terça-feira, 29 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 37   
MILTON MACIEL  

37 – DEFESA PESSOAL FEMININA 
Fim do cap. 36: "– Mas eu repito: só depende dela. Se ela quiser e peitar o desafio, então a coisa pode dar certo. Claro, não vai ser fácil para nenhum dos dois, têm uma cidade inteira para enfrentar e domar. Mas não é impossível..."

– Ai, Deus te ouça, Gládis. Acho que, se o Leon se entregar a um amor de verdade, então ele vai crescer muito. Veja, tanto ele como eu mesma, da maneira que fomos criados, não tivemos que enfrentar a vida, o mundo do lado de fora. Por isso eu sou – e ele também é – infantil em muitas coisas, reconheço. Mas a Maria Amália vai me curar, tenho certeza. Disso e das choradeiras infantis.

– Não vai! Não vai, Fofinha! Se ela cortar suas choradinhas, eu já falei que mando o sapatão de flamenco na cabeça dela.

– Mas, Gládis, então eu não vou crescer nunca?

– Vai, sim. Vai. Fofinha, fique tranquila. Mas não pode deixar de ser você mesma. Assim, exatamente assim como você é, exatamente assim como a gente ama você.

Naturalmente, o que Gládis queria, dizendo de propósito essas últimas palavras, aconteceu. Imediatamente Larissa, por mais que se esforçasse para evitar, a ponto de ficar quase sem fôlego, umedeceu copiosamente os olhos azuis, daquela cor de água-marinha que ninguém mais podia ter. Gládis comemorou:

– Está vendo só, mamita, que coisa mais querida? Tem outra igual no mundo?

– Não tem, não, hijita. Essa aí é única.

– Uma puta duma fofura, isso é o que ela é. E aí vem uma psicóloga e corta esse barato? Gente eu acho que é melhor suspender a Maria Amália pra Fofinha.

– Não, Paula, pelo amor de Deus, NÃO!!! Eu preciso muito de análise, sempre quis fazer, por favor, não! Não!

– Tá bom, menina, tá bom, não precisa entrar em pânico! Então você vai buscar a mulher na segunda com a Jeniffer, pronto. Mas se depois você parar com as suas choradinhas, eu apoio a Gládis quando mandar o sapatão nela. E eu sou capaz de ajudar, calço uma bota cano-alto, dessas de gaúcho de CTG, e meto-lhe nos cornos, com espora e tudo.

– Gente, que horror...

– Fique tranquila, minha filha. Tudo vai dar certo para você, a Maria Amália é maravilhosa. E eu espero, do fundo do coração, que tudo dê certo para a Jeniffer, torço demais por essa menina, não foi à toa que eu me empenhei tanto em trazê-la para o nosso grupo, lá na Teles de Ribeirão. Sei toda a fibra que ela tem, toda a luta que ela empreende quase todo dia contra o racismo. E. somado a isso, contra o machismo, que é bem pior quando se é negra e negra linda demais, como ela. E, para maior dos pecados, com aquele bundão de cinema, aquelas coxas e pernas lustrosas. Os caras ficam enlouquecidos e falam besteira pra ela a toda hora. Coisas que ofendem, que rebaixam...

– Isso mesmo, mamita. Eu ouvi essas nojeiras duas vezes. Eu não estava junto com ela, mas estava perto o suficiente para ouvir. Na primeira, dois caras chegaram onde ela estava e um deles disse algo assim,bem alto pra todo mundo ouvir:

– Essa é a empregadosa que eu pedi a Deus! Botava a esfregar o chão, pelada, com esse bundão pra cima e depois... crau!

O outro aproveitou também:

– Pois eu me esbaldava com esse bocão no boquete todo santo dia.

– E ela? – perguntou Larissa, horrorizada.

– Ficou parada, não disse nada, olhou pro chão com uma carinha de desespero, de cansada, os olhos cheios de lágrimas.

– E ela não ficou com raiva?

– Não precisou, Paula.

