MILTON MACIEL
34 – O HABEAS CORPUS
Fim do cap. 33: "Plástica,
implantes, roupas, joias, tudo enfim que ela merecia, depois desses anos todos
em que consumira a juventude e a beleza próprias como uma escrava daquela filha
ingrata, investindo só na beleza dela."
Foi só na segunda-feira que o Dr. Aristides
Lobo teve coragem de falar para Valdemar Silva que seu habeas corpus não seria assinado pelo juiz Trindade. Quando o
baixinho literalmente enlouqueceu, dando uma saraivada de murros na mesa da sala,
onde fora autorizado a receber seu advogado, o Lobo do Lar explicou que a culpa
tinha sido toda do próprio Silva.
– Foi aquela tentativa de agredir o Corregedor.
Aquilo não podia ter acontecido. Até a tentativa de suborno podia passar,
porque seria incorporada ao processo do caso da moça da Teles Automóveis, mas
não era coisa de efeito imediato, fora ter causado sua remoção da sala para a cela.
Mas na hora que o senhor se descontrolou e tentou bater no homem, aí ele virou
seu inimigo pessoal. Apurei isso com o juiz Trindade, ele disse que o
Corregedor deixou tudo por escrito para ser entregue a ele e que ele não
deveria lhe dar o habeas corpus.
Silva primeiro ficou arrasado, Como?! Então
teria que continuar mais tempo com aqueles dois marginais asquerosos, tendo que
pagar mil reais por dia para não ser abusado sexualmente? E longe dos seus negócios, certamente levando
prejuízo, quem sabe até sendo roubado pelas costas. Mas o pior é que, ali
dentro, ele não podia coordenar as ações de vingança e punição que queria
empreender.
Em primeiro lugar precisava dar um fim naquela
maldita mulher que o tinha desmoralizado completamente na cidade. A única forma
de limpar seu nome, ainda assim só em parte, era mandar matar aquela filha da
puta imediatamente. É claro que todas as suspeitas recairiam sobre ele, mas ele
teria como se safar. Já tinha o plano em mente.
A mulher era muito linda, um tesão; então ela
sofreria um ataque sexual por parte de dois ou mais homens, que a pegariam à
traição e a executariam, tomando o cuidado de comê-la de tudo que é jeito
antes, para caracterizar o estupro. Doce missão, no fundo. Principalmente
considerando os fundos da morena! Bem que ele gostaria de ser o executante
dessa parte, pena que não era possível. Depois ele daria fuga aos homens e os
protegeria.
Seu fiel escudeiro, o pistoleiro Ramiro Toco,
iria buscar os pseudoestupradores no Paraná, sabia onde conseguir marginais
desconhecidos em Amarante, cada vez que eles eram necessários a Silva. Mas ele
precisava conversar pessoalmente com o Toco e isso não podia ser feito na
cadeia, com o carcereiro e os praças por perto. Precisava sair daquele buraco
infecto de qualquer jeito. E ainda tinha a outra punição em mente: a de sua
filha rebelde Larissa.
Ela era a única culpada de todas as desgraças
que se abateram sobre ele. Tinha que pagar e ia pagar caro, muito caro! Se não
tivesse agido daquela forma absurda, desrespeitosa, chegando ao ponto de
revidar sua agressão com as unhas, nada daquilo teria acontecido. Nem ele teria
atingido a estúpida da mãe dela, gerando despesas grossas com médico e dentista,
um monte de dinheiro botado fora. Mas, principalmente, ele não teria ido atrás
dela naquela firma maldita e não teria se defrontado com aquela fera selvagem
disfarçada de mulher bonita.
Não teria passado pelo vexame que passou. E não
teria tentado matá-la, na hora da raiva, na frente de todo mundo. E não teria o
braço destroncado daquele jeito doloroso e humilhante, tendo que botar mais
dinheiro na lata do lixo com o bosta do Dr. Bernardo. E não estaria agora todo
encalacrado, preso naquele buraco com um gigante tarado que todos os dias
ameaçava comer seu cu e lhe extorquia mais dinheiro. E não teria o Corregedor Geral
da Polícia do Estado como seu inimigo pessoal.
