MILTON MACIEL
33 – UM TRAZEIRO GORDO EM PERIGO !
Fim do cap. 32: "Ia se demorar uma semana ou mais, ligava no
outro dia dando notícias. Encheu duas malas com roupas e calçados, pegou alguns
objetos, levou dois cadernos perigosos para destruir no caminho."
Eram três da tarde quando, estômago roncando, Otílio
Amaral caiu na estrada em direção a Foz do Iguaçu. Ia feliz da vida. Caramba,
que coisa mais maravilhosa o que tinha lhe acontecido! Vida nova, mulheres
novas, capital para investir em contrabando, dinheiro sobrando para não
precisar trabalhar por um bom tempo. Eh, vidão! Bendito promotor filho da puta!
Bendito Corregedor filho da puta! Bendito Valdemar Silva e seus últimos
regalos! Que se fodesse agora o filho duma égua, pitoco unha-de-fome
desgraçado, anos e anos humilhando, mijando em cima do delegado de Amarante!
Que gramasse numa cela agora, que os outros presos o enrabassem todos os dias,
até ficar com o botão que nem uma rosa!
Nesse exato momento Valdemar Silva,
efetivamente, amargava uma cela comum, compartilhada com três outros presos.
Também seu estômago roncava de fome, pois ele tinha se recusado terminantemente
a comer a marmita de arroz tisnado com traços feijão aguado e algo com aspecto
e cor suspeitíssimos, que o carcereiro dizia ser carne. Estava furioso, sempre
ficava furioso quando estava com fome. Ainda mais hoje, que encomendara a
Amaral aquela lasanha especial aos quatro queijos, que a velha dele fazia e que
era de se comer ajoelhado. Mas que é de Otílio Amaral agora? Só mais um rato
abandonando o navio, mais um a desertar no momento mais crucial...
Conseguiu comer algo mais à tarde, quando seus
advogados, o velho Lobo do Lar e o famoso – e caríssimo – Dr. Heráclito, vieram
com a notícia sobre o habeas corpus.
Então Aristides Lobo saiu a pretexto de buscar algo que havia esquecido e
trouxe um enorme hambúrguer e uma cerveja gelada long neck, que Silva devorou numa fração de tempo, com modos de
orangotango faminto.
A notícia deixou-o muito contrariado. Aquele
filho da puta do juiz Trindade tinha concordado em conceder o habeas corpus. Mas disse que não o
despacharia antes da segunda-feira seguinte. Isso para que as pessoas da cidade
não ficassem dizendo que ele atendia na mesma hora a exigência do homem mais
rico de Amarante. Não ficava bem para ele. Silva que tivesse paciência, seriam
só mais quatro dias na delegacia, pelo que soube pelos advogados, ele estava
muito bem acomodado, na sala maior da casa, com todas as mordomias possíveis,
concedidas pelo magnânimo Otílio Amaral.
Só que isso era a realidade de ontem! Nem ele,
nem os advogados sabiam da súbita reversão de sorte do infortunado Amaral. E
muito menos podiam imaginar que Valdemar Silva afundara em desgraça ainda
maior: tentativa de suborno de autoridade e – só um consumado débil mental poderia ter ousado fazer isso! –
tentativa de agressão contra essa mesma autoridade, em plena delegacia de
polícia.
Agora bastaria o corregedor apresentar denúncia
e adeus habeas corpus! Baixinho burro
aquele, arrogância e pavio curto, mais cedo ou mais tarde, rompem o saco, botam
o resto a perder!
– Onde está o homem agora? – perguntou aflito
Dr. Heráclito – Precisava encontrar o Corregedor urgentemente, negociar com ele
para que ele não entrasse com queixa crime de agressão contra seu cliente. O carcereiro respondeu:
– Pelo que ouvi o homem conversar com os seus
ajudantes, parece que ele ia almoçar com o prefeito e mais outros caras
políticos.
– Caralho! – bradou Aristides Lobo – essa não!
A esta hora o desgraçado deve estar tramando com o pessoal do partido do
governo o nome do novo delegado para Amarante. Fudeu geral!
– Olhe, caro colega, a julgar pelo adiantado da
hora, é bem possível que o homem até já tenha ido embora da cidade, que esteja
voltando para Florianópolis.
O experiente Dr. Heráclito estava certo. O
corregedor já estava na estrada há um bom tempo. E o novo delegado de Amarante
já estava indicado. Eminência parda do governo, o Dr. Luzardo Assunção, tio do
prefeito, médico dono da Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, o hospital
mais importante da cidade, havia conseguido a aprovação, pelo partido, do nome
de seu genro, o Dr. Norberto Oliveira, que estava destacado há dois anos para a
delegacia de Capinzal. O Dr. Luzardo viu naquela súbita oportunidade a grande
chance de trazer sua filha mais querida de volta para Amarante. Apertou o
sobrinho, pressionou mais alguns cupinchas dele e obteve a unanimidade.
