sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 31   
MILTON MACIEL  

31 - UM CERTO FUSCA LARANJA
Fim do cap. 30: "No fim, negociando o preço com a própria gerente, o farmacêutico saiu feliz com 10% de desconto, já dirigindo seu carro novo, um Peugeot com apenas um ano de uso, que fizera o seu coração pular mais forte, amor à primeira vista. Aliás, ao primeiro prazo, pois parte do total foi rapidamente aprovado para financiamento em 12 meses.

Larissa teve a sua segunda comissão creditada na mesma hora, viu que seu fusca e Maria Amália já podiam ser considerados certezas em sua vida. Correu até a oficina para dar a boa nova para o padrinho. E recebeu dele uma outra nova, tão boa ou melhor ainda: ali, no alto de um elevador para carros, estava um fusca 1978, em adiantado estado de revisão.

– Comprei hoje cedo para você, minha filha, saí antes da Gládis dar o corretivo naquele seu pai, perdi o bem bom. Eu já sabia onde encontrar um fusca bem conservado e barato. Comprei e trouxe para cá, já estamos revisando. Ia lhe fazer uma surpresa, mas você me apareceu aqui antes. Gosta da cor? Ou quer que eu mande pintar de outra?

– Padrinho, que maravilha! Hoje é um dia abençoado na minha vida! Parece que tudo o que há de bom resolveu se juntar a desabar em cima de mim depois da desgraça de ontem à noite, lá em casa. Até o meu fusquinha já está aqui. A cor não importa, padrinho, qualquer cor está boa, eu só vou ver nele a cor da liberdade, a cor da felicidade. É o meu fusca! Eu sonho com ele desde que tinha oito anos de idade, sempre foi o único carro que eu quis ter na vida. Custou mito caro?

– Que nada, minha filha, mal arranhou aquele cheque nosso do Neco Palhares. E eu nem mexi nele, paguei do meu, da minha poupança mesmo.

– Pois então agora o padrinho sabe que eu tenho não uma, mas duas comissões a receber, assim que sair, eu devolvo o seu dinheiro correndo. E olhe, padrinho, é só a minha primeira semana como vendedora do Celso, não é demais?

– É, sim, minha filha. Bendito Celso Teles, que veio mudar tudo nas nossas vidas, meu anjo.

– Sim, padrinho. Sem ele a vida da gente seguia na mesma, eu naquela casa de monstros, você na sua velha oficina caindo aos pedaços. A gente sem Teles Automóveis, sem a venda da sua oficina, sem o seu emprego, sem o seu salarião, sem o meu emprego, sem as minhas comissões. E, o mais importante de tudo, a gente sem Gládis e Carmen De Rios, sem Jeniffer, sem Paula. Ai, eu nem posso imaginar mais a minha vida sem elas.

– E certamente você não teria saído de casa, não teria ido morar lá com elas, na Sonia Assad. E não teria o seu fusca.

– É padrinho, a gente ia continuar sendo aqueles dois malas sem alça, perdidos naquele canto de Amarante, entre a mansão suntuosa e maledeta de Valdemar Silva e a sua casinha velha e abençoada, meu único porto seguro.

– Pois é, meu anjo, a gente era uma dupla sem futuro. Estávamos presos num passado que não tinha solução possível. E então, de repente, nos aparece esse moço de São Paulo e muda tudo em nossas vidas, em dois meses apenas. E está mudando tudo em Amarante também.

– Sabe, padrinho, eu acho que há certas pessoas que são iluminadas, elas são tão boas e tão altruístas, que vão espalhando o bem por onde passam, é como se elas fizessem brotar a vida, a primavera, de solos secos e estéreis. O Celso é assim, padrinho.

– Pois se é! Só pra dar um mais um exemplo, você precisa ver como o bar do Bicalho progrediu graças ao Celso. Aquilo é outra coisa agora, o movimento multiplicou sei lá por quanto, porque as pessoas sabem que vão lá e vão encontrar o Celso pelas mesas, batendo papo com todo mundo, como se fosse só um pobre qualquer deste mundo de Deus. E vai gente de toda cidade só pra comer o tal bolinho de ovo dos paulistas, já tem outros bares e restaurantes tratando de produzir o bolinho também.

