que
estava sendo preparado como estratégia de revide e de segurança. Isso
conseguiu, por fim, deixar Rondelli, \ mais tranquilo. Tanto que, quando Celso
foi embora, ele nem pediu que a arma lhe fosse devolvida. Melhor assim. De
repente voltava seu furor homicida e ele acabava indo fazer justiça com as próprias
mãos.
E também tinha outro motivo para se sentir mais tranquilo. Não tinha
coragem de entrar nesse assunto com o amigo patrão, mas ele, Rondelli, sabia,
com toda certeza, que Celso Teles amava sua menina Larissa com devoção. Se
tivesse que ser preso ou viesse a faltar, não só a espanholita filha ia cuidar
do seu anjinho loiro, mas o titã Celso
Teles estaria ali o tempo todo, pronto para dar sua vida por ela, se preciso
fosse.
Celso saiu da firma levando o revólver de Rondelli num dos bolsos da jaqueta
que usava, as balas no bolso da calça. Que italiano batuta aquele! Que homem
notável. Que pena que lhe faltasse coragem para confessar a ele seu amor por
Larissa. Será que ele iria compreendê-lo? Será que iria aceitar seu amor por
ela? Um dia teria que ter coragem de entrar nesse assunto, mas não agora,
quando estava tocando uma verdadeira operação de guerra.
No estacionamento frontal, quando ia entrar no seu Corolla, viu Leon
Schlikmann que vinha correndo em sua direção, deixando o Porsche preto atravessado
no caminho, motor ligado, porta aberta:
– Celso, Celso! Bom dia, bom dia. Puta, que merda, cara! Eu estava
viajando, cheguei agora há pouco e fiquei sabendo de todo o babado lá em casa.
Corri pra cá, pra ver como está a coitada da Larissa, ela está muito machucada?
E aquele velho maldito, aquele filho da puta do pai dela, e verdade que não
está mais em cana?
– Bom dia, Leon. Não, a Larissa já está bem, veio o doutor Waissmann
aqui, o farmacêutico, com a neta dele, que é estudante de farmácia. E trataram
do ferimento da Larissa, puseram uma bandagem com um remédio antigo muito bom,
ela está praticamente normal, trabalhando, rindo, sem problemas aí. Já o
maldito agressor, esse, é verdade, já conseguiu um habeas corpus e está em liberdade.
– Barra, hein! Puxa, posso ver a Larissa? Ela deve estar pensando que eu
sou um filha da mãe também, um merda dum amigo que some quando a amiga mais
precisa.
– Claro, claro, vá correndo, Leon. Assim que você tirar seu carro do
caminho, é claro. Ela vai ficar super feliz de ver você e de saber que você não
apareceu antes porque não estava em Amarante. Vá lá, ela está com a Gládis,
procure no Treinamento.
Leon ia saindo apressado, mas voltou e perguntou, meio sem graça:
– Ela está só com a Gládis? Com mais... ninguém?
– Com mais quem, especificamente?
– Não, só curiosidade... ela poderia estar também com... com a Jeniffer,
por exemplo... Ou com outra, quem sabe.
Celso, que estava sentindo a mordida de uma persistente ponta de ciúme,
sorriu aliviado:
– Leon, você encontra a Jeniffer agora na sala da Carmen, pode bater lá
que elas recebem você muito bem. Você é amigo da Larissa, a fofinha delas,
então você tem direito a tratamento vip,
sem precisar mostrar interesse em carro algum.
– Tá, obrigado cara, de coração! Tô indo. Quando a poeira baixar desse
barato todo, eu volto pra gente levar aquele lero do futebol em frente.
E saiu na carreira, para retirar seu carro de onde estava e estacioná-lo
corretamente em frente ao jardim da entrada. Celso ficou observando pelo espelho
do Corolla e falou para si mesmo: Taí, eu
gosto desse molecão! E arrancou com o carro.
A chegada inesperada de Leon Schlikmann encheu Larissa de alegria. Com
um gritinho, ela deu um salto da cadeira e correu para encontrá-lo na entrada
do Treinamento. Cumprimentaram-se com um abraço e um selinho na boca.
– Leonzinho! Que bom que você apareceu enfim. Abandonou sua amiga na
pior hora, não foi, seu ingrato?
