MILTON MACIEL
20 - O GRANDE DIA DO TORNEIO
Enfim chegou o grande dia: se a loja da Teles
Automóveis não chegou a ter a inauguração festiva que Celso pretendia, tomada
de assalto que foi por dezenas de clientes no dia em que os carros,
recém-chegados, começavam apenas a ser descarregados das carretas, os campos de
futebol – minha menina dos olhos,
como ele mesmo os chamava – tiveram uma inauguração a caráter.
Ao bom modo do interior, teve benção do padre
católico e do reverendo luterano, ambos bons amigos, e a “furiosa” local, como
era chama a banda do maestro Ademar, atacou velhos dobrados e marchas do seu
repertório para grandes eventos. O prefeito municipal cortou a fita inaugural
do Campo 1, o de futebol masculino.
Mas o Campo 2, o que seria consagrado ao
futebol feminino, foi, muito adequadamente, deixado à tesoura da eterna Miss
Amarante. Trajada com um impressionante uniforme da seleção brasileira,
camiseta canarinho, shortinho azul curto e justo e meias azuis, com chuteiras
oficiais, seus atributos físicos generosos fazendo delirar os homens presentes,
Larissa Silva cortou a fita inaugural.
Fez mais: recebeu uma bola, atirada por seu
padrinho e imediatamente começou a fazer embaixadinhas, para as quais tinha
treinado horas sem fim. Aí, para delírio da rapaziada, entraram subitamente em
campo as outras moças da seleção de vendas da Teles Automóveis, todas com o
mesmo tipo de uniforme justinho da Seleção, cada uma mais linda do que a outra.
Brincaram entre si com várias bolas e, para deixar tudo ainda mais
impressionante, de repente surgiram mais de dez outras garotas com o mesmo
uniforme canarinho: eram alunas da Teles Academia. Durante mais de meia hora, a
inauguração do campo feminino ofuscou completamente as atenções para o campo
masculino.
Essa situação só se reverteu quanto, às 9 horas
em ponto, um homem todo de uniforme preto trilou um apito várias vezes, já no
gramado do Campo 1: era o juiz chamando os times para o jogo inicial, que seria
entre o Bandeirantes e o Delfim Futebol Clube. E, para surpresa geral, o juiz
era CELSO TELES!
De dentro do prédio da Academia irromperam os
dois times. O de flamante uniforme verde, muito similar ao do Palmeiras, puxado
na corrida pelo capitão da equipe, o orgulhoso Leon Schlikmann; e o de surrados
uniformes grenás, desbotados e consumidos por infinitas lavadas semanais,
liderados à frente por um ainda mais orgulhoso Dieter Müller, grande
ferramenteiro e capitão do time.
As moças da Teles, de uniformes canarinhos,
fizeram as vezes de repórteres de campo, com pequenos gravadores digitais,
entrevistando os jogadores, como se houvesse uma transmissão ao vivo. Nunca os
modestos jogadores do Bandeirantes tinham se sentido tão importantes.
Larissa, cumprindo fielmente o script que
Gládis lhe ensinara, com textos escritos por Celso, entrevistou Leon Schlikmann
e os jogadores do Delfim. As outras quatro moças entrevistaram jogadores do
Bandeirantes e, também os do Nacional, que já estavam com seus uniformes
vermelhos, esperando a vez de entrarem em campo, contra o time vencedor do primeiro
jogo.
Num determinado momento, aproveitando a
proximidade, Leon Schlikmann, rindo, arrancou rapidamente o gravador da mão de
Larissa e levou-o à altura do rosto da bela Jennifer, passando a entrevistá-la,
algo totalmente inesperado, surpreendente e muito hilário.
– Nossos ouvintes gostariam de saber da capitã
da Seleção Brasileira Feminina, se ele é solteira, casada ou comprometida.
Todos riram muito, Larissa e Jennifer
inclusive, dando tempo para que esta se refizesse e respondesse enfim:
– Solteiríssima, livre e desimpedida, meu
senhor. Meu único compromisso é com as vendas da Teles Automóveis.
– Fantástico! Olhem só que notícia maravilhosa, ouvintes!
Atenção, moçada de Amarante, quem se habilita? Sejam rápidos, podem formar a
fila.
Rapidamente alguns rapazes entraram na
brincadeira e começaram a formar uma fila. Mas Leon Schlikmann foi mais rápido,
postando-se à frente do primeiro e dizendo:
– Opa, atrás de mim, por favor! Eu sou o
primeiro da fila.
