MILTON MACIEL
31 - UM CERTO FUSCA LARANJA
Fim do cap. 30: "No fim, negociando o preço com a própria gerente, o farmacêutico saiu feliz com 10% de desconto, já dirigindo seu carro novo, um Peugeot com apenas um ano de uso, que fizera o seu coração pular mais forte, amor à primeira vista. Aliás, ao primeiro prazo, pois parte do total foi rapidamente aprovado para financiamento em 12 meses.
Larissa teve a sua segunda comissão creditada
na mesma hora, viu que seu fusca e Maria Amália já podiam ser considerados
certezas em sua vida. Correu até a oficina para dar a boa nova para o padrinho.
E recebeu dele uma outra nova, tão boa ou melhor ainda: ali, no alto de um
elevador para carros, estava um fusca 1978, em adiantado estado de revisão.
– Comprei hoje cedo para você, minha filha, saí
antes da Gládis dar o corretivo naquele seu pai, perdi o bem bom. Eu já sabia
onde encontrar um fusca bem conservado e barato. Comprei e trouxe para cá, já
estamos revisando. Ia lhe fazer uma surpresa, mas você me apareceu aqui antes.
Gosta da cor? Ou quer que eu mande pintar de outra?
– Padrinho, que maravilha! Hoje é um dia
abençoado na minha vida! Parece que tudo o que há de bom resolveu se juntar a
desabar em cima de mim depois da desgraça de ontem à noite, lá em casa. Até o
meu fusquinha já está aqui. A cor não importa, padrinho, qualquer cor está boa,
eu só vou ver nele a cor da liberdade, a cor da felicidade. É o meu fusca! Eu
sonho com ele desde que tinha oito anos de idade, sempre foi o único carro que
eu quis ter na vida. Custou mito caro?
– Que nada, minha filha, mal arranhou aquele
cheque nosso do Neco Palhares. E eu nem mexi nele, paguei do meu, da minha
poupança mesmo.
– Pois então agora o padrinho sabe que eu tenho
não uma, mas duas comissões a receber, assim que sair, eu devolvo o seu
dinheiro correndo. E olhe, padrinho, é só a minha primeira semana como
vendedora do Celso, não é demais?
– É, sim, minha filha. Bendito Celso Teles, que
veio mudar tudo nas nossas vidas, meu anjo.
– Sim, padrinho. Sem ele a vida da gente seguia
na mesma, eu naquela casa de monstros, você na sua velha oficina caindo aos
pedaços. A gente sem Teles Automóveis, sem a venda da sua oficina, sem o seu
emprego, sem o seu salarião, sem o meu emprego, sem as minhas comissões. E, o
mais importante de tudo, a gente sem Gládis e Carmen De Rios, sem Jeniffer, sem
Paula. Ai, eu nem posso imaginar mais a minha vida sem elas.
– E certamente você não teria saído de casa,
não teria ido morar lá com elas, na Sonia Assad. E não teria o seu fusca.
– É padrinho, a gente ia continuar sendo
aqueles dois malas sem alça, perdidos naquele canto de Amarante, entre a mansão
suntuosa e maledeta de Valdemar Silva
e a sua casinha velha e abençoada, meu único porto seguro.
– Pois é, meu anjo, a gente era uma dupla sem
futuro. Estávamos presos num passado que não tinha solução possível. E então,
de repente, nos aparece esse moço de São Paulo e muda tudo em nossas vidas, em
dois meses apenas. E está mudando tudo em Amarante também.
– Sabe, padrinho, eu acho que há certas pessoas
que são iluminadas, elas são tão boas e tão altruístas, que vão espalhando o bem
por onde passam, é como se elas fizessem brotar a vida, a primavera, de solos
secos e estéreis. O Celso é assim, padrinho.
– Pois se é! Só pra dar um mais um exemplo,
você precisa ver como o bar do Bicalho progrediu graças ao Celso. Aquilo é
outra coisa agora, o movimento multiplicou sei lá por quanto, porque as pessoas
sabem que vão lá e vão encontrar o Celso pelas mesas, batendo papo com todo
mundo, como se fosse só um pobre qualquer deste mundo de Deus. E vai gente de
toda cidade só pra comer o tal bolinho de ovo dos paulistas, já tem outros bares
e restaurantes tratando de produzir o bolinho também.