– Como não precisou?

– Porque eu fiquei! E aí parti pra cima dos dois, que não esperavam por uma louca saltando do nada em cima deles. Dei uma voadora no primeiro, joguei o cara no chão esparramado, gemendo. E aí peguei o outro de jeito, meti o tênis na boca dele, que eu queria era quebrar todos os dentes do desgraçado do tal boquete. Uma pena que eu não estivesse nem de sapato de salto. O cara teve muita sorte, mas, mesmo assim, acho que o dentista dele teve também.
  
– Mas e o primeiro cara, não levantou e reagiu?

– Levantou porque eu esperei que ele levantasse. E aí, é claro, como ele ia dar o tal do crau na Jenny por trás, eu parti pra cima do saco dele. Moí, menina, com que gosto! E fiz ele ficar de joelhos, meio que vomitando, suspendi o filho da puta pelo cinto e passei a chutar o traseiro dele com toda a força. Cada chute que eu dava, eu gritava: Crau! Crau! Crau! E aí, só aí, notei que o povo todo aplaudia e gritava crau junto comigo. Foi lindo!

– Menina, mas isso foi em lugar tão público assim?

– No Shopping Ribeirão, minha filha, piso térreo, o que você acha?

– Nossa, Carmen! Que coragem da Gládis...

– Minha hijita é doida da cabeça, Fofinha. E quer ver essa doidice aparecer, é só agredirem uma mulher e ela ficar sabendo.

– Sim, eu vi, foi isso mesmo o que aconteceu no meu caso...

– Pois é, então você vê que ela não fez isso só no seu caso. Eu perdi a conta das encrencas em que ela se meteu por coisas assim. E isso muito antes de ela saber lutar direito. Ela sempre praticou defesa pessoal, desde os onze anos. Então já podia se defender. Mas foi só depois que aprendeu as técnicas com o Celso que ela aprendeu a atacar também. E aí não parou mais.

– Mas você mencionou duas ocasiões em que você estava por perto da Jeniffer. Qual foi a outra?

– Na outra vez, Paula, o agressor foi um homem de cor, um negro alto e forte. Na calçada, em frente a uma lanchonete, o cara deve ter tarado com o bundão da Jenny, chegou por trás dela, deu um encoxada e pegou os dois peitos dela com as mãos.

– E aí, naturalmente, você arrancou os dois braços do cara pela boca, não foi? 

– Eu? Não fiz absolutamente nada!  

– Ué, mas por que isso?

– Porque desta vez a Jenny é que fez. Refeita do susto, ela fez o que é padrão no nosso treinamento,  nesses casos de ataque sexual por trás. A primeira coisa é dar um pisão com toda força no pé do cara. A Jenny estava de salto alto e bateu com toda a força, multiplicada por toda a raiva, a indignação, na altura dos dedos do pé do idiota. Aí a sequência e muito rápida. O cara solta a gente e começa a berrar feito um alucinado, a dor é de deixar qualquer um louco, ele não consegue fazer mais nada, não consegue reagir, não consegue agredir. A tendência é tentar se curvar, pegar o pé com a mão, tentar entender o que está acontecendo, é uma reação automática. Então a gente ataca usando o cotovelo, só o cotovelo.

– E faz o que?

– Bem, Fofinha, o primeiro golpe é com a ponta do cotovelo no plexo solar, tira a respiração do cara na mesma hora, ele fica roxo, desesperado de falta de ar. Aí a gente aproveita e dá o segundo, com o cotovelo também, bem no osso do nariz, pra quebrar mesmo. E aí é uma meleira nojenta, o cara começa a botar sangue pelo nariz que parece uma cachoeira. E claro, está completamente vencido. Não consegue fazer mais nada além de gritar de dor, pode ter um revólver em cada bolso que não vai poder usar. O contra-ataque da gente é fulminante. Lona! E olhe que a gente ficou o tempo inteiro na frente do cara, não saiu da posição em que ele nos atacou.

