MILTON MACIEL
32 – UM PROMOTOR GAÚCHO
Fim do cap. 31: "o pistoleiro sumiu para sempre, toda cidade sabia que aquilo era negócio entre o Silva e o Amaral. E um negócio tão escancarado, feito tão na cara-de-pau, que o Amaral mudou para uma casa de aluguel do Silva na mesma semana, ganhando escritura de posse meses depois.
– Caramba, a coisa é ainda pior do que eu tinha pensado!"
– Põe pior nisso, doutor! Se o Silva se
impacientar com a demora do habeas corpus,
sai pela porta da frente da delegacia a hora que bem entender. Enquanto o
Amaral for delegado aqui, nada vai mudar para melhor. Aliás, quem vive
apregoando isso aos quatro ventos é o promotor, o Dr. Turíbio Freitas.
– E esse, qual apito que ele toca?
– Um moço honesto, doutor. Honesto e bem no
início da carreira. Veio para cá há dois anos, é gaúcho de Santa Maria. E um
daqueles que faz questão de afirmar que é macho gaúcho, que não tem medo de
homem, que não tem medo de ameaças. Tocou adiante o processo contra o
pistoleiro fugido do Silva, o homem mais importante da gang do baixote, e
conseguiu que ele fosse condenado à revelia: 23 anos de cadeia, o Dr. Trindade
bateu o martelo.
– Opa, esse é macho mesmo! E o Silva?
– Ficou possesso, mandou fazer um monte de
ameaças, um dos seus homens peitou o promotor na entrada do cinema, esbarrou
nele de propósito, puxou briga na hora.
– E aí?
– O capanga do Silva apanhou feio! O Dr.
Turíbio meteu-lhe um soco na cara com tanta força que o sujeito quebrou um dos
cavaletes grandes do cinema. E aí, quando ele quis reagir, vários outros homens
que estavam na fila de entrada entraram na confusão e quebraram o bandido na
porrada e no pontapé. O cara saiu algemado, com voz de prisão dada pelo
promotor, desacato à autoridade.
– Mas aí o delegado, naturalmente...
– Não, doutor. Dessa vez não. O promotor
ameaçou o delegado com remoção de Amarante, se ele voltasse a dar fuga a um
bandido do Silva. O Amaral afinou e Silva acabou tendo que propor o cachimbo da
paz ao promotor. Ele não levava adiante a ação penal contra o seu capanga e
ele, Silva, nunca mais ameaçava o promotor e a família.
– E o promotor aceitou?
– Fez que aceitou, doutor. Fez! O sujeito foi
libertado, mas continua respondendo processo em liberdade. Resultado: também
ele caiu fora, se mandou, fugiu de Amarante.
– Puxa, esse promotor é o que os meus amigos lá
de Maceió, onde eu joguei no CRB no início da minha carreira, chamariam de um porreta!
– Isso mesmo, doutor. Esse homem tem pelo nas
ventas, deve ter o negócio roxo. E o senhor precisa ver como ele encara o
Amaral, quando eles têm que se ver. Com a maior cara de nojo. E fala mal do
Amaral na frente de todo mundo, inclusive do próprio, não tem medo, não. Uma
vez, lá no Bicalho, eu ouvi o homem dizer que não sossega enquanto não
acontecer o dia mais feliz da vida dele, o dia em que ele conseguir que Otílio
Amaral seja removido de Amarante.
– E ele pode conseguir isso, é?
– Isso eu não sei, doutor, mas se ele falou
essa coisa... E tem mais, se alguém pode lhe dar orientação sobre advogados, é esse
promotor mesmo.
– Taí, Rondelli, vou sair já, agora mesmo,
atrás desse homem. Você sabe onde eu devo procurar por ele?
– A esta hora? Com certeza. O homem é metódico,
tem hábitos regulares. Só começa a trabalhar depois do almoço e vai até às 20
horas. Então, a esta hora da manhã, o lugar mais certo pra encontrar o tal porreta
é... na sua academia!
– Na academia?! Caramba, muita coincidência.
Nunca soube que um dos alunos novos lá fosse o promotor.
– Que aluno novo, doutor! É aluno antigo do
Nelson, o senhor é que nunca cruzou com ele, o senhor ia muito cedo para lá, antes de
abrir.
– Caramba, espera aí, vou ligar para o celular
do Nelson já.
Segundos depois tinha a confirmação:
– O homem está lá mesmo, Rondelli. Vou voando
pra lá. Até.