E entregou o gravador de volta para Larissa,
que se dobrava de rir. E, para surpresa de todos, ao invés de mostrar
contrariedade com a atitude do “noivo eterno”, passou a mão nos cabelos louros
de Leon e falou:
– Fofo! Que lindo o que você fez...
Jennifer ficou sem ação. Caramba, aquele rapaz
era um galanteador de marca, um provável galinha, mas o que ele acabara de
fazer era uma verdadeira homenagem. E partindo de um alemão ariano, de família
tradicional. E ainda por cima , o filho único do racista nojento que a
destratara e levara dela uma lição humilhante. Para resolver o impasse,
decretou:
– Atenção, companhia: dispersar! Agora é hora
do futebol. O resto fica pra outra hora.
E, afastando-se, voltou as costas para a fila,
que agradeceu penhorada a visão daquele traseiro monumental mal contido pelo
shortinho, gingando sobre as coxas negras e lustrosas. Que visão! Que tesão!
Que classe! Que mulher!
O juiz voltou a apitar impaciente e todos os
jogadores foram para o meio do campo, para a foto oficial. Imediatamente
depois, campo totalmente liberado, cada time ocupou o seu lado do campo, definido
pelo rápido sorteio com a moeda do juiz.
O jogo foi tranquilo e até um pouco monótono. A
diferença de qualidade dos jogadores era evidente, os do Delfim muito superiores.
Mas o pior era o problema do condicionamento físico. O Bandeirantes era, na prática,
o time dos casados de Amarante. Em outras palavras, ali as linhas de cintura
generosas e as barrigas avantajadas predominavam sobre as normais.
Correspondentemente, o fôlego dos atletas, alguns deles fumantes para piorar as
coisas, era de muito curta duração.
O jogo virou 2 a 0 para o Delfim. Isso que
os tempos eram de somente 35 minutos, 10 minutos mais curtos que o normal, já
para compensar o despreparo físico dos contendores. Ao final da partida,
vitória esmagadora do Delfim por 5 a 1. A arbitragem foi tranquila, os
jogadores demonstrando total respeito pelas decisões do juiz. Que, para
surpresa de muitos, demonstrou um senhor conhecimento de regras de futebol,
aplicando, inclusive, três cartões amarelos e fazendo uma expulsão: um zagueiro
do Bandeirantes, por uma entrada violenta por trás, que resultou na marcação de
um pênalti. Leon converteu-o no último gol do jogo.
O time dos riquinhos nem saiu de campo. Ficou
esperando pela entrada do Nacional, a alvinegrada, segundo eles diziam. Antes
de eles entrarem, entrou o novo juiz. Todos compreenderam, afinal Celso Teles
podia ter boa forma física, podia correr todos os dias, mas daí a apitar dois
jogos sucessivos, sem descanso, era querer demais.
Na arquibancada que Celso tivera o cuidado de
mandar erguer, as torcidas começaram a se digladiar. De um lado a do Nacional,
a mais numerosa, que contava também com a colaboração dos torcedores do
Bandeirantes. A polarização era clara: pobres contra ricos. Do outro lado as
meninas do Delfim, namoradas e parentes dos rapazes do Clube do Imigrante,
assim como muitos homens das classes mais privilegiadas.
Dois jogadores sobressiam na partida: Leon, um
bom driblador e, com sua altura, um excelente cabeceador, com uma boa noção de
conjunto também. E Bentinho, um verdadeiro azougue, um driblador emérito e um
corredor de enorme velocidade, baixinho demais para assustar nos cabeceios. Não
jogava para o conjunto, este é que jogava em função dele, o que Celso já havia
falado ser o grande ponto fraco do time.
No final do primeiro tempo de 35 minutos, o Delfim
vencia por 2 a 0. Um gol de cabeça de Leon, um gol contra do zagueiro do
Nacional, frangaço do goleiro. Leon se divertiu e humilhou vários adversários,
com dribles e bom lançamentos, aplicando um vistoso chapéu no lateral esquerdo
adversário.
O juiz, um cidadão importado por Celso Teles de
Florianópolis, onde era juiz profissional, deu um descanso maior, de 20 minutos
para os dois times. Quando eles voltaram a campo, havia duas substituições no
Nacional. Saída de Joãozinho, entrada de Pedro Bala, outro velocista emérito. E
saída de Luiz Barrilete, o rechonchudo do time, entrada de...CELSO TELES!
Celso Teles?! Sim era ele mesmo, com o uniforme
do Nacional. Será que jogava mesmo? E como ia se ver com o fôlego, depois de
correr como um doido apitando a primeira partida?
O que se viu nos 35 minutos seguintes, mais 4
de prorrogação, foi uma verdadeira aula de futebol. Leon aproveitou a primeira
chance a partiu com a bola para cima de Celso, envolvendo-o em um drible fácil.