– Não gata, não abandonei, me desculpa. Eu estava em Curitiba, fui ver
uns baratos que o velho me pediu para negociar para ele. Cheguei agorinha mesmo
em casa, aí o pessoal de lá me contou toda a bagunça que o seu velho armou. Que
barra, hein! E me disseram que você saiu de casa. Fiquei de bunda no chão,
gata! Isso é verdade?
– Graças a Deus é verdade. Estou morando com as meninas todas, tenho o
meu apartamento lá na Sonia Assad agora.
– Putz, que irado, gata! Muita
coragem a sua, gostei. Eu é que devia criar vergonha na cara e fazer o mesmo,
deixar de ter que aturar aquele coroa azedo vomitando bílis o dia inteiro em
cima de todo mundo lá em casa. Mas, pra isso, precisava trabalhar, como você,
que arranjou este trampo legal. Quem sabe eu não me motivo vendo a seu exemplo
e acabo tomando vergonha na cara. Sabe como é, trabalhar nunca foi a minha
praia...
Nesse momento Gládis entrou na conversa, com um sorriso maroto nos
lábios:
– Bom dia, Leon Schlikmann. Olhe ali, aquela é a porta da sala da
Carmen.
– Bom dia, Gládis. Puxa, fiquei sabendo da surra que você deu no coroa,
você é foda, guria! Olha, eu quero ser sempre seu amigo, viu? Pelo amor de
Deus, não esqueça. Mas, se um dia você quiser me sentar uma porrada, me avisa um
segundo antes, é todo o tempo que eu preciso pra pular no Porsche e fugir de Amarante
pra sempre.
– Seu bobo – riu Larissa – Mas você quer falar com a Carmen?
– Não, Fofinha, não é com a Carmen que ele quer falar. É com uma rainha.
Leon Schlikmann enrubesceu. Gládis De Rios não deixou a deixa passar, rindo:
– Vocês, a alemoada como o Leon, a italianada loirinha como a Larissa,
são uma delícia pra se entregarem pra gente. Se entregam no maior estilo pimentão
vermelho.
Larissa também riu. Da cara ainda mais vermelha de Leon, da verdade que
Gládis tinha falado, da sua própria cara, que, coerentemente, ficou vermelha
também.
Gládis prosseguiu, divertida:
– Avante, rei Leon. Pode bater na porta da gerência, ali hoje é
território de Sabá, uma rainha reina ali absoluta.
Leon, descoberto, fez um sinal de tchauzinho com a mão para as duas e
foi, de fato, bater na porta da gerência. Quem abriu a porta abriu também um
sorriso de surpresa, que, para Leon, pareceu iluminar toda a sala, toda a
Amarante, todo o seu dia. Dentes alvos, perfeitos, alinhados dentro dos lábios
mais carnudos e desejáveis do mundo, lábios que deixaram sair uma voz quente de
locutora:
– Bom dia, Leon Schlikmann. A que devemos a honra de sua visita? Entre,
por favor.
– Não, não preciso entrar, eu só vim fazer uma pergunta. Bom dia,
Carmen.
– Bom dia, Leon. Faça a pergunta, então.
– Bom, ainda é a mesma pergunta que eu fiz quando entrevistei a capitã
da seleção brasileira, lá no campo de futebol, no dia em que o time do Celso
deu aquele couro no meu.
– E a pergunta é?... – O sorriso da rainha de Sabá ficou mais luminoso
ainda.
– A pergunta é: Você esqueceu que eu sou o primeiro da fila de
pretendentes à sua mão em casamento?
Jeniffer riu muito, sacudindo a cabeça para os lados e pensando: Que galanteador de marca maior, deve comer
todas com esse papo. Mas é um carinha lindo, lindo pra um branco, parece um
ator de cinema americano. Ou alemão.
E respondeu:
– Esquecer, não esqueci, não. Mas levar a sério, claro que não levei.
– Está vendo, Carmen? Ela ainda tem coragem de confessar! Pois ela está
errada, o meu pedido é pra ser levado a sério, sim.
– E o pedido, concretamente é... – falou Carmen.