– Puxa, padrinho, até isso! Até num bar pequeno
e sem importância como aquele. Que maravilha...
– Bom, mas espere ai, já montaram o que faltava
do seu fusca. Eu vou fazer sinal para descerem o elevador, quero ver você
entrar no seu carrinho. Venha comigo.
Momentos depois o carro desceu, saiu do
elevador e Fúlvio Rondelli entregou a chave para sua afilhada:
– É todo seu, pode entrar e dirigir, minha
filha. Mandei fazer o essencial para sua segurança: freios, pneus novos,
balanceamento de rodas e alinhamento de direção. Tem mais um monte de coisinhas
para fazer, mas nada grande nem importante. Todo dia você chega e deixa ele
aqui, que eu vou providenciando as coisas que faltam. Mas o fundamental está feito,
você pode botar esse carinho na estrada, que ele corresponde, não deixa você
correr nenhum perigo por falha mecânica ou dos pneus. Ah, eu já enchi o tanque,
esse é a gasolina, é claro.
Larissa entrou no seu carrinho com o coração
aos pulos, rindo feliz como nunca, mas com os olhos, é claro, espalhando
lágrimas pelo banco e pela roupa. Deus do céu, que dia feliz aquele!
Rondelli esperou que ela acionasse a chave de
ignição e sentou no banco do passageiro:
– Toca pra frente da loja, motorista! Vamos pro
estacionamento frontal. E aí você castiga Nessa buzina, que eu mudei também,
está com um tom maravilhoso agora, o original.
Larissa saiu pelo portão lateral da oficina,
contornou o quarteirão e entrou pela portaria central, fazendo sinal para o
surpreso guarda. Segundos depois, obedecendo a instrução de seu padrinho,
sentou o dedo na buzina e escutou o mais tradicional bee-bee de fusca, música
pura para os seus ouvidos.
Jeniffer e Carmen que estavam no saguão, corretaram
para fora ao observar quem estava dentro do carrinho barulhento: Rondelli e a Fofinha! Antes gritaram para Gládis e
Paula o que estavam vendo.
Pouco depois o fusquinha estava cercado por
quatro mulheres boquiabertas.
– Você de fusca, Fofinha? Depois daquele carrão... – disse Jeniffer.
– Daquele carrão que é daquele homem medonho,
Jeniffer. Este fusca é MEU, muito meu, é o meu primeiro carro na vida, o
padrinho comprou com o valor das minhas comissões. Eu estou morrendo de
felicidade. E de orgulho dele. Ele é fruto do meu trabalho e este é o meu
primeiro trabalho. Claro, “With a little help from my friends” – cantarolou,
muito alegre.
– Mas um fusca LARANJA, Fofinha?! Não é mais fácil amarrar uma melancia no pescoço, não? –
brincou Paula.
– Ah, a cor não importa, gente, pra mim tanto
faz. É a cor que o dono anterior mandou pintar, está ótimo. Está andando bem,
com toda a segurança e o que falta, coisinha pouca, o padrinho vai fazendo todo
dia um pouco.
Gládis manifestou-se então, toda risonha:
– Cai fora, Rondelli, você já andou de fusca.
Eu e as meninas não sabemos o que é isso acho que desde crianças. Por favor,
vai lá pro nosso departamento, fica um pouquinho lá, a gente vai andar de fusca
laranja em Amarante. Todas nós, não é mamita?
Você autoriza, não autoriza?
– Claro,
hijita, vamos lá. Eu vou na frente, você três que são mais jovens se
espremam atrás. Se aparecer cliente, Rondelli, por favor liga pro meu celular,
a gente volta correndo. Ops, pensando bem, já é praticamente hora do almoço. É
mais fácil eu liberar todo mundo um pouquinho mais cedo e gente volta mais
cedo. Rondelli, por favor, venha almoçar com a gente.
– Oba, eu vou sim. Onde?
– No bar do Bicalho! – gritou Larissa, toda
alvoroçada. Nunca entrei lá, morro de curiosidade. Hoje eu pago o bolinho de
ovo e o almoço pra todo mundo, agora eu sou uma mulher rica pela primeira vez
na vida.