Sua desgraça tinha um só nome: Larissa! Essa também tinha que ser
castigada exemplarmente. E o castigo ele já tinha escolhido: mandar raptar
aquela desgraçada, mandar os homens submetê-la a uma curra de horas a fio e
depois desfigurar a tal cara mais linda do mundo com ácido. Ela que se desse
por feliz por sobreviver, sorte dela que ele acreditasse que matar alguém da
própria família podia levar um homem para o inferno quando morresse.
Mas aquela desgraçada ia ver o que era bom!
Desmoralizada, comida por uns dez, com a cara mais horrorosa da cidade, em vez
da mais bela! E deserdada por ele, sem um tostão de herança. Ah, a vingança era
uma coisa deliciosa! Se já era tão boa só de imaginar, o prazer que dava na
hora da execução era quase enlouquecedor de tão gostoso. Mal podia esperar.
Só que, para tocar esses planos em frente, ele
precisava sair daquele inferno daquela delegacia. Então decidiu que estava na
hora do tudo ou nada. Fez sinal para que Aristides Lobo sentasse muito junto a
ele e sussurrou:
– Olhe, não tem outro jeito, vou ter que apelar para a ignorância com o
juiz. Leve um recado para o Toco, diga apenas que está na hora do plano Pixote.
Só isso. Ele sabe o que é, a gente já planejou tudo para agir contra aquele outro
juiz, o fujão, E você não se compromete, não está sabendo de nada.
– Mas isso não é arriscado demais? Ameaçar o juiz Trindade, como fez com
o outro?
– E tem outro jeito de arranjar meu habeas
corpus pra sair deste pardieiro?
– Bem, por enquanto não, mas...
– Então deixe eu agir do meu jeito, já que não tem outro. Diga o que eu
mandei dizer para o Ramiro Toco. Ele vai saber o que fazer. Mas diga que eu
quero urgência. No máximo amanhã quero estar saindo desta pocilga.
Um tanto assustado, Dr. Aristides deu o recado de Valdemar Silva para o
chefe dos seus capangas, seus “seguranças”, como eram chamados os agora só
cinco jagunços do batalhão de choque do homenzinho da Transportadora. Ramiro
Toco sorriu sinistramente e foi confabular com os outros pistoleiros. Na
verdade, não precisava de nada especial, nem homens armados. Bastaria um só
deles, o vaselina do Loivo, o que sabia disfarçar e fazer voz de mulher ao
telefone.
Ia ser moleza, como tinha sido com o outro juiz. Aquele morreu de medo
das ameaças contra as crianças que eram seus filhos pequenos. O velho Trindade
que se borrasse de pavor ante as ameaças contra seus netos pequenos, o mais
velho não devia ter nem cinco anos. E o chefe tinha pressa! Loivo saiu com as
instruções e foi buscar o chip e o celular no arsenal de telefones roubados que
eles tinham para usar numa eventualidade como essa. Depois era só destruir chip
e telefone e nunca haveria rastreamento possível.
É claro que a cidade toda saberia que a origem de tudo só podia ser
Valdemar Silva. Mas daí a conseguir provar, eram outros quinhentos. Além do
mais, isso não era problema dele, Ramiro Toco. Ele só tinha que executar a
ordem do chefe. Complicações, se houvessem, seriam problema do chefe, não dele.
Horas depois, o Dr. Trindade recebeu três ligações de uma mulher de voz
esquisita no seu celular. Ficou apavorado, entrou em pânico. O negócio proposto
era simples: ou habeas corpus
concedido na manhã seguinte, ou morte de uma das crianças. Talvez das duas. Um
triste acidente e pronto. Que ele pensasse bem. Que custava uma simples assinatura
dele, coisa de um minuto? E ele não estava cometendo nenhum crime, não estava
recebendo dinheiro, se vendendo. Estava sendo chantageado, tinha todas as
justificativas do mundo, ficava bem com sua consciência. Ficaria mal, muito
mal, se não assinasse e, por causa de sua teimosia, sua filha perdesse as duas
criancinhas que adorava, ele perdesse seus netinhos só por causa de sua
estupidez.
