terça-feira, 10 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 3  
MILTON MACIEL 

3 – UM EMPREGO
Quando chegou ao estacionamento, havia alguém encostado em seu carro.
E era ELA!  (fim do capítulo 2)

Agora mais tranquilo, Celso limitou-se a olhar para a moça, interroga-tivamente. Ainda achava que, diferentemente das outras, ela estava ali por outra razão que não o interesse nele como homem. Não errou. A Miss Universo falou mansamente:

– Oi, não estranhe, mas eu vim aqui para falar com o senhor diretamente. Desculpe se eu for importuna, mas o senhor é a minha única esperança agora.

Bem, estava evidente que a loira não vinha em busca do ai-jesus das solteiras de Amarante. Ela queria outra coisa. E ela o tratava respeitosamente de senhor, o que deu a Celso a certeza de que ela o considerava um homem... velho demais para ela! Facho baixo, crista murcha, preparando-se para ouvir uma colegial falando a seu vovozão, Celso disse-lhe:

– Pois não, moça. Diga o que quer e eu vejo se posso lhe atender.

Larissa hesitou um pouco, baixou os faróis azuis água marinha para o chão, pareceu realmente embaraçada.

– Bem, o Fúlvio me disse que o senhor é um grande empresário e que vai abrir um concessionaria de automóveis aqui em Amarante. Ele é nosso vizinho e meu amigo desde que eu era criancinha. Eu posso lhe dizer que ele está muito feliz, feliz demais, por ter conseguido fazer esse negócio com o senhor e virar seu empregado.

– O Fúlvio é mesmo um grande sujeito, eu gosto muito dele.

– E ele do senhor. Ele me falou tão bem do senhor que eu acabei tomando coragem de vir aqui conversar com o senhor. O Fúlvio não sabe disso, eu não tive coragem de contar para ele, acho que ele podia mandar contra.

– Ora, e por que ele o faria?

– Ah, na certa ele ia considerar muita ousadia da minha parte...

Os olhos azuis água marinha pousavam plácida e timidamente nos olhos do homem à sua frente. Celso estranhou a tranquilidade de sua própria atitude agora. Uma vez que a deusa loira nunca teria nele aquele interesse que ela tivera nela – que ele e toda a torcida masculina do Flamengo e do Corinthians teriam também – então não havia mais porque ficar em tumulto. Retomou seu normal pragmático, postou-se como um homem maduro de meia idade, um empresário, e estimulou a jovem a esclarecer o que queria:

– Bem, pode ficar tranquila, eu não vou considerar ousadia. Diga então, claramente, o que precisa de mim.

Larissa voltou a olhar o chão, inspirou fundo, ganhou coragem e voltou a encará-lo, falando com um fio de voz, quase inaudível:

– Um emprego...

– Um o que? ...

– Um emprego – agora a voz saia mais firme, embora fosse evidente o embaraço da moça, que corou visivelmente.

– Um emprego?! Mas para fazer o que, exatamente, na minha empresa?

– Bom, eu já trabalhei como free lancer em dois salões do automóvel, em Joinville e em Florianópolis, tempos atrás. Me saí muito bem, o clientes se interessavam pelos carros e...

Se interessavam por você, Miss Universo! – pensou o empresário. Mas não deixava de ser uma boa ideia ter alguém assim na Concessionária, uma joia ornamentada com duas águas marinhas, para atrair a clientela masculina. Contudo, a loirinha era também um perigo – e dos grandes – para ele. Agora mesmo, ao imaginar que poderia estar com ela todos os dias, Celso temeu que isso fosse mexer muito com ele, como o fizera há coisa de uma hora atrás, lá dentro da academia. Saiu de seu devaneio ao perceber o nervosismo da voz entrecortada da moça:

– Foi muita coisa, não é? Quer dizer, muita ousadia, não?

– Não, sinceramente não foi.

– Mas é uma coisa sem pé nem cabeça, o senhor não acha?

– Só se for para você. De minha parte, devo lhe confessar que eu gostei da ideia.

– Gostou!!! – a moça deu um tal grito que atraiu logo a atenção de Célia e das outras colegas que saiam da academia naquele momento. Mas ela e Celso voltaram as costas às outras garotas e continuaram a conversa em voz bem mais baixa, para não serem ouvidos por mais ninguém.

– Gostei, sim. Creio que você poderia ser uma aquisição interessante para nossa equipe. A propósito, o Fúlvio também me falou bem de você. Ontem mesmo.

– Falou, é? Ah, ele é um amor, é meu anjo protetor.