– Jeniffer, você aceita casar com o Leon Schlikmann? O carinha é meio
vagal, é meio galinha, mas tem patrimônio e se você for compreensiva e ajudar,
ele está pronto para mudar o que não for legal. Você pode ser a motivação que
está faltando pro pobre do carinha virar gente. Ah, ia esquecendo: ele joga um
bolão no futebol, pergunte pro Celso.
Jeniffer agora não ria mais, sua expressão era de surpresa e
incredulidade, mas era séria. Pela primeira vez ela olhou fundo nos olhos de
Leon Schlikmann e ficou abalada com o que viu: ela viu sinceridade! E ficou perplexa.
– Você tem olhos lindos, menino. Mas precisa urgente de óculos. Você não
está vendo que a mulher à sua frente é uma negra?
– Você está errada de novo. Não só eu não preciso de óculos, como vejo
perfeitamente que a negra à minha frente é a mulher mais fascinante que eu já
vi na vida.
– Você não é míope. É louco!...
– Por você. Desde o primeiro dia em que vi você dando aquele couro no
meu velho, aquele alemão arrogante que destratou você. Desde então você não me
saiu mais da cabeça.
– Mas você é todo loirinho, todo bonitinho, todo alemãozinho... Como
quer que eu acredite nisso?
– Me dê uma chance de provar. Uma só e eu não deixo escapar, nunca.
Para maior perplexidade de Jeniffer, nesse exato momento Gládis de Rios
gritou lá da mesa onde estava com Larissa, a quase seis metros de distância:
– Ele é sincero, Sabá. É verdade.
Carmen de Rios, que até então assistia a tudo divertida, deu um salto da
cadeira e, dirigindo-se à porta, alteou a voz também:
– Hijita! Você é avalista
dele, é?
– Assino em baixo, mamita. Em
três vias. Agora vê se dá um jeito nesses dois e dispensa a Jeniffer para
almoçar mais cedo. Leon: Churrascaria do Etelvino. A gente já viu o que você sabe
aprontar numa churrascaria.
Desta vez Leon ficou sem jeito, olhou com receio para Jeniffer, parece
que ela estava na Churrascaria do Alemão, quando ele deu aqueles amassos na
morena. Mesmo assim aproveitou a deixa:
– Você me concede a honra desta dança, princesa? Churrascaria Estrela
dos Pampas?
Outra surpresa: Agora era Larissa, que tinha levantado e estava parada
perto deles:
– Vai logo, Jeniffer! O Leonzinho é um cara superlegal, vai conhecer
ele, dá uma chance. Afinal, é só um almoço, só um papo, não é nenhum casamento.
– Ainda! Por que, se depender de mim... Você aceita almoçar comigo,
Jeniffer?
A moça pensou mais um pouco. Estava tão bem assim, porque ia procurar
problemas, sarna pra se coçar? Num lugar pequeno como aquele, de colonização
alemã e italiana, ia sofrer muito mais discriminação e racismo quando a vissem
ao lado daquele alemão lindo, superapetitoso. Não valia a pena. Mesmo assim,
cedeu ante a pressão de Gládis e Larissa:
– Está bem. A gente vai almoçar e trocar uma ideia, OK?
– Fechado. Vamos?
– Vamos. Com licença, Carmen, não demoro.
Paula, que tinha chegado bem no fim e tinha ouvido o desenlace final,
falou do seu jeito típico:
– Demora, sim, sua tonta! A tarde e a noite toda. A madrugada também, se
precisar. – E soltou sua célebre gargalhada cantada.
Quando os dois saíram, todas cercaram Gládis De Rios:
– Agora fale claro, sua bruxinha. Isso aí tem alguma chance de prosperar?
– quis saber Paula.
– Me
dejas loca, hijita! Explica-te.
– É verdade, Gládis? Por favor, fala que você sentiu que pode dar certo,
vai. Ai, fala, fala!
– Calma, Fofinha. Calma,
gente. O que eu disse é que o rapaz está sendo sincero. Que ele está a fim da
Jeniffer de verdade. Se depender dele, eu sei que pode dar alguma coisa
concreta. Mas depende dela, também. E ela vai ter todas as barreiras e receios
do mundo, não é?
– É mesmo, hijita. É uma coisa
muito difícil para ela, sendo negra, se relacionar com o um branco alemão de
família metida a besta, como a dele.