Rondelli mandou suspender o fusquinha no
elevador e começou o exame minucioso. Rodas, pneus, suspensão, direção... Muita
coisa a fazer, realmente. Mas ao menos o motor ronronava bonito, como um gato
velho e bem-comportado. Ia preparar a grande surpresa para sua menina. Mal
sabia que, em mais alguns minutos, ela entraria ali na oficina e estragaria a
surpresa toda.
O diálogo na Teles Academia fui muito rápido e
resultou num telefonema do Dr. Turíbio para sua esposa, explicando-lhe que fora
convidado para almoçar com o dono da academia e da nova revenda de automóveis.
Durante o almoço, na churrascaria Estrela dos Pampas, os dois homens se
conheceram e afinaram suas ideias. Por fim, acertaram seus ponteiros. O
promotor era um homem muito jovem, mal havia chegado aos 30 anos, mas era um
guerreiro de grandes arroubos emocionais. Para Celso Teles ficou muito claro
que ele detestava o delegado Amaral e que tinha tomado como questão de honra
removê-lo da delegacia de Amarante.
Nesse momento, o paulista propôs uma aliança
com o promotor. Também ele gostaria muito de ver removido de sua nova cidade
uma autoridade corrupta. E, além disso, tinha agora o interesse pessoal em
evitar que o sabidamente criminoso pai de Larissa escapasse com toda a
facilidade da prisão em flagrante, por tentativa de assassinato. E ofereceu a
única coisa que poderia oferecer: não tinha qualquer conhecimento ou prestígio
político nem na cidade, nem no Estado. Mas tinha a mesma coisa que sobrava a
Valdemar Silva: dinheiro!
Então aconteceu algo muito estranho, quase
hilário, podia se dizer; quase na mesma hora, pouco depois de 13:30, saíram dois
automóveis velozes em direção a Florianópolis. Em um ia, como motorista
solitário, do Dr. Aristides Lobo, o Lobo do Lar, levando um cheque
administrativo do Banco do Brasil, emitido por Valdemar Silva. No outro carro,
da Teles Automóveis, ia, como passageiro, o Dr. Turíbio Soares, levando um
cheque administrativo da Caixa Econômica, emitido por Celso Teles.
O primeiro cheque iria adoçar o bico do
eminente causídico Dr. Heráclito Mello, grande criminalista, convencendo-o a
retornar no mesmo veículo pilotado pelo velho Lobo do Lar, direto para
Amarante, sem qualquer perda de tempo e adiando ou cancelando qualquer outro
compromisso. De fato, o cheque tinha uma enorme força de persuasão e, quando o
Lobo do Lar ameaçou voltar com seu navio Ford e com o cheque para Amarante, o
criminalista mandou os outros clientes e compromisso às favas e tratou de se
acertar com o velho Lobo, partilha do excedente no cheque inclusa.
Por seu lado, Dr. Turíbio foi direto para a
Secretaria de Segurança Pública do Estado. Era ali que dormitava, há mais de um
ano, um dossiê fatídico contra o delegado Otílio Amaral, de Amarante. O
alentado processo, pacientemente montado pelo promotor ao longo de muitos meses
de paciente investigação oculta, dormia um sono cataléptico dentro de certa
gaveta, a gaveta da mesa de um assessor do Secretário. Faltara ao Dr. Turíbio,
das outras vezes em que fora à capital, para tentar despertar o belo
adormecido, justamente o príncipe para o beijo regulamentar.
Mas desta vez o príncipe ia com ele: um pequeno
pedaço de papel azul, com carimbos oficiais e assinaturas de gerentes da Caixa
Econômica Federal, agência de Amarante. E, coerente com o que reza a história
de carochinha, o beijo do príncipe produziu efeito instantâneo: o cheque mudou
de mãos e essas mãos pressurosas foram colher a última assinatura que faltava,
a única que poderia dar vida ao gigante adormecido – a assinatura do próprio
Secretário de Segurança, que jamegou os papeis junto com uma montanha de
outros, sem se dar ao trabalho de ler nenhum, para isso tinha assessores de
confiança.