– Interessante, ele chama você de anjo loiro.

– Eu sei, sempre foi assim. Só não sei onde ele foi ver um anjo em mim. Mas são manias dele. Ao senhor, ele só chama de doutor, tanto que eu pensei que fosse advogado ou médico.

– É, você disse tudo: são manias dele. Eu não sou doutor em nada, nem nunca fiz faculdade alguma.

– Eu sou agrônoma formada. Mas nunca exerci.

Celso se fez de desentendido e perguntou:

– Ah, nunca trabalhou como agrônoma? Mas por que razão?

Larissa voltou a corar energicamente. Olhou para o chão daquele jeito tão seu e, quando ergueu os olhos novamente, o rapaz viu que havia neles o brilho tênue de duas quase-lágrimas. Imediatamente arrependeu-se da pergunta. Era evidente que a menina tinha vergonha ou uma dor especial por causa dessa sua realidade.

– Ah, é uma coisa complicada, outra vez eu vejo se tenho coragem de lhe contar. O fato é que eu desisti de procurar trabalho como agrônoma. Mas agora, quando soube do senhor e de sua empresa, me veio esta ideia maluca, esta ânsia de poder trabalhar em qualquer coisa que fosse útil ao senhor e sua firma, que me permitisse sair da mesmice, da vida chata e sem valor que eu levo. Se o senhor me aceitar, não sei como lhe agradecer, vai ser o maior acontecimento do ano para mim.

Celso sentiu-se condoer pela situação daquela criatura tão meiga à sua frente. Sim podia defini-la agora, depois de uma conversa de uns poucos minutos, como uma pessoa meiga, delicada, certamente muito sensível. E que vivia emparedada entre as muralhas de duas famílias ricas e o fantasma de sua própria beleza extrema.  Comovido, considerou que não podia deixar de estender a mão àquela que era a última que poderia ter considerado antes como uma náufraga. Que se danasse o medo que sentia da garota! Ele haveria de se controlar e de se blindar contra os encantos do anjo loiro. Seria sua funcionária e colega, nunca sua amada. Paciência. A vida continua:

– Pois bem, de minha parte está tudo certo, aceito contratar você para trabalhar no salão de exposição e venda de automóveis. Quanto aos seus vencimentos...

Não pode concluir a frase, pois a jovem agarrou suas duas mãos entre as suas e as apertou com muita força. Celso percebeu que as mãos delicadas tremiam:

– Bendito seja, doutor! – ela copiava Fúlvio! – Bendito, bendito, bendito! O senhor não pode imaginar como isso é importante pra mim – e as gemas de água marinha desta vez se encheram tanto de lágrimas que elas verteram copiosas sobre o rosto perfeito.

Celso voltou a ficar perturbado, era impossível não reagir assim ao toque daquelas mãos sobre as suas, ao perfume suave que vinha da garota, à constatação que ele, sem esperar, iria se tornar uma espécie de anjo para o anjo, o anjinho loiro que se debulhava em lágrimas de emoção à sua frente.

– Olhe, eu fico feliz de saber que esse emprego é tão importante assim para sua vida. Agora, quanto ao salário e às comissões...

– Não têm a menor importância, doutor! O senhor paga o que quiser, quando quiser. O que eu preciso é o emprego, a ocupação, a oportunidade de trabalhar e de ser útil, de sair de casa e ter responsabilidades fora. Eu preciso é do emprego, não do dinheiro.

Celso percebeu-se ainda trêmulo internamente, ia ser duro não se deixar estremecer ante essa mulher tão diferente, tão especial. Lembrou-se de Fúlvio e pensou em Carmen Maria e sua equipe. Logo estariam ali em Amarante, entregaria o anjo loiro aos cuidados delas, manteria uma prudente distância. Mas enquanto as moças de Ribeirão preto não chegavam, seu porto seguro, na emergência, haveria de ser Fúlvio Rondelli. Ele que cuidasse do seu anjinho loiro enquanto isso.

– Olhe, moça. Vamos fazer assim: eu levo mais umas semanas até poder inaugurar a loja e a oficina. Aliás, a oficina, a bem dizer, já está pronta, sob a batuta do Fúlvio. Então, enquanto a gente ainda não está com tudo pronto, enquanto o resto do pessoal e dos automóveis ainda não chegou, penso entregá-la nas mãos de seu anjo protetor. Vou encarregar o Fúlvio de lhe mostrar tudo na firma, de lhe dar os primeiros treinamentos, de lhe ensinar muita coisa sobre automóveis.