Claro que ele podia denunciar a chantagem, mas denunciar para
quem? Ora, a cidade não tinha mais
delegado! E, se ele fizesse isso, então sua própria filha viria a ser vítima
mais adiante, estaria automaticamente condenada também. Nem netos, nem filha,
todos novos moradores da cidade dos pés juntos. E mortos com requintes de
crueldade, a mulher perversa prometia ao telefone.
Foi demais para o juiz Trindade. Ele era só um homem velho e alquebrado,
desencantado com a vida profissional, só esperando o último ano que faltava
para se aposentar. Não era um moço como o outro juiz, com uma mulher moça e
dois filhinhos, que puderam se mandar de Amarante para um lugar onde tinham
proteção garantida. Ele, Trindade, tinha filha, genro e três netos, o genro
tinha um ótimo emprego ali na cidade, não podiam todos fugir das ameaças do
grande bandido, do bandido mais rico de Amarante, assim, de uma hora para
outra.
Na manhã seguinte, dez da manhã, os últimos escrúpulos do Dr. Trindade
ruíram ante o monstro assustador do seu medo. Ele assinou o habeas corpus e um improvisado alvará de
soltura, autorizando o carcereiro Mota a cumpri-lo, na ausência forçada do
delegado Amaral. Esperou que a voz daquela mulher odiosa o chamasse de novo no
celular e disse que podiam mandar buscar os documentos no fórum, ele estaria lá
à espera.
Naturalmente quem apareceu foi o Dr. Aristides, que se declarou muito
surpreso com a mudança de decisão do juiz. Fazendo o mesmo jogo, o juiz apenas
disse que havia pensado melhor e decidira dar uma chance a Valdemar Silva, para
que, saindo da prisão temporária, pudesse procurar formas de reparar os seus
erros e indenizar suas vítimas.
Trindade fez que falava a verdade, Lobo fez que acreditava e os dois
velhos celebraram tudo com um cafezinho requentado. Ambos sabiam que a verdade
era bem outra, que era chantagem da braba, mas estavam velhos e cansados demais
para lutar. Um era só um velho Lobo do Lar, o outro agora só um cachorro velho,
um cusco sarnento, assustado demais para fazer qualquer outra coisa senão
aquilo que lhe mandavam.
O resultado foi que, às onze da manhã, Valdemar Silva saiu triunfalmente
da delegacia. Antes, assim que se viu do lado de fora da cela, aproximou-se da
grade e falou para os dois presos:
– Acabou! Eu sou o poder nesta cidade, vocês são uns merdas, uns
bandidos pé-de-chinelo. E, agora, eu aproveito pra fazer uma coisa bem simples:
Eu, Valdemar Silva, declaro os dois jurados de morte. E vai ser muito, muito
rápido. Vocês desta cela só vão sair dentro do caixão.
E se voltou, saindo rapidamente, enquanto os dois balbuciavam pedidos de
perdão, dizendo que tudo era só brincadeira, propondo devolver o dinheiro.
Devolver aquela merreca! Pois sim! Qual o preço do pavor em que eles o
tinham mantido durante aquele tempo todo? Milhões, que aqueles merdas nunca
poderiam pagar. Então que pagassem com a vida.
Seus homens iam ter muito trabalho pela frente. Duas mulheres moças e
dois bandidos chinfrins para justiçar. Precisava organizar a agenda dessas
ações, para não dar demais na vista. Precisava – e isso era muito importante –
colocar o novo delgado que viesse na gaveta também, comprá-lo como fizera com
aquele rato fujão do Otílio Amaral. Todo homem tem seu preço, ou vai por bem,
no dinheiro, ou vai por mal, no terror.
O importante é que agora ele era de novo o grande Valdemar Silva, o
homem mais rico e mais poderoso daquele lugar. Em pouco tempo ele mostraria
àquela cidade de palermas quem é que mandava ali. Quando as duas mulheres moças
fossem exempladas, ninguém mais teria coragem de rir pelas costas dele, porque
ele tinha apanhado de uma mulher. Grande vantagem: Bateu nele, pagou com a vida!