Com o êxito, resolveu repetir a brincadeira. As meninas da torcida do Delfim
deliravam: Dá-lhe Leon!
Na terceira vez, a bola caiu entre ele e Celso,
mas o paulista dominou-a primeiro, passando-a do peito do pé para o calcanhar. E
aí deu o drible da vaca em Leon, que, ao se voltar, caiu de bunda no chão. A
galera explodiu em aplausos e gozações.
Leon ficou contrariado e esperou nova chance.
Assim que teve a bola, no meio do campo, marchou ostensivamente em direção a
Celso. Agora a coisa tinha virado disputa pessoal, a plateia numa expectativa
delirante, cada torcida aclamando o seu herói na guerra da bola.
Celso esperou que Leon chegasse, tomou-lhe a
bola com a maior facilidade, aplicou-lhe dois lençóis sucessivos e disparou
como uma flecha em direção ao gol, partindo do grande círculo central. Estavam
todos desconcentrados, todos parados para assistir o duelo inesperado entre os
dois líderes, Celso não encontrou ninguém no seu caminho que chegasse a tempo
de enfrentá-lo. Driblou o único zagueiro no caminho do gol e encobriu o goleiro
que saía desesperado. Fez o primeiro gol do Nacional na partida.
Leon passou a evitar o confronto com Celso e
concentrou-se no jogo coletivo. Mas, cinco minutos depois, Celso fez um
lançamento de trinta metros para a corrida de Bentinho. Era veloz demais para
ser superado na corrida, o lateral esquerdo do Delfim optou por derrubá-lo na
intermediária e levar o cartão amarelo. Celso pegou a bola para cobrar. A falta
era quase frontal, pouco depois da intermediária.
O goleiro, tranquilo com a distância, armou a
barreira com três jogadores. Quando a bola saiu do pé direito de Celso, ele
observou a trajetória e pulou para o lado esquerdo. Então, inexplicavelmente, a
bola fez uma curva maluca e foi alojar-se no ângulo do lado oposto, rente ao
travessão, lá onde a coruja dorme. Gol do Nacional, empate 2 a 2.
Mais algumas escaramuças e escanteio para o
Delfim. Sua jogada mais temível: os baixinhos do Nacional não tinham estatura
para pular junto com Leon e marcá-lo. Mais um gol de cabeça, 3 a 2 para o
Delfim.
Faltavam menos de 8 minutos para o final. Celso
distribuindo o jogo, com passes monumentais, desequilibrava a partida. Num
desses lançamentos, pegou Pedro Bala na intermediária. O homenzinho desatou a
correr como se tivesse um motor e chutou cara a cara com o bom goleiro Nando.
Empate: 3 a 3.
Leon começou a ficar preocupado. Aqueles cinco
mil, que eles já tinham resolvido entre si que seria todo investido em uísque
importado, estava em perigo agora. Precisava fazer uma jogada que garantisse a
vitória. Seu time estava claramente encolhido, com medo do paulista. Só ele
poderia resolver a coisa. Então foi para o tudo ou nada. Recebeu a bola do
goleiro na intermediária e avançou com ela dominada, outra vez ostensivamente
em direção a Celso Teles. Caprichou no seu melhor drible, mas Celso tinha
experiência demais, logo decodificou a jogada que viria e preparou o
contraveneno. Quando Leon passou e preparou a corrida triunfante, viu que a
bola tinha ficado com Celso.
Foi o paulista que disparou e, na intermediária,
aplicou outro drible da vaca, desta vez no gigantesco Aurélio, que não se
conformou e partiu no encalço do desgraçado. Alcançou-o com um violento chute
por trás, fazendo Celso rolar várias vezes no gramado. Levou cartão amarelo do
juiz. Mas levou cartão vermelho de Leon, o dono do time:
– Seu filho da puta, eu não disse que não
queria porrada em campo?! Não sabe perder, não, seu merda? Cai fora, você não
joga mais no Delfim, cansei do seu gênio, idiota.
Aurélio, furioso, partiu para cima de Leon. Mas
Celso, já em pé, derrubou-o com um simples tranca-pé e o segurou, ainda no chão
por trás:
– Que que é isso, companheiro? A gente está só
brincando. Trate de se acalmar ou vai ser pior pra você. Não vale a pena.
Mas já era tarde demais. O juiz, vendo a
tentativa de agressão de Aurélio a um atleta do seu próprio time, expulsou-o incontinenti.