– Que demais! O meu padrinho!

– Ah, ele é seu padrinho, é? Eu não sabia.

– Ele não é! Mas eu considero como se fosse. E é como eu o chamo: padrinho. Ele não tem as suas manias de chamar as pessoas, não chama o senhor de doutor, não me chama de anjinho loiro? Pois eu o chamo de padrinho e ponto final.

– Então estamos acertados preliminarmente, moça. Eu vou para a empresa agora, e já aviso o Fúlvio da nova missão dele. Claro que ele vai ficar todo bobo, todo feliz.

– O que é claro é que ele vai me considerar a maior cara-de-pau. Nunca que ele ia imaginar que eu fosse capaz de tomar esta iniciativa, vir falar com o senhor aqui, atrapalhar a sua ginástica. Para falar a verdade, nem eu acredito que eu tive essa audácia. E o mais incrível, o que parece até mentira ainda pra mim, é que o senhor concordou, que o senhor me aceitou. E que vai me entregar justamente aos cuidados do meu padrinho.

O anjo loiro pareceu ter tido uma nova ideia, baixou os olhos outra vez – Celso já sabia agora que aquilo queria dizer medo de falar algo inconveniente – depois encarou-o novamente e perguntou:

– O senhor vai agora para a firma? Posso ir junto, eu sigo o senhor com o meu carro e já dou a boa notícia pro padrinho pessoalmente. Ai, por favor, eu não me aguento, preciso falar disso com alguém! E, por enquanto, ele é a única pessoa a quem eu posso falar isso.

Celso percebeu na hora o que a moça ocultava: Sim, sua família, é claro! O velho quadrado, que acha que lugar de mulher é em casa, a velha dondoca que não quer a filha, aspirante a nobre via casamento de conveniência, sujando as botas de lama ou trabalhando em outra coisa qualquer. Sim, pobre garota, ela ia ter uma batalha cruel pela frente. Ainda bem que, ao menos por ora, estava rompida com o “sempre noivo”, senão ia ter que encarar de imediato também a carga dos barões feudais da nobreza falida. Teve certeza do que pensava quando a moça lhe pediu, oura vez toda embaraçada e mais uma vez muito vermelha:

– Será que eu podia pedir um outro grande favor ao senhor? Que o senhor não comente nada por enquanto com ninguém, sobre o emprego. Pra não dar azar, olho gordo, sabe como é. Eu imagino que o senhor não acredita nisso, mas por favor...

– Pode deixar, moça. Eu não comento com ninguém além do Fúlvio, então.

E pensou: Pobrezinha, está tendo que mentir para mim, é lógico que nem ela deve acreditar nesse tal de olho gordo. Só se for o olho gordo do velho Valdemar, de olho no sobrenome dos Schlikmann. É, a batalha para ela vai ser mesmo dura... Precisava conversar com o padrinho, para ver se havia algum modo de ajudarem o anjo nessa guerra.

Então lembrou do pedido dela e disse que sim, que ela poderia segui-lo até à empresa. Entraram em seus respectivos carros, o dele o Toyota Corolla, o dela uma impressionante SUV enorme, e partiram rumo à Revenda.

Dentro do Corolla, um Celso receoso considerava se não tinha cometido um grave erro. A moça partiria para sua batalha pessoal contra a família e, se vencesse, encontraria na Revenda o campo ideal para ser feliz. Já ele teria uma batalha ainda mais difícil: teria que se defender contra o sentimento que aquela criatura maravilhosa lhe inspirava e que ele receava que estivesse crescendo já, descontroladamente, dentro de si. A última das coisas que ele podia querer agora e, no entanto, algo que parecia desabar, inexorável, sobre ele.

Sim, ele tinha se metido em camisa de onze varas! A lembrança das lágrimas nos olhos de água marinha encheram todo o espaço de sua memória, ocuparam todo o interior do Toyota, todo o volume vazio e morto que existia em seu coração.

Ah, Celso Romano Teles, você continua o mesmo! Tem uma couraça rígida por fora, para encarar as pessoas no mundo dos negócios. Mas continua desarticulado, frágil, indefeso nas coisas do coração. Esse era e continuava sendo seu grande calcanhar de Aquiles, cara! ...

Possivelmente tinha começado, minutos atrás, mais um percurso que o levaria a apaixonar-se tolamente, a sofrer desilusões amorosas, como as que amargara na Europa, como a mais cruel de todas, que o detonara por dentro lá em Sertãozinho, causada pela hoje ex-esposa.