O doutor
corregedor viajava para a capital com o nome certo a ser aprovado pelo
Secretário de Segurança, dentro de sua quota pessoal de nomeações. O Dr.
Luzardo estava autorizado, desde já, a telefonar para o genro e a filha e
dar-lhes a boa nova. A nomeação era líquida e certa e ocorreria no máximo no
dia seguinte. Eles deviam, portanto, preparar a mudança imediatamente, pois a
posição em Amarante não poderia ficar em aberto por muito tempo, justamente por
causa do preso importante que tinham lá na gaiola. Depois da tentativa de
agressão quase sofrida, o doutor Corregedor tinha jurado Valdemar Silva: ia
fazer da vida dele um inferno!
Tanto que a primeira providência que tomara foi
registrar um B.O. de tentativa de agressão e prisão em flagrante. E anexara ao
processo contra Silva os documentos que provavam sua tentativa de subornar uma
autoridade. E, para maior agravante, mandara que uma cópia completa de todo o
material da Corregedoria contra o delegado Amaral e as duas novas queixas-crime
contra Valdemar Silva chegassem ainda naquela tarde às mãos do juiz de
Amarante, o Dr. Trindade. Cheque mate!
Dr. Heráclito, raposa velha de ofício,
desconfiou de algo assim e pediu que Aristides Lobo telefonasse para o juiz,
com quem tinha bom relacionamento. A bomba estourou no colo de ambos: Adeus habeas corpus na segunda-feira! Agora
teriam que aguardar o desdobramento do novo inquérito, complementar ao de
tentativa de agressão e tentativa de assassinato contra uma jovem, frágil e
indefesa (!) mulher. O homem mais rico de Amarante estava no fundo do poço.
Só que não estava sozinho; ali, no fundo do
poço, ele tinha mais três companheiros. Um deles certamente por poucas horas,
Era Antenor Pinga de Mel que, tendo vendido seu fusca à vista para Fúlvio
Rondelli por cinco mil reais, saiu para bebemorar e fechou o cabaré de Marlete,
onde entrou já altíssimo de pinga sem mel, brandindo um magote de notas de cem
reais na mão, gritando;
– Fecha essa merda! Hoje não tem puta pobre! – E arrendou todas as sete meninas com
exclusividade.
Só que isso deu a maior confusão, porque os
homens que já estavam lá não aceitaram a reserva de mercado pacificamente. O
tempo fechou e o pau degenerou: de um lado os dois clientes ofendidos, do outro
Pinga de Mel, o segurança da boate e a própria Marlete. Num dado momento, o
feliz usufrutuário da exclusividade dos grelos quebrou uma garrafa na cabeça de
um dos maus perdedores. O homem perdeu também os sentidos, o alto do coco numa
sangueira danada; o outro homem fugiu. A polícia chegou em seguida e Pinga de
Mel foi encanado.
Ainda naquela tarde, horas depois da refrega,
ele estava muito alegre e seu bafo garantia a plena dedetização da cela. Mas
era só um arruaceiro e logo seria solto. O que, de fato, aconteceu menos de duas horas
depois.
Os outros dois homens, porém, tinham ar mais sinistro.
Valdemar Silva não os conhecia, mas eles, obviamente, conheciam de vista o
homem mais rico de Amarante. O ricaço viu que os dois confabularam em sussurros
por um longo tempo, deitando olhares em sua direção. Deviam estar aprontando
alguma para cima dele. Ia ter que mostrar quem era o rico e poderoso ali. Eles
que se engraçassem: só na firma ele tinha cinco homens armados!
Só que nenhum deles estava ali naquele momento
crucial, quando Tonho Dureza, um mulato alto, forte e desdentado, aproximou-se dele e
foi logo passando a mão na sua bunda:
– Ah, mas como eu gosto duma bunda gordinha! Baixote,
ocê vai a sê a minha namoradinha rechonchudinha. Vem, vem que o papai aqui tá a
pirigo, faz seis meis qui eu tô a pirigo aqui nesta cela, só na base do cinco
contra um.
– Que é isso, sujeito, sai pra lá, não tá me
reconhecendo, é? Eu sou Valdemar Silva, o homem mais rico desta cidade. E eu
tenho um monte de capanga armado, pra dar um jeito em você em dois tempos. Sai
pra lá!
– Olha só, Onofre, ela é brabinha! Vai,
benzinho, resmunga, resiste. Ah, mais o que eu mais gosto é montá à força numa
petiça gordinha assim, que fica resistindo. Faiz isso, minha coisinha, qui eu
me animo i ti encho di porrada antes de entrá nesse rabinho apertado na base da força.