– Nossa, Gládis, que coisa impressionante. E dizer que tudo começa com o pé...

– Isso mesmo, Fofinha. Com certeza você já deu uma boa topada numa pedra com o pé, não deu? Ou já passou pela desgraça de alguma coisa pesada cair sobre o seu pé. Lembra como foi a dor?

– A topada. É horrível! Perdi a conta, quando era moleca eu vivia me arrebentando assim, chegava a sangrar  o tênis, minha mãe ficava uma fera, me socava, porque era tênis de grife.

– Jumenta!

– Não ofenda uma jeguinha inocente, Paula! Pois então vocês imaginem algo muito, muito pior que uma topada que arrasa dedão. Num pisão com toda a força – e a força vai ser a da coxa, de novo – se o sapato da gente é sem salto, amassa todos os dedos do pé do agressor. As unhas se soltam nas pontas, o sangramento é enorme. Mas o principal, a dor, é de deixar qualquer um doido, totalmente fora de controle. E, se o sapato que estamos usando é de salto alto e fino, então o estrago é menor, mas o salto fura o sapato, por mais que seja de couro grosso, o que é muito raro hoje em dia. E fura um ou dois dedos do sujeito. Fratura exposta, hemorragia. Olha, é bem feio de se ver.

– Mas mais do que justo pro canalha – completou Carmen.

– Puxa, que coisa incrível, gente. Está aí uma coisa que eu gostaria de aprender! É uma defesa superfácil e não precisa fazer força, nem se atracar com o inimigo.

– Oba, parabéns, Fofinha, é pra já! Pessoal, estou levando a Fofinha comigo, está na hora do almoço, a gente vai pra casa. É hoje que ela começa a aprender. Na volta a gente passa em algum lugar e engole um sanduíche qualquer em cinco minutos. Vamos lá, aprendiz, você tem duas horas para a sua primeira lição, pode ser, mamita?

– Claro, minhas filhas, vocês podem voltar quando der, não se apressem. Se o Celso souber por que razão vocês não estão no serviço quando ele chegar de tarde, vai dar pulos de alegria.

Foi no seu próprio apartamento que Larissa recebeu sua primeira aula de autodefesa feminina. Acreditando que se deve malhar o ferro quando ele está quente, Gládis aproveitou o entusiasmo da amiga, ao ouvir o relato da defesa de Jenny, e a levou imediatamente para lá.

Ficaram duas horas trabalhando sem parar. De treinamento de defesa, a rigor, somente a meia hora final. Todo o resto do tempo Gládis levou para conseguir explicar os fundamentos todos para Larissa. E isso era equivalente a dar a primeira aula de feminismo para aquela garota tão inocente e inexperiente, blindada que fora das coisas do mundo por uma educação em que a estúpida da sua mãe a fizera escrava da beleza absurda com que ela havia nascido.

Da condição feminina, Larissa só havia conhecido esse lado, o da beleza, porém distorcido e exacerbado além de toda normalidade possível. Era um verdadeiro paradoxo que não tivesse se tornado uma miserável de uma narcisista. Mas, para Gládis, era fácil de entender por que não. Uma, que sua menina era uma alma nobre demais para ser narcisista. Outra, que ela crescera detestando sua beleza excessiva, à qual atribuía a causa de todos os seus sofrimentos. O resultado havia sido aquela criaturinha totalmente incomum, que permanecera criança em muitos aspectos da vida, preservando assim aquela pureza infantil, que encantava todas as pessoas, as quais, de forma quase que automática, acabavam por chamá-la de anjo. Era bonita demais, mas não tinha sex appeal. Era sensual, mas não era sexual.

Ela, Gládis, e também Jeniffer, eram verdadeiros poços de sex appeal, eram sensuais e eram sexuais ao extremo. Já Paula e Mamita ficavam num meio termo. Mas a Fofinha era diferente, “Não atrai os homens pelos bagos”, como lhe segredara Paula, numa tarde em que filosofavam sobre a loirinha:

– Ela tem um corpo tão perfeito quanto o seu, Gládis, praticamente as mesmas medidas. Mas não provoca nos homens o impacto que você provoca. O que é que atrai os caras na Larissa, me diga?