– Bar do Bicalho! – gritaram as outras
mosqueteiras em uníssono. Tinham muito o que celebrar.
Quando elas desceram daquele impensável
fusquinha laranja, fazendo estardalhaço, todos ficaram admiradíssimos, Ali
estava um naipe de mulheres simplesmente fora de série, belíssimas; eram, sem
dúvida, as vendedoras da Teles Automóveis, cuja fama já corria a cidade há
muitos dias. Puxa, ELAS ali, no muquifo do Bicalho, lugar acostumado a receber
só gente simples como eles?
Mais admirado ficaram ao ver que uma das moças
era a mulher mais linda de Amarante, sua eterna Miss, que tinha uma enorme
bandagem no rostinho lindo. Também ali no Bicalho, todos já sabiam da estúpida
agressão sofrida por ela.
E mais excitados ficaram todos ao saberem que a
moça morena alta e gostosa, era a que tinha quebrado todo o agressor da própria
filha. Que coisa mais bem-feita, aquele maldito desgraçado todo rebentado,
passando pela vergonha maior de sua vida, apanhar feito cachorro louco de uma
mulher frágil e bonita. (Frágil?! Se eles
soubessem quem era aquela Gládis De Rios!...).
Surpreendiam-se ao ver a enorme alegria, a
euforia mesmo, daquelas cinco moças. Inclusive de Larissa Silva, que ria toda
contente, com a sua bandagem branca encobrindo o rosto certamente muito
machucado. E ela, a moça mais rica da cidade, tinha chegado dirigindo aquele velho
fusca laranja, que até então sabiam ser do cachaceiro do Antenor Pinga de Mel. Cada
coisa, que se vê, cada surpresa que se tem...
Surpresa maior ainda para Bicalho, quando, ao
ir atender as moças pessoalmente, ouviu o pedido da boca da própria Miss
Amarante:
– Bolinho de ovo pra todo mundo, Seu Bicalho.
Bastante. A gente está louca pra conhecer, nunca comeu. Depois, se sobrar
espaço, a gente pede mais alguma coisa.
Fúlvio Rondelli, que chegou à mesa delas
naquele momento, reforçou o mesmo pedido. Mais bolinho de ovo!
Bendito
japonesinho de Indaiatuba! – pensou Bicalho – Bendito bolinho de ovo! Desde vários dias atrás, o bolinho virara a
coqueluche de Amarante, já respondia sozinho por mais de 50% de todo o novo
movimento incrementado do bar. Sua cozinheira, a melhor comida de Amarante, não
dava mais vencimento, teve que colocar uma moleca de ajudante, uma moleca muito,
muito interessante, segundo o apetite desabrido do guloso Bicalho.
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Bem antes disso, quando Celso Teles saiu da sala da gerencia, era porque tinha
algo muito importante a fazer: zelar pela segurança de suas meninas mais
queridas: Larissa e Gládis. Ou seja, garantir que Valdemar Silva ficasse
contido como o animal selvagem que era. E fera contida é fera na jaula!
A jaula lhe parecia precária demais para um
animal tão rico quanto Silva: uma mera delegacia de polícia, com um velho
delegado que, comentavam todos, era venal e corrupto. Era óbvio que o Silva ia
usar todo o seu poderio econômico para contratar o melhor advogado
criminalista, coisa que não havia em Amarante. Era também óbvio que o tal
delegado iria facilitar as coisas para ele. Por isso seu primeiro passo, ao
sair da sala de Carmen, foi em direção à oficina. Precisava da ajuda de
Rondelli.
Rondelli estava lá, todo entusiasmado com o
fusquinha laranja que tinha acabado de comprar de Pinga de Mel e que ia revisar
para sua afilhada. Celso ficou admiradíssimo com a preferência dela, dispôs-se
a emprestar um carro zero para sua musa, por quanto tempo ela quisesse. Mas
Fúlvio Rondelli foi enfático na recusa, dizendo o quanto a sua menina sonhara a
vida toda com um carrinho como aquele, um humilde fusca, mas que fosse dela e
comprado com o resultado do trabalho dela.