– Puxa, padrinho, até isso! Até num bar pequeno e sem importância como aquele. Que maravilha...

– Bom, mas espere ai, já montaram o que faltava do seu fusca. Eu vou fazer sinal para descerem o elevador, quero ver você entrar no seu carrinho. Venha comigo.

Momentos depois o carro desceu, saiu do elevador e Fúlvio Rondelli entregou a chave para sua afilhada:

– É todo seu, pode entrar e dirigir, minha filha. Mandei fazer o essencial para sua segurança: freios, pneus novos, balanceamento de rodas e alinhamento de direção. Tem mais um monte de coisinhas para fazer, mas nada grande nem importante. Todo dia você chega e deixa ele aqui, que eu vou providenciando as coisas que faltam. Mas o fundamental está feito, você pode botar esse carinho na estrada, que ele corresponde, não deixa você correr nenhum perigo por falha mecânica ou dos pneus. Ah, eu já enchi o tanque, esse é a gasolina, é claro.

Larissa entrou no seu carrinho com o coração aos pulos, rindo feliz como nunca, mas com os olhos, é claro, espalhando lágrimas pelo banco e pela roupa. Deus do céu, que dia feliz aquele!

Rondelli esperou que ela acionasse a chave de ignição e sentou no banco do passageiro:

– Toca pra frente da loja, motorista! Vamos pro estacionamento frontal. E aí você castiga Nessa buzina, que eu mudei também, está com um tom maravilhoso agora, o original.

Larissa saiu pelo portão lateral da oficina, contornou o quarteirão e entrou pela portaria central, fazendo sinal para o surpreso guarda. Segundos depois, obedecendo a instrução de seu padrinho, sentou o dedo na buzina e escutou o mais tradicional bee-bee de fusca, música pura para os seus ouvidos. 

Jeniffer e Carmen que estavam no saguão, corretaram para fora ao observar quem estava dentro do carrinho barulhento: Rondelli e a Fofinha! Antes gritaram para Gládis e Paula o que estavam vendo.
Pouco depois o fusquinha estava cercado por quatro mulheres boquiabertas.

– Você de fusca, Fofinha? Depois daquele carrão... – disse Jeniffer.

– Daquele carrão que é daquele homem medonho, Jeniffer. Este fusca é MEU, muito meu, é o meu primeiro carro na vida, o padrinho comprou com o valor das minhas comissões. Eu estou morrendo de felicidade. E de orgulho dele. Ele é fruto do meu trabalho e este é o meu primeiro trabalho. Claro, “With a little help from my friends” – cantarolou, muito alegre. 

– Mas um fusca LARANJA, Fofinha?! Não é mais fácil amarrar uma melancia no pescoço, não? – brincou Paula.

– Ah, a cor não importa, gente, pra mim tanto faz. É a cor que o dono anterior mandou pintar, está ótimo. Está andando bem, com toda a segurança e o que falta, coisinha pouca, o padrinho vai fazendo todo dia um pouco.

Gládis manifestou-se então, toda risonha:

– Cai fora, Rondelli, você já andou de fusca. Eu e as meninas não sabemos o que é isso acho que desde crianças. Por favor, vai lá pro nosso departamento, fica um pouquinho lá, a gente vai andar de fusca laranja em Amarante. Todas nós, não é mamita? Você autoriza, não autoriza?

– Claro, hijita, vamos lá. Eu vou na frente, você três que são mais jovens se espremam atrás. Se aparecer cliente, Rondelli, por favor liga pro meu celular, a gente volta correndo. Ops, pensando bem, já é praticamente hora do almoço. É mais fácil eu liberar todo mundo um pouquinho mais cedo e gente volta mais cedo. Rondelli, por favor, venha almoçar com a gente.

– Oba, eu vou sim. Onde?

– No bar do Bicalho! – gritou Larissa, toda alvoroçada. Nunca entrei lá, morro de curiosidade. Hoje eu pago o bolinho de ovo e o almoço pra todo mundo, agora eu sou uma mulher rica pela primeira vez na vida.