– Ah, o rosto, claro. É o rosto mais perfeito que a gente já viu, não é?

– Certo, é isso mesmo, Gládis. E como é o rosto dela, além de ser, quem sabe, o mais bonito do mundo?

– Ah, já percebo onde você quer chegar, Paula. Sim tem razão: o rosto dela é infantil, é angelical.

– Pois é isso, menina. A gente olha praquela carinha e vê o anjo que ela é de verdade, não é só na aparência. E isso provoca na gente um puta acesso de...

– Ternura!

– É isso, exatamente isso. Então a gente baba por ela. Quer a gente seja mulher, quer seja homem. Só que a mulher para sentir isso por ela, tem que se livrar do sentimento de inveja da beleza dela. E a maioria não consegue, é instintivo. Já o homem olha para o anjo e não sente tesão. Vai ver que é verdade que anjo não tem sexo. O que deve ser um pé no saco. Não do anjo, que não tem saco nem periquita. Eu é que não quero ser anjo jamais, em toda a eternidade.

– É, Paula, você está muito certa nessa sua análise. A beleza da Fofinha só deve ser desconcertante para caras muito pedófilos.

– Falou e disse, irmãzinha! Só pros filhos da puta dos papa-anjos. Os outros homens vão preferir cantar ou estuprar você ou a Jeniffer em primeiro lugar. Depois pegam sua mamita, com aquele bocão maravilhoso dela e a mim, que não sou de se jogar fora. Por último eles vão tomar cerveja e ficar olhando fascinados pra carinha da Fofa, sonhando casar com ela.

– Ha, ha, ha! Paula, você ás vezes me surpreende. Olha, muitas vezes você não fica devendo nada à Maria Amália. Sua análise, agora, está perfeita.

– Claro que está. Eles comem a gente e casam com a Larissa. E depois corneiam a Larissa com a gente, todos os dias, se a gente deixar. Se não deixar, eles corneiam a Larissa com a gente do mesmo jeito, só que na base da punheta mesmo.

– Ha, ha, ha, menina. Mas você é demais! A boquinha suja mais filosófica do planeta. Te adoro, Paulinha.

– Eu aposto que nem você, nem a Jenny pensaram nisto que eu vou falar, mas veja bem: você duas devem ter arrancado milhões de litros de leite dos caras, quando eles praticam auto-ordenha no banheiro deles, pensando em vocês.

Gládis teve um ataque de riso, mal conseguindo dizer:

– Menos, Paula, menos...

– E não é só isso. Muito filho da puta desses deve ter transado com a mulher ou a namorada dele, imaginando que estava enrabando você ou a Jenny. Vai dizer que não?

– Bom aí já é com você e sua imaginação fértil, Paulinha. Mas tem homem que é bem capaz, sim... Mas tem mulher também...

– Claro, muitas vezes para ficar de perna aberta, enquanto aquele bolha ruim de cama pula e arqueja entre elas, só mesmo pensando no Brad Pitt.

Lembrando de toda essa conversa, Gládis via agora que sua Fofinha não tinha conhecido o machismo de forma tão exacerbada como a imensa maioria das mulheres conhecem, desde menininhas.

A beleza extrema a blindara com uma espécie de proteção. Ela era um bibelô para ser admirado. E não tinha apelo sexual, tanto que nunca tivera qualquer experiência de tentativa de abuso ou assédio sexual na vida. A única exceção, contudo, tivera um peso esmagador: os estupros semanais praticados pelo nojento Schlikmann, por força de chantagem, durante um ano.

Também a sua experiência de iniciação sexual tinha sido a melhor possível,  pois Leon Schlikmann lhe servira de companheirinho de jogos infantis primeiro e, depois, de parceirinho sexual de uma forma natural, espontânea, sem grilos.

CONTINUA

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