E desmoralizada, estuprada antes.
E a sua filha imbecil, currada e deformada,
todos saberiam que era o pai quem tinha imposto o castigo, todos tremeriam de
medo e respeito. E nenhum delegadozinho novo de merda ia criar caso e se
arriscar a investigar alguma coisa. O juiz velho, então, um cagão de marca
maior, era só apertar o palhaço, uma vozinha de falsete no telefone e o covarde
já se mijava todo de medo e fazia o que ele, Silva, mandasse.
Ah, agora sim, agora as coisas voltavam ao normal, agora o equilíbrio
estava restaurado! Amarante estava pronta para se curvar de novo ante seu rei,
a castanha quebrada, o medo de volta, o respeito também, por consequência.
Valdemar Silva pediu que o Toco viesse buscá-lo com um carro da firma,
conversariam na mansão, onde iria para tomar banho, fazer a barba, comer algo
decente e ver como estava aquela imbecil da mulher dele. O Mercedes flamante
estava danificado por aquela pedra maldita, tinha que mandar Fúlvio Rondelli
fazer os reparos, aquele italiano era danado de bom, recuperava, pintava e
deixava qualquer carro velho como zero. Imagine pegando um Mercedes zerinho mesmo,
então.
Ainda não sabia, mais seu carro fora removido e abandonado, portas
destravadas, na praça em frente à Teles Automóveis, desde a manhã do incidente.
A molecada se divertia a rodo brincando de gente rica, dentro e em cima do
carro, levando pedaços como souvenir. Um menino baixinho e gordote fazia volta
e meia o papel de “Pitoco”, um personagem que fingia que era surrado por uma
garotinha bem pequena e magrinha, até ficar desmaiado no chão. Crianças e
adultos morriam de rir com a cena hilária, pediam vezes sem fim que os dois
atores mirins repetissem a cena de luta, exigiam que Pitoco gritasse alto,
ajoelhasse, pedisse perdão, mas apanhasse até desmaiar no fim.
Além disso, o que o grande Valdemar Silva não poderia sequer conceber,
que dirá imaginar, é que Fúlvio Rondelli não aceitaria trabalhar no carro dele.
E que, se aceitasse, o dono da Teles Automóveis não permitiria o conserto do
Mercedes em suas oficinas.
Quando o napoleãozinho truculento chegou à Transportadora, depois do lauto
almoço em casa com o Toco, dezenas de funcionários e caminhoneiros autônomos
vieram para o beija-mão. O homem se sentiu mais forte do que nunca. Ninguém
ousou mencionar absolutamente uma única frase sobre a surra que ele tinha
levado da mulher gostosa. Era um evidente tabu e a reação do imperador poderia
ser muito perigosa.
Com o Toco a coisa estava perfeitamente esquematizada. A primeira a ser
castigada era, evidentemente, a morena gostosa. Para Larissa ele estabeleceu um
“tempo de maturação”, como o chamou. A loira desmiolada seria castigada só um
mês depois da morte da morena gostosa.
Naquela mesma tarde, o Toco saiu de automóvel em direção ao Paraná, ia
buscar reforços em Ponta Grossa, sua cidade natal e onde tinha sólidas raízes no
mundo do crime. Ia selecionar os dois felizardos estupradores da gostosa. Mas,
na hora H, é claro que ele também entraria na jogada; o primeiro haveria de ser
ele, que ele não era homem de bater manteiga depois que os outros se espojassem
dentro da morena.
Dava dó ter que matar uma gata linda como aquela, mas ali não tinha
jeito mesmo, o que ela tinha feito com o patrão era uma coisa terrível, acabava
com ele. Se ele não lavasse a sua honra com o sangue dela, nunca mais a
recuperaria. Pois Ramiro Toco ia ajudar a arrancar sangue da gostosa do melhor jeito
que ele conhecia. Depois disso, que os outros se servissem também e um deles
qualquer terminasse o serviço, despachando a garota para o inferno. Esse
receberia muito mais dinheiro do que o outro.
CONTINUA
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