– Bar do Bicalho! – gritaram as outras mosqueteiras em uníssono. Tinham muito o que celebrar.

Quando elas desceram daquele impensável fusquinha laranja, fazendo estardalhaço, todos ficaram admiradíssimos, Ali estava um naipe de mulheres simplesmente fora de série, belíssimas; eram, sem dúvida, as vendedoras da Teles Automóveis, cuja fama já corria a cidade há muitos dias. Puxa, ELAS ali, no muquifo do Bicalho, lugar acostumado a receber só gente simples como eles?

Mais admirado ficaram ao ver que uma das moças era a mulher mais linda de Amarante, sua eterna Miss, que tinha uma enorme bandagem no rostinho lindo. Também ali no Bicalho, todos já sabiam da estúpida agressão sofrida por ela.

E mais excitados ficaram todos ao saberem que a moça morena alta e gostosa, era a que tinha quebrado todo o agressor da própria filha. Que coisa mais bem-feita, aquele maldito desgraçado todo rebentado, passando pela vergonha maior de sua vida, apanhar feito cachorro louco de uma mulher frágil e bonita. (Frágil?! Se eles soubessem quem era aquela Gládis De Rios!...).

Surpreendiam-se ao ver a enorme alegria, a euforia mesmo, daquelas cinco moças. Inclusive de Larissa Silva, que ria toda contente, com a sua bandagem branca encobrindo o rosto certamente muito machucado. E ela, a moça mais rica da cidade, tinha chegado dirigindo aquele velho fusca laranja, que até então sabiam ser do cachaceiro do Antenor Pinga de Mel. Cada coisa, que se vê, cada surpresa que se tem...

Surpresa maior ainda para Bicalho, quando, ao ir atender as moças pessoalmente, ouviu o pedido da boca da própria Miss Amarante:

– Bolinho de ovo pra todo mundo, Seu Bicalho. Bastante. A gente está louca pra conhecer, nunca comeu. Depois, se sobrar espaço, a gente pede mais alguma coisa.

Fúlvio Rondelli, que chegou à mesa delas naquele momento, reforçou o mesmo pedido. Mais bolinho de ovo!

Bendito japonesinho de Indaiatuba! – pensou Bicalho – Bendito bolinho de ovo! Desde vários dias atrás, o bolinho virara a coqueluche de Amarante, já respondia sozinho por mais de 50% de todo o novo movimento incrementado do bar. Sua cozinheira, a melhor comida de Amarante, não dava mais vencimento, teve que colocar uma moleca de ajudante, uma moleca muito, muito interessante, segundo o apetite desabrido do guloso Bicalho.

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Bem antes disso, quando Celso Teles saiu da sala da gerencia, era porque tinha algo muito importante a fazer: zelar pela segurança de suas meninas mais queridas: Larissa e Gládis. Ou seja, garantir que Valdemar Silva ficasse contido como o animal selvagem que era. E fera contida é fera na jaula!

A jaula lhe parecia precária demais para um animal tão rico quanto Silva: uma mera delegacia de polícia, com um velho delegado que, comentavam todos, era venal e corrupto. Era óbvio que o Silva ia usar todo o seu poderio econômico para contratar o melhor advogado criminalista, coisa que não havia em Amarante. Era também óbvio que o tal delegado iria facilitar as coisas para ele. Por isso seu primeiro passo, ao sair da sala de Carmen, foi em direção à oficina. Precisava da ajuda de Rondelli.

Rondelli estava lá, todo entusiasmado com o fusquinha laranja que tinha acabado de comprar de Pinga de Mel e que ia revisar para sua afilhada. Celso ficou admiradíssimo com a preferência dela, dispôs-se a emprestar um carro zero para sua musa, por quanto tempo ela quisesse. Mas Fúlvio Rondelli foi enfático na recusa, dizendo o quanto a sua menina sonhara a vida toda com um carrinho como aquele, um humilde fusca, mas que fosse dela e comprado com o resultado do trabalho dela.