Valdemar Silva começou a suar frio, bunda
encostada na parede, preparando-se para resistir contra o avanço daquele Fenemê
desgovernado. Gritou pelo carcereiro, mas concluiu que o sujeitinho devia ter
saído do prédio. Então entrou em pânico, pois sentiu que sua virgindade de mais
de sessenta anos de macho estava em vias de cair fragorosamente. Contudo, no momento crucial, Onofre, o outro
preso, chegou-se aos dois e falou:
– O que é isso, compadre! Deixa disso. Você é
estuprador de menina nova e de menino novo, por isso é que está aqui,
aguardando julgamento. Mas olha bem pra isso aí, você vai ter coragem de comer
uma coisa dessas?
O gigante fez que sim com a cabeça, o olhar
fixo na cara e na bunda oculta de Valdemar Silva:
– Ah, mas vô sim, eu tô a pirigo, já disse.
Primero cubro a gordinha de porrada e aí enfio uma fronha da cabeça dela.
Despois enfio o bem bom nela inté ozovo e imagino quí tô cumendo a Ana Paula
Arósio minininha.
– Seu Valdemar, faz alguma coisa, senão esse
louco lhe ataca agora mesmo. Oferece alguma coisa pra ele em troca do seu
fiofó!
– Mil reais! Eu lhe dou mil reais agora mesmo!
E aí você para com isso, que eu sou é muito do macho.
O mulato já estava com a mão no zíper, mas
pareceu ter gostado da proposta:
– Bom, por hoje pode di sê. Mais já vô
avisando: Amanhã, quando me dé a gula, ai eu num tenho mais negócio cum ocê,
gordinha. Vai tê que arriá as carça, por bem o por mal. E eu prifiro qui seje
por mal.
– Que nada, cumpadre. Amanhã o home lhe dá
outro agrado, ele é podre de rico. Fica frio.
– Sim, sim, eu dou mais dinheiro. Aliás, posso
fazer melhor, a gente compra esse carcereiro, que tem cara de bocó, e eu mando
trazer umas putas aqui pra vocês e pra ele, vocês vão poder botar a escrita em
dia. Que tal?
– Humm, pode di sê. Mas tem que sê putinha bem
novinha pra mim. Di menor.
– Não tem problema, isso é que não falta aqui
em Amarante. Agora vamos fazer nosso acordo. Olhem eu dou 500 pra cada um hoje
e 500 pra cada um amanhã. É o que eu tenho aqui no bolso, mas amanhã mando
trazer mais, tranquilo?
Os homens disseram que sim e a paz se fez na
pequena cela da delegacia de Amarante. Valdemar Silva desencostou enfim da
parede e considerou que sua virgindade estava garantida, ao menos por enquanto.
Mas precisava dar um jeito definitivo naquele macaco filho da puta. Na segunda,
quando saísse desse inferno, escapava da chantagem e aí dava um jeito de fazer
prender um dos seus matadores de confiança. Então o homem dava um jeito no
mulato tarado, legítima defesa!
O outro preso, o tal de Onofre, por uma
miséria, ia jurar de pés juntos, pela alma do capeta, que era tudo verdade. Pensando
bem, melhor mandar mais umas testemunhas junto, fazer prender por umas horas
uns três dos seus por uma arruaça qualquer. Seguro, morreu de velho. Ainda mais
agora, que o Amaral tinha dado no pé...
O fim de semana foi sufocante pra Valdemar
Silva. Para ele era inconcebível que um homem com seu prestígio e sua fortuna,
um respeitável megaempresário da cidade, pudesse ficar relegado àquela condição
miserável de prisioneiro numa cela infecta, com dois marginais pé-de-chinelo quaisquer.
Mas o Dr. Aristides Lobo tinha sido bem claro: Não tinha jeito, o juiz só ia
despachar seu Habeas Corpus na
segunda-feira. Corno! Mas ele não perdia por esperar, ia também para a famosa lista
negra de Valdemar Silva.
No sábado, o Lobo do Lar, durante a visita, lhe
dera notícias da mulher, enfim. Estava bem, em casa, se recuperando, com
dentista marcado em Blumenau, para a semana.
Ela só então ficara sabendo, por intermédio do
advogado, de toda a verdade: que o marido estava preso por agressão e tentativa
de assassinato. E que tinha se complicado todo, tentando subornar justo o
Corregedor Geral da Polícia, que tinha vindo de Florianópolis para destituir o
delegado Amaral. E, para piorar, vendo que este lhe tinha preparado uma
armadilha, Silva descontrolou-se e tentou agredir o homem. Por isso estava
agora numa cela comum, com mais dois presos perigosos.