Aquele rostinho mimoso, no auto atrás do seu, irradiando felicidade, talvez fosse o arauto de muito sofrimento para ele. Sim, a esta altura ele tinha certeza absoluta que não resistiria ao convívio com os poderes do anjo loiro sem sucumbir. Ele era fraco demais, exatamente fraco demais nas coisas do coração.

Acelerou um pouco mais o Toyota, querendo chegar logo e entregar o anjo para o padrinho. Depois, talvez antecipasse sua viagem para Ribeirão Preto, a pretexto de acelerar os preparativos da mudança da Revenda de lá para Amarante. Na verdade, tudo o que precisava agora era fugir rapidamente do anjo loiro.

Ao chegarem, mal desceu do carro pediu para lhe chamarem Fúlvio Rondelli. Assim que ele apareceu, encarregou o anjo de contar toda a história ao padrinho e tratou de se mandar dali. Voltou a entrar no carro e foi para o grande terreno, onde as primeiras máquinas já estavam trabalhando na terraplanagem e abertura de valas para alicerces.

Outras chegariam ainda esta semana e começariam a escavar os buracos para as piscinas. E a preparar o terreno para aquilo que era o mais importante de tudo, a verdadeira razão de sua presença ali em Amarante, o espaço mágico para a realização de seu sonho mais caro de profissional. Conversando com os trabalhadores das obras, caminhando pelo amplo terreno, vendo as máquinas enormes engolindo e cuspindo terra, os caminhões trazendo e levando materiais, sentiu seu tumulto interno se acalmar.

Sim, ali estava a mais esplêndida realidade de sua vida tomando corpo. Ali, e não na revenda, que era um bom negócio, sem dúvida, mas que não lhe falava ao coração como aquele projeto que ele conseguia vislumbrar completo e inteiro ao olhar aquele monte de buracos e aquelas montanhas de terra, areia e saibro.

Para isso ele tinha vindo, para realizar seu sonho de menino solitário nos campos de gelo da Europa e da Arábia. Para isso e não para se enrolar todo com uma Miss Universo tão irresistível quanto inacessível, não para sofrer amando em silêncio uma deusa que nunca o iria aceitar como seu homem. Para ela, ele seria sempre o senhor, o doutor, o patrão, o chefe velho, o vovozão.

Não, precisa se livrar urgentemente desse sentimento traiçoeiro que teimava em se erguer dentro dele. Deixou a obra, foi para casa, fez sua mala e ligou para Fúlvio, explicando que um chamado de emergência exigia sua presença em Ribeirão Preto. Saindo de casa, dirigiria diretamente para Navegantes, de onde pegaria um avião para Congonhas e, dali, outro para Ribeirão Preto.

O italiano estava esfuziante, a notícia que seu anjinho lhe dera o tinha levado literalmente ao paraíso. Comentou todo entusiasmado como sua menina estava ficando corajosa, como o havia surpreendido com sua iniciativa, como ficara feliz com a concordância por parte do doutor. E, ao término da conversa, fez algo para o que Celso não estava nem um pouco preparado:

– Escute só, doutor. Escute só.

No instante seguinte, aquela voz melodiosa, a típica ‘voz de mormaço’ irrompeu do telefone dele: Era ELA de novo!

– Ai, doutor, eu não queria deixar de lhe dizer como eu estou feliz. E como o senhor é legal, bacana, generoso, tudo aquilo que o padrinho diz do senhor e muito mais. Vá com Deus, faça uma ótima viagem. Mas volte logo, por favor.

Celso mal gaguejou uma resposta, atônito, enquanto a moça desligava lá na Revenda.

Mas volte logo, por favor... Volte logo, por favor... Volte logo, por favor... E ele não conseguia parar de repetir essa frase para si mesmo. Repetiu-a incontáveis vezes na estrada, a caminho de Navegantes. Repetiu-a nos aviões, repetiu-as inúmeras vezes em Ribeirão Preto.

E ali, incoerência das incoerências, ele que tinha vindo para Ribeirão sem necessidade, antes do tempo, só para fugir da menina, passou a desejar, o tempo todo, voltar rapidamente para Amarante.


Sim, estava fisgado, irremediavelmente fisgado. O peixe morre pela boca, ele morrera pela boca ao dizer que aceitava contratar o anjo. Agora era tarde demais, tarde demais. Estava efetivamente fisgado! E tudo o que queria era fazer o mais rapidamente possível o percurso de volta para Amarante. Que belo fujão que ele era!

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