O confiável assessor, tornado subitamente um
pouco mais próspero, completou seu trabalho, disponibilizando um veículo para
que, no dia seguinte, o Corregedor Geral fosse cumprir a ordem emanada dos
papeis assinados pelo Secretário: Viagem imediata para Amarante, para destituir
pessoalmente o corrupto delegado local. Ia também com a missão política de se
entender com o prefeito e o líder do partido do governo na cidade, para
ouvi-los a respeito do possível novo delegado. Aquele cargo pertencia, há
muitos anos, à quota pessoal do Secretário e ele apreciava usar a nomeação para
barganhar com as autoridades locais. Raposa velha, não era à-toa que estava
Secretário de Segurança pela terceira vez na vida. O apoio de caciques
políticos do interior costumava ser decisivo em certos momentos.
Podia-se dizer, portanto, que os dois
mensageiros de Amarante foram muito bem-sucedidos em suas demandas na capital
do Estado. Dr. Aristides, o Lobo do Lar, trouxe o grande criminalista a bordo
de sua nau capitânia. Agora o habeas
corpus era fatal, questão de mais algumas horas somente, porque o juiz, Dr.
Trindade, não dava expediente depois das cinco da tarde.
Já o Dr. Turíbio chegou exultante, com a cópia
do processo inteiro em sua pasta. Deu a boa nova para Celso Teles lá de
Florianópolis mesmo, não conseguiu se aguentar. E, quando chegou enfim a
Amarante, em sua própria casa, desembarcando do automóvel da Teles e
agradecendo a gentileza do motorista, quem entrou em casa foi um molecão de dez
anos, gritando, pulando e assobiando, com um gigantesco buquê de flores na mão,
para dar à esposa. Comemorou com ela o dia mais importante de sua carreira
naquela cidade, o dia tão memorável em que o paulista da academia e dos
automóveis lhe proporcionara os meios de arrancar do sono eterno o belo
adormecido que o torturava há tantos meses.
Diferentemente do Dr. Aristides Lobo, que
estava ganhando dinheiro de Valdemar Silva como seu advogado e estava
arrancando um por fora com a conivência do Dr. Heráclito, o Dr. Turíbio não
levara um único tostão do dinheiro gasto pelo paulista. Felizmente, este tivera
a propriedade de não lhe propor qualquer espécie de pagamento ou propina. Isso
havia deixado o Dr. Turíbio feliz e com mais admiração pelo forasteiro: aquele
empresário sabia reconhecer um homem honesto e não lhe fizera qualquer proposta
indecorosa, que ele não aceitaria e que o ofenderia.
Sua esposa, era paciente e resignada com a
maldita honestidade do marido – o pai dela sempre dizia: Isso aí é um saco cheio de ar, só tem orgulho e pose, minha filha. Mas é
vazio de sustança: com essa burrice de honestidade, nunca vai ter dinheiro pra
lhe dar uma vida decente. Mas ela perguntou-lhe
se, ao menos, o homem havia remunerado suas horas perdidas durante a viagem de
ida e volta.
Dr. Turíbio ficou irritadíssimo:
– A la
putcha, tchê! Mas que é que tu tás pensando? Então eu sou um maula qualquer, que recebe dinheiro de particular? Pra
teu governo, eu sou um funcionário público, se tu esqueceste. O Estado é que
paga o meu soldo. E eu fui lá porque eu quis, porque era do meu interesse. A la fresca, já tô arrependido
de ter trazido esse mundaréu de flor pra ti!
A mulher pediu desculpas, abraçou o homem, não
tinha jeito mesmo. Aquilo era cabeçudo como só: a casa alugada, os móveis meio
quebrados de tanta mudança, as crianças em escola pública, ela se desapertando
com roupas que vinham da irmã mais moça, lá de Santa Maria; Que remédio... Um dia ainda ia acabar se
acostumando a ser mulher de advogado pobre. Pobre porque metido a honesto,
funcionário público, sem escritório e sem causas particulares. Que remédio...
No dia seguinte, o delegado Amaral recebeu duas
visitas importantíssimas. Primeiro, às nove horas, viu entrar, em sua humilde
delegacia de interior, ninguém menos do que o famoso Dr. Heráclito Mello. Já
esperava por ele, Dr. Aristides, o Lobo do Lar, tinha estado no fim da tarde
lá, para avisar Valdemar Silva do pleno êxito de sua missão. O homem estava já
no Grande Hotel e apareceria na manhã seguinte. Com dinheiro dado por Silva,
Amaral comprou material para um verdadeiro banquete de recepção.