– Também isso, mamita. Mas não é só isso. Vocês têm que ver que o Leon
babou pela Jenny desde o primeiro instante, mas o mesmo não aconteceu com ela. É
aí que eu vejo a primeira dificuldade. Se ele não conseguir virar o jogo hoje,
agora, naquela churrascaria, então ele já dançou.
– Cacete! Você tem razão, menina.
– Mas ele vai conseguir, Paula. O Leonzinho tem um mel que derrete tudo
quanto é mulher, uma lábia...
– Que você conheceu muito bem, não é, Fofinha. Desfrutou muito daquele fritz gostosinho na cama, hein!
Larissa avermelhou imediatamente:
– Ai, Paula! A gente namorou muitas vezes, não é! Chegou a ser noivos.
– E agora você não se importa que ele esteja vidrado na Jeniffer?
Porque, naquela outra churrascaria, a gente viu você sair chorando, porque ele
estava atracado aos beijos e abraços com aquela morena bonitinha.
– Aquilo foi uma bobagem minha Paula, acho que foi uma coisa de sentir
saudades, porque eu sabia que a nossa brincadeira gostosa, de tantos e tantos
anos, desde que eu era bem criança, tinha acabado para sempre. Quando cheguei
em casa, eu me toquei disso, não precisava ter dado aquele vexame, ainda mais
na frente do chefe. Aí eu fiquei chorando de medo que ele me mandasse embora,
por causa do fiasco. Mas eu sou esse desastre ambulante, choro demais por
qualquer coisinha, vocês sabem. É melhor vocês aprenderem a não me levar a
sério nessas horas, porque eu...
– De jeito nenhum, Fofinha!
Nada disso. A gente vai levar você a sério sempre. E eu adoro ver que você é a
única pessoa que eu conheço que chora de alegria muito mais do que de tristeza.
– Ai, Gládis, você é tão amiga, tão boa comigo, tem tanta paciência...
– Todas nós adoramos você, Fofinha
– atalhou Paula – Você é a nossa irmãzinha mais nova, a nossa mascotinha do
coração. E falo também por Jeniffer, que, se não for muito burra, agora deve
estará atracada com aquele alemão, para escândalo, ou melhor, para inveja e
tesão dos garçons do Etelvino.
– Ah, não, Paula. Essa eu duvido. E não é que ela seja burra. É que ela
é negra, meu bem, e isso faz toda a diferença, você sabe.
– Ora, Carmen, ela não foi pro cartório, assinar os papéis de casamento!
Foi só comer uma carninha. E, se não for mesmo burra, aproveita pra comer uma
outra carninha, mais durinha e gostosinha, depois. E, pra essa, ela nem precisa
usar aqueles dentes branquinhos, de propaganda de pasta dental.
– Paula, Paula, você não tem jeito mesmo, sua moleca! Eu estou falando
sério.
– Ué, eu também. Se o convite tivesse sido para mim, eu exigia uma
inversão: primeiro o motel, depois a churrascaria, que a minha fome maior ia
ser bem outra. Aliás, essa tal de inversão ia ser uma delícia também.
Desta vez a gargalhada foi geral. Larissa foi a primeira a falar, quando
recuperou o fôlego:
– Pois eu torço pelo Leonzinho. Ele é um menino maravilhoso, tem uma
paciência de Jó, um coração deste tamanho. A mulher que puder ficar com ele,
vai ser feliz, tenho certeza. Mas esse ficar com ele é fazer ele se entregar de
coração. Em todos estes anos de convívio, seja comigo, seja com dezenas de
outras meninas, eu nunca vi isso acontecer. Sabem, é a primeira vez que eu vejo
o Leon tão derretido assim por causa de uma mulher.
– Verdade, Fofinha? Puxa,
então a coisa é séria.
– De parte dele eu sei que é, Carmen. Eu posso jurar, conheço o
Leonzinho bem demais, minha vida inteira. Isso nunca, nunca aconteceu com ele!
Eu sei que é difícil, que a Jeniffer, como negra, deve ficar toda na defensiva,
deve considerar também que ele é bonito demais e tem a maior fama de galinha.
Graças a Deus, para mim, com toda a justiça.
Gládis complementou:
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