Celso concordou, ficando ainda mais
impressionado com aquela garota tão diferente quanto adorável. Para algumas
coisas, uma criança grande; para outras, de uma maturidade impensável nela. Que
caráter! Andar de fusca velho, depois de dirigir um SUV enorme do ano, podendo
receber de graça um veículo novo da Teles Automóveis! E dizer que ia ter o
maior orgulho de andar de fusca velho! E a cor?! O carro era de um laranja
berrante, uma aberração incoerente, não tinha nada a ver com a classe e a distinção
de mulher mais bonita e elegante da cidade.
Quando falou isso para Rondelli, o italiano
caiu na gargalhada, dizendo que ia oferecer pintar o carrinho da cor que ela
quisesse, mas que, pelo que conhecia de sua menina, desconfiava que ela não
aceitaria, que não daria a mínima para a cor do automóvel.
Celso sacudiu a cabeça para os lados, aturdido.
Ah. Larissa, Larissa, sempre uma surpresa nova a cada dia! E a cada dia ele se
via mais e mais condenado a mais e mais amá-la !
Mas então lembrou-se do motivo
que o trouxera a Fúlvio:
– Italiano, eu vim aqui para ver o que você
sabe de advogados aqui em Amarante. E sobre o delegado Amaral. Acho que não
preciso dizer porque, não é?
– Claro, doutor. Eu pensei nisso também e
bastante, desde ontem. Então posso lhe dar as respostas sem que o senhor
precise gastar tempo com muitas perguntas. Em primeiro lugar, o delegado Otílio
Amaral é um pústula, um desonesto de marca maior, acho que se vende até por
palito de picolé e figurinha de álbum da Copa. Imagine a festa que não vai
fazer com a grana do filha da puta do Silva.
– Pois é, isso já é um problema e tanto.
– Em segundo lugar, aqui em Amarante não tem
advogado criminalista, que é o que o Silva está precisando. Então é claro que
ele vai mandar buscar o melhor advogado que encontrar na capital. E vai mandar
o advogado dele, o velho Aristides Lobo, atrás do sujeito. É só mais algumas
horas e o tal criminalista desaba aqui em Amarante e arranca um habeas corpus do juiz Trindade.
– E esse juiz como é? Também come na mão do Silva,
dos poderosos do lugar?
– Não, o Trindade até que é um homem bom, limpo
até prova em contrário. Mas acontece que o Silva tem outros meios de convencer
o homem a expedir o habeas corpus,
além do dinheiro.
– E quais meios seriam?
– Ameaças, doutor. Ameaça à integridade, ameaça
à família, aos netos do juiz, que são crianças pequenas. Esse mesmo Silva já
fez isso com o juiz anterior ao Dr. Trindade. Mas o homem era moço e duro na
queda e preferiu ir embora de repente com a família. Fugiu de Amarante, abandonou
a vara, mas não soltou o pistoleiro do Valdemar. Foi então que chegou tempos
depois, o Dr. Trindade. Vinha amargurado, transferido de uma vara da capital
para esta comarca inexpressiva, por perseguição política do grupo do novo
governador.
– E foi ele que deu liberdade ao jagunço do
Silva?
– Não, não foi preciso. Quem deu liberdade para
o sujeito foi o delegado Otílio Amaral.
Completamente ao arrepio da lei.
– O delegado corrupto? Mas como ele fez isso?
– Ah, doutor, como a vinda do novo juiz ia
demorar, Valdemar Silva optou pelo método antigo: mandou invadir a delegacia,
numa hora em que estava presente só o delegado. E o bando de homens mascarados
libertou o pistoleiro, deixando o delegado amarrado à sua cadeira. Naturalmente
o Otílio não pôde reconhecer os mascarados e disse que entrou em luta corporal
com muitos deles, mostrando sua camisa rasgada nas costas. E a coisa ficou por
isso mesmo, nunca houve investigação. Até porque não era necessária, o pistoleiro
sumiu para sempre, toda cidade sabia que aquilo era negócio entre o Silva e o
Amaral. E um negócio tão escancarado, feito tão na cara-de-pau, que o Amaral
mudou para uma casa de aluguel do Silva na mesma semana, ganhando escritura de
posse meses depois.
– Caramba, a coisa é ainda pior do que eu tinha
pensado!
CONTINUA
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