Mas as notícias ruins não terminavam aí: a
filha deles, Larissa, tinha saído de casa, estava morando no apart-hotel de
Sonia Assad, trabalhando na grande concessionária nova do paulista e tinha
comprado um fusca de cor laranja berrante.
De todas as más novas – e eram tantas! – a que
mais abalou Madame Silvá foi a que a levou a imaginar sua filha, a mulher mais
bonita e mais elegante de Amarante, dirigindo um fusca velho, de cor berrante.
– Grand
Dieu! Quelle tragédie!
Que vergonha para a família, que ingrata,
depois de todo o sacrifício que a mãe tinha feito, anos e anos a fio, para
convertê-la em uma Miss indiscutível, que só não chegara a Miss Universo por
causa daquele jegue do marido e do imbecil do velho Schlikmann, que vieram com
aquela ideia estúpida de antecipar o casamento da menina com Leon e encerraram
a carreira mais promissora de uma Miss no planeta inteiro!
Desde então, Diva Silva, a Madame Silvá, nunca
mais foi a mesma. A vida perdeu a graça para ela, longe do mudo da moda e do
glamour, das passarelas, dos infinitos concursos de Miss. A própria menina
havia se afastado disso tudo, fizera um ridículo curso superior de Agronomia,
tão ridículo quanto inútil, ficava cada vez mais descuidada da moda, desleixada
mesmo, vestindo-se cada vez mais displicentemente.
E sempre arranjando um jeito de romper os
noivados com Leon Schlikmann por causa das infidelidades dele – Como se existisse algum homem ou marido fiel
no mundo! Se ela fosse dar bola pra isso, há décadas tinha perdido o seu
casamento com o rico Valdemar Silva, ele também um traidor descarado, como
todos os outros homens.
No fim, nem Miss Santa Catarina, eleição mais
do ganha para Larissa, nem casamento com o Schlikmann. De que adiantara o
sacrifício? Nada, nada vezes nada, tudo foi somente pra fazer da vida dela,
Madame Silvá, uma desgraça constante.
Agora estava ali numa cama, toda cheia de dores
no rosto e na boca, o dentista marcado para terça-feira em Blumenau; o marido
preso, num lance simplesmente inacreditável e a filha fora de casa,
trabalhando, andando de carro velho de gente sem classe e sem nem se importar
com a mãe.
Isso era o pior: a ingratidão dos filhos,
depois que uma mãe se mata para educá-los, para enchê-los de carinho sem fim,
com ela sempre tinha feito, sacrificando o melhor de sua juventude para ensinar
aquela menina a ser elegante, desfilar nas passarelas, se vestir como uma
rainha, enfim, tudo o que uma filha pode sonhar de melhor na vida.
Ela, ela e somente ela, Diva Silva, tinha
conseguido para a menina o título de Miss Amarante. E conseguiria o de Miss
Santa Catarina, Miss Brasil, Miss Universo, se não fossem aqueles dois
trogloditas a cortarem por completo todos os sonhos mais dourados da menina,
sacrificando ela, a mãe, que viu todo o seu incrível esforço de quase duas
décadas ir para o beleleu. Para que? Para nada. Nem Miss, nem casamento! Ah,
vida malvada, gente ingrata, dava vontade até de morrer ali naquela cama,
abandonada que estava por marido e filha.
Mas não, não podia morrer com a cara
escangalhada, os dentes estropiados daquele jeito. Antes tinha que consertar
tudo, fazer os implantes, aproveitar e fazer uma plástica completa do rosto. Da
desgraça, tiraria o bem. Era uma mulher ainda muito bonita, ficaria muito mais
bonita ainda! O Silva, aquele mão-de-vaca, sempre lhe garantira que, para que
ela se fizesse mais bela para ele, podia gastar quanto dinheiro quisesse. Ainda
mais agora, que ele, ainda que sem querer, era o responsável pelo estado
miserável em que ficara seu rostinho lindo.
Aos poucos, sua sensação de abandono e dor foi
melhorando, porque foi se acendendo cada vez mais forte a chama da vaidade e do
narcisismo em sua mente. No fim, o tal murro ia acabar fazendo era muito bem
para ela! E Larissa que se danasse, já que tinha escolhido o caminho dela, que
fosse por ele e enfrentasse sozinha as consequências.
De qualquer forma, aos 23
anos, nunca mais poderia ser uma Miss, que valor, que importância ela tinha
agora? Pois estava resolvido: de agora em diante e em definitivo, ela ia cuidar
somente da beleza dela, da belíssima Diva. Plástica, implantes, roupas, joias,
tudo enfim que ela merecia, depois desses anos todos em que consumira a
juventude e a beleza próprias como uma escrava daquela filha ingrata,
investindo só na beleza dela.
CONTINUA
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