Celso concordou, ficando ainda mais impressionado com aquela garota tão diferente quanto adorável. Para algumas coisas, uma criança grande; para outras, de uma maturidade impensável nela. Que caráter! Andar de fusca velho, depois de dirigir um SUV enorme do ano, podendo receber de graça um veículo novo da Teles Automóveis! E dizer que ia ter o maior orgulho de andar de fusca velho! E a cor?! O carro era de um laranja berrante, uma aberração incoerente, não tinha nada a ver com a classe e a distinção de mulher mais bonita e elegante da cidade.

Quando falou isso para Rondelli, o italiano caiu na gargalhada, dizendo que ia oferecer pintar o carrinho da cor que ela quisesse, mas que, pelo que conhecia de sua menina, desconfiava que ela não aceitaria, que não daria a mínima para a cor do automóvel.

Celso sacudiu a cabeça para os lados, aturdido. Ah. Larissa, Larissa, sempre uma surpresa nova a cada dia! E a cada dia ele se via mais e mais condenado a mais e mais amá-la ! 

Mas então lembrou-se do motivo que o trouxera a Fúlvio:

– Italiano, eu vim aqui para ver o que você sabe de advogados aqui em Amarante. E sobre o delegado Amaral. Acho que não preciso dizer porque, não é?

– Claro, doutor. Eu pensei nisso também e bastante, desde ontem. Então posso lhe dar as respostas sem que o senhor precise gastar tempo com muitas perguntas. Em primeiro lugar, o delegado Otílio Amaral é um pústula, um desonesto de marca maior, acho que se vende até por palito de picolé e figurinha de álbum da Copa. Imagine a festa que não vai fazer com a grana do filha da puta do Silva.

– Pois é, isso já é um problema e tanto.

– Em segundo lugar, aqui em Amarante não tem advogado criminalista, que é o que o Silva está precisando. Então é claro que ele vai mandar buscar o melhor advogado que encontrar na capital. E vai mandar o advogado dele, o velho Aristides Lobo, atrás do sujeito. É só mais algumas horas e o tal criminalista desaba aqui em Amarante e arranca um habeas corpus do juiz Trindade.

– E esse juiz como é? Também come na mão do Silva, dos poderosos do lugar?

– Não, o Trindade até que é um homem bom, limpo até prova em contrário. Mas acontece que o Silva tem outros meios de convencer o homem a expedir o habeas corpus, além do dinheiro.

– E quais meios seriam?

– Ameaças, doutor. Ameaça à integridade, ameaça à família, aos netos do juiz, que são crianças pequenas. Esse mesmo Silva já fez isso com o juiz anterior ao Dr. Trindade. Mas o homem era moço e duro na queda e preferiu ir embora de repente com a família. Fugiu de Amarante, abandonou a vara, mas não soltou o pistoleiro do Valdemar. Foi então que chegou tempos depois, o Dr. Trindade. Vinha amargurado, transferido de uma vara da capital para esta comarca inexpressiva, por perseguição política do grupo do novo governador.

– E foi ele que deu liberdade ao jagunço do Silva?

– Não, não foi preciso. Quem deu liberdade para o sujeito foi o delegado Otílio Amaral.  Completamente ao arrepio da lei.

– O delegado corrupto? Mas como ele fez isso?

– Ah, doutor, como a vinda do novo juiz ia demorar, Valdemar Silva optou pelo método antigo: mandou invadir a delegacia, numa hora em que estava presente só o delegado. E o bando de homens mascarados libertou o pistoleiro, deixando o delegado amarrado à sua cadeira. Naturalmente o Otílio não pôde reconhecer os mascarados e disse que entrou em luta corporal com muitos deles, mostrando sua camisa rasgada nas costas. E a coisa ficou por isso mesmo, nunca houve investigação. Até porque não era necessária, o pistoleiro sumiu para sempre, toda cidade sabia que aquilo era negócio entre o Silva e o Amaral. E um negócio tão escancarado, feito tão na cara-de-pau, que o Amaral mudou para uma casa de aluguel do Silva na mesma semana, ganhando escritura de posse meses depois.

– Caramba, a coisa é ainda pior do que eu tinha pensado!

CONTINUA

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