Ele então resolveu partir para cima do juiz, que correu pelo campo, não tinha
nem idade nem físico para encarar aquele troglodita. Mas Celso já tinha feito
sinal para um homem que estava à beira do campo. Ele entrou correndo e
interceptou a corrida de Aurélio. E prostrou-o no chão com um violento soco no
estômago, seguido de um upper cut
profissional. O gigante loiro caiu se retorcendo e vomitando, quase desmaiado.
Mas ainda teve consciência para ouvir o rosnado daquele mulato imenso:
– Desta vez você escapa. Da próxima, já era!
Nunca mais se meta a machão nesta cidade, seu bosta!
Era Nicanor, o empreiteiro e ex-pugilista
profissional, que ergueu Aurélio do chão com a maior facilidade, como se ele
fosse um saco de penas, torceu-lhe o braço para trás e obrigou-a a caminhar
direto ao banheiro, enfiando-o debaixo do chuveiro gelado.
– Vai esfriar a cabeça, seu porcaria. E depois
some daqui, nunca mais aparece na minha frente.
No campo, ânimos serenados, Leon pedia
desculpas a Celso sem parar:
–Pô, foi mal cara, me desculpa. Eu já devia ter
tirado aquele ignorante do time há mais tempo, não é a primeira vez que ele
apronta, que dá uma de machão, só porque é forte como um touro.
– É, mas hoje ele encontrou um que é forte como
dois touros.
– Pois é rapaz, o homem é um armário também. Eu
achei ótimo ele ter surrado aquele idiota. Quem é o cara?
– É o Nicanor, meu empreiteiro, o cara que
construiu tudo o que você está vendo aqui. Mas vamos terminar a partida?
Conversaram com o juiz e o jogo recomeçou. Nova
cobrança de falta. Nova batida de Celso. Nova curva impossível seguida pela
bola, outra vez ela de um lado, o goleiro do outro. Gol do Nacional, 4 a 3.
Com um jogador a menos, o Delfim tratou de se
retrancar na defesa. Ainda bem que faltava tão pouco tempo para o fim do jogo. E o
juiz, apesar do longo tempo perdido com faltas, tentativa de agressão e
expulsão, corrida para salvar a pele e retirada do malogrado machão de campo, deu
só quatro minutos de prorrogação.
Mas, durante esta, mais um lançamento para
Bentinho, mais uma falta, mais uma cobrança de Celso, de fora da área, lado
direito. Desta vez o goleiro colocou cinco na barreira, mandando que todos
pulassem. Celso correu, o goleiro ficou estático sem escolher nenhum lado, a
bola passou pela barreira, fez aquela curva amaldiçoada, ilógica e foi se chocar
violentamente contra o travessão. No rebote, Bentinho fez o gol com a barriga.
O juiz validou: 5 a 3. Mas Celso Teles anulou:
– Nada disso, Bentinho. Você levou a bola com a
mão na frente da barriga, o juiz não podia ver. Mas eu vi. E o Nando aqui também
viu, com certeza, não é Nando?
O goleiro do Delfim confirmou:
– É, foi gol de Maradona, gol com a mão. O
senhor vai anular?
O juiz não só anulou o gol, como deu cartão
amarelo a Bentinho.
– Por conduta antidesportiva, Seu Bento.
Um minuto depois pediu a bola e fez soar o
apito final. Vitória do Nacional, 4 a 3.
As torcidas da várzea explodiram em uma
algazarra sem fim, invadiram o campo. Muitos só para tirar sarro dos jogadores
do Delfim. Todos corriam para Celso Teles, também. Mas
Leon Schlikmann alcançou-o primeiro e apertou-lhe a mão:
– Parabéns, cara, que vitória bonita. Sabe que
é a primeira vez que a gente perde um jogo aqui em Amarante? Puxa, você joga
demais. E todo esse fôlego depois de apitar o primeiro jogo. Você já foi
profissional, não foi?
– Fui, sim, já joguei no Mogi Mirim de São
Paulo, quando era bem garoto.
– E essa sua maneira de cobrar faltas? O que que
é isso?! É uma falta, um gol, é fatal! Como é que você consegue?
– Ah, isso é uma coisa antiga, tinha o nome de “Folha Seca”. Outra hora eu explico.
– Tá, promete. E eu queria agradecer porque
você livrou o meu nariz de ser esborrachado por aquele macaco branco. Que
susto, cara! Eu detesto violência, não sou bom de briga, nunca fui.
– Então eu queria agradecer também, porque você
demonstrou um incrível espírito esportivo. Você expulsou aquele imbecil que
quis me quebrar, quando o juiz não teve coragem de fazer isso.
Apertaram-se as mãos efusivamente e Leon ainda
falou, saindo para o vestiário:
CONTINUA
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