Depois que o grande Dr. Heráclito conversou
bastante com Silva e com Dr. Lobo e foi embora, lá pelas onze chegou outro
ilustre visitante, este vindo direto da capital. Otílio Amaral ficou lívido
quando o sujeito, descendo de uma viatura oficial, se identificou com sua
carteira funcional: Corregedor Geral da Polícia. Nos minutos seguintes, o homem
descascou o Amaral, colocando-o abaixo de cu de cobra. Mostrou e leu as partes
principais do longo processo, com a assinatura fatídica do Secretário de
Segurança e no fim deu-lhe duas alternativas:
Ou saía de fininho da cidade naquela tarde
mesmo, sem enrolação – alguém que cuidasse da família e da mudança depois. Nesse
caso, podia esperar o final do desenrolar do seu caso, poderiam ou não
considerar sua nomeação para uma cidade bem distante e bem menor do extremo
oeste, que tinha necessidade urgente de um delegado.
Ou poderia ficar por ali, se quisesse e tivesse
coragem. Porque, nessa hipótese – ou se qualquer gracinha acontecesse para o
promotor ou algum familiar dele, então ele seria imediatamente preso e expulso
do serviço público.
O delegado Otílio Amaral quase enfartou! Era
desgraça demais caindo em sua cabeça em menos de quinze minutos. O tal
Corregedor era um sujeito duro, inflexível, não teve jeito de aceitar um
adoça-bico proposto por Valdemar Silva. Fingindo-se
bastante interessado no primeiro momento, ele pediu que Silva e Amaral
repetissem, mais de uma vez e com todos os detalhes, qual o valor e como seria
feito o pagamento. Foi além, exigiu que Silva desse ali mesmo, na hora, um
sinal de negócio de pelo menos quinhentos mil reais.
Otílio Amaral teve que ir
até à Transportadora, buscar com o contador da empresa um certo talão de
cheques de uma conta especial de caixa dois. Regressou rapidamente o Corregedor
exigiu um cheque de 500 mil reais para ele e mais dois cheques de 50 mil reais,
para os dois homens que o acompanhavam na negociação. Comodamente sentado no
amplo sofá-cama, que o delegado mandara buscar para seu hóspede de honra,
Valdemar Silva, na própria residência dele, o ex-caminhoneiro preencheu e
assinou os três cheques. Gastava uma migalha, mas garantia a permanência de
Otílio Amaral onde ele lhe havia sido sempre extremamente útil nesses anos
todos. E, o mais importante, comprava barato mais uma autoridade estadual de
relevo. Mais um dos muitos que se acostumaram a comer na mão do homem mais rico
de Amarante.
A um sinal de Silva, o delegado foi buscar uma
garrafa de champanhe na geladeira, uma das muitas que estavam reservadas para
comemorar o momento da chegada do alvará de soltura, após o deferimento, pelo
juiz Trindade, do pedido de habeas corpus formulado pelo competente – e
caro! – Dr. Heráclito Mello.
Amaral serviu o espumante nobre francês em
cinco das inúmeras taças que estavam à espera no pequeno armário do corredor e
colocou-as organizadamente à frente de cada um dos lugares que preparara à sua
ampla mesa de trabalho. Todos os cinco homens vieram sentar-se nas respectivas
cadeiras e o brinde foi feito:
– À liberdade e à prosperidade! E à saúde do
nosso delegado, longa vida para ele em Amarante! – foi a proposta de Valdemar
Silva, que levou sua taça aos lábios e bebeu todo o conteúdo de uma só vez, sem
esperar pelos outros.
– À prisão e à Justiça – propôs o corregedor,
enquanto derramava o conteúdo de sua taça nos sapatos empoeirados do delegado
Amaral. E, ante os olhos estupefatos de Valdemar e
Otílio, decretou:
– Você está preso por tentativa de suborno de uma autoridade, Valdemar Silva. Como já está tecnicamente preso, mas
desfrutando das mordomias de ter para si a maior sala da casa, ordeno que seja
trancafiado na cela com os outros presos comuns, você não tem curso superior.
Meus assessores são testemunhas do crime e os três cheques ficam apreendidos
como provas do mesmo. Mais um crime a se somar a sua extensa ficha de crimes só
desta semana.
– Mas doutor... – balbuciou trêmulo o delegado.
– Não pense que nos esquecemos de você, Otílio
Amaral. Essa tentativa de suborno vai também para sua ficha, que já é
quilométrica por si mesma. Mas nem vamos perder tempo com isso agora. Apenas
cumpra minha ordem e trancafie o meliante na cela da delegacia. E já!
Nesse momento ouviu-se um urro de fera e
Valdemar Silva partiu feito um foguete para cima do Corregedor:
– Seu traidor filho da puta, eu te mato!
Claro que não chegou nem perto do alvo. Um dos
dois assessores era, na verdade, o guarda-costas do Corregedor. Policial muito bem
treinado, sua reação foi fulminante, interceptando o braço do pitoco enfurecido
e prostrando-o no chão com estardalhaço. Era a segunda vez, em dois dias, que o
truculento anão de jardim era posto fora de combate por um golpe de cutelo no
pescoço.
Dormindo como estava, foi levado para a cela,
onde três outros presos tiveram que esfregar muito os olhos para poderem
acreditar que aquele saco de batatas que os homens do Corregedor arremessaram
com força no chão da cela, era simplesmente o poderoso Valdemar Silva, o homem
mais rico de Amarante, o patrão do delegado Amaral, o milionário que estava
desfrutando das benesses possíveis da delegacia: sala confortável, sofá-cama,
televisão, frigobar, cerveja e cachaça da boa.
Tampouco podiam acreditar no que ouviram,
balbuciado por um gaguejante Otílio Amaral:
– Doutor... Ainda... Ainda está... Quer dizer,
ainda está valendo o nosso acordo? Posso ir embora, sumir daqui, como o senhor
disse?
O Corregedor respondeu:
– Desapareça da minha frente e desta cidade,
seu rato imundo! E, mais do que esperar um posto noutra cidade, aconselho que
você pegue a reta para o Paraguai, a Bolívia, o Peru, o quinto dos infernos,
mas suma daqui pra sempre.
Trágico e irônico: o doutor Corregedor
dizendo-lhe para se refugiar exatamente nos lugares onde ele havia sonhado
levar a morena gostosa que tinha demolido Valdemar Silva! Mas Otílio Amaral era, antes de tudo, um
pragmático: hora de ir embora, seu reinado em Amarante estava acabado. Até
porque o reinado do próprio reizinho do lugar parecia ameaçado ou, pelo menos,
muito arranhado. Os tempos eram outros, pelo jeito muita coisa ia mudar por
ali. Hora se pôr a salvo enquanto dava, antes que o resto do processo desabasse
em cima dele e ele acabasse em cana.
A ideia do corregedor até que não era má. Reservas
até que ele tinha bastante. Não passara todos esses anos achacando e trambicando
para botar dinheiro fora. Ainda agora, o velho Silva tinha colaborado com uns
bons dez mil para garantir suas regalias de prisão especial, portador que era
de diploma superior monetário, já que de universidade nunca tinha passado nem
perto.
Então, na base do há males que vêm para bem, aproveitava para declarar sua
aposentadoria e sua liberdade total. Ou seja, dava no pé, dirigia até Foz do
Iguaçu e depois via se ia para o Paraguai ou a Argentina. Melhor o Paraguai,
para trocar logo de identidade, deixar barba e bigode crescerem, tirar
documentos novos como paraguaio, começar vida nova. O que não faltava naquela
fronteira era negócio para um ex-delegado que entendia tudo de contrabando, de
descaminho.
Mas o melhor de tudo é que aproveitava agora e
se livrava daquela velha que tinha em casa. Sumia de vez no mundo, ela que se
virasse quando viessem lhe contar a novidade, ia ter que vender a casa que o
Silva lhe dera e alugar uma coisa muito menor, para ter alguma renda. Tinha 61
anos e nunca tinha trabalhado fora, não era agora que ia conseguir. Um dia uma moreninha bonitinha, tinha
envelhecido e embuchecido: gorda, enrugada, mau gênio, negativa, rústica.
Estava na hora de trocar aquele trambolho por uma dúzia de gatinhas guaranis,
azar o dela.
Assim resolvido, Amaral passou no banco e
raspou a conta corrente, a poupança e as aplicações. Disse que ia viajar para
Mato Grosso, comprar uma fazenda, baita negócio de ocasião, exigia rapidez na
execução. Em casa, para a mulher, falou que tinha recebido visita de autoridade
da capital e que precisava ir para lá, discutir uma provável nomeação para um
cargo muito mais importante do que delegado de uma cidadezinha como Amarante.
Ia se demorar uma semana ou mais, ligava no outro dia dando notícias. Encheu
duas malas com roupas e calçados, pegou alguns objetos, levou dois cadernos
perigosos para destruir no caminho.
CONTINUA
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