MILTON MACIEL
3 – UM EMPREGO
Quando chegou ao estacionamento, havia alguém encostado em seu carro.
E era ELA! (fim do capítulo 2)
Agora mais tranquilo,
Celso limitou-se a olhar para a moça, interroga-tivamente. Ainda achava que,
diferentemente das outras, ela estava ali por outra razão que não o interesse
nele como homem. Não errou. A Miss Universo falou mansamente:
– Oi, não estranhe, mas
eu vim aqui para falar com o senhor diretamente. Desculpe se eu for importuna,
mas o senhor é a minha única esperança agora.
Bem, estava evidente que
a loira não vinha em busca do ai-jesus das solteiras de Amarante. Ela queria
outra coisa. E ela o tratava respeitosamente de senhor, o que deu a Celso a
certeza de que ela o considerava um homem... velho demais para ela! Facho baixo,
crista murcha, preparando-se para ouvir uma colegial falando a seu vovozão,
Celso disse-lhe:
– Pois não, moça. Diga o
que quer e eu vejo se posso lhe atender.
Larissa hesitou um pouco,
baixou os faróis azuis água marinha para o chão, pareceu realmente embaraçada.
– Bem, o Fúlvio me disse
que o senhor é um grande empresário e que vai abrir um concessionaria de
automóveis aqui em Amarante. Ele é nosso vizinho e meu amigo desde que eu era
criancinha. Eu posso lhe dizer que ele está muito feliz, feliz demais, por ter
conseguido fazer esse negócio com o senhor e virar seu empregado.
– O Fúlvio é mesmo um
grande sujeito, eu gosto muito dele.
– E ele do senhor. Ele me
falou tão bem do senhor que eu acabei tomando coragem de vir aqui conversar com
o senhor. O Fúlvio não sabe disso, eu não tive coragem de contar para ele, acho
que ele podia mandar contra.
– Ora, e por que ele o
faria?
– Ah, na certa ele ia
considerar muita ousadia da minha parte...
Os olhos azuis água
marinha pousavam plácida e timidamente nos olhos do homem à sua frente. Celso
estranhou a tranquilidade de sua própria atitude agora. Uma vez que a deusa
loira nunca teria nele aquele interesse que ela tivera nela – que ele e toda a
torcida masculina do Flamengo e do Corinthians teriam também – então não havia
mais porque ficar em tumulto. Retomou seu normal pragmático, postou-se como um homem
maduro de meia idade, um empresário, e estimulou a jovem a esclarecer o que
queria:
– Bem, pode ficar
tranquila, eu não vou considerar ousadia. Diga então, claramente, o que precisa
de mim.
Larissa voltou a olhar o
chão, inspirou fundo, ganhou coragem e voltou a encará-lo, falando com um fio
de voz, quase inaudível:
– Um emprego...
– Um o que? ...
– Um emprego – agora a
voz saia mais firme, embora fosse evidente o embaraço da moça, que corou visivelmente.
– Um emprego?! Mas para
fazer o que, exatamente, na minha empresa?
– Bom, eu já trabalhei
como free lancer em dois salões do
automóvel, em Joinville e em Florianópolis, tempos atrás. Me saí muito bem, o
clientes se interessavam pelos carros e...
Se
interessavam por você, Miss Universo! – pensou o empresário.
Mas não deixava de ser uma boa ideia ter alguém assim na Concessionária, uma
joia ornamentada com duas águas marinhas, para atrair a clientela masculina.
Contudo, a loirinha era também um perigo – e dos grandes – para ele. Agora
mesmo, ao imaginar que poderia estar com ela todos os dias, Celso temeu que
isso fosse mexer muito com ele, como o fizera há coisa de uma hora atrás, lá
dentro da academia. Saiu de seu devaneio ao perceber o nervosismo da voz
entrecortada da moça:
– Foi muita coisa, não é?
Quer dizer, muita ousadia, não?
– Não, sinceramente não
foi.
– Mas é uma coisa sem pé
nem cabeça, o senhor não acha?
– Só se for para você. De
minha parte, devo lhe confessar que eu gostei da ideia.
– Gostou!!! – a moça deu
um tal grito que atraiu logo a atenção de Célia e das outras colegas que saiam
da academia naquele momento. Mas ela e Celso voltaram as costas às outras
garotas e continuaram a conversa em voz bem mais baixa, para não serem ouvidos
por mais ninguém.
– Gostei, sim. Creio que
você poderia ser uma aquisição interessante para nossa equipe. A propósito, o
Fúlvio também me falou bem de você. Ontem mesmo.
– Falou, é? Ah, ele é um
amor, é meu anjo protetor.
– Interessante, ele chama
você de anjo loiro.
– Eu sei, sempre foi
assim. Só não sei onde ele foi ver um anjo em mim. Mas são manias dele. Ao
senhor, ele só chama de doutor, tanto que eu pensei que fosse advogado ou
médico.
– É, você disse tudo: são
manias dele. Eu não sou doutor em nada, nem nunca fiz faculdade alguma.
– Eu sou agrônoma formada.
Mas nunca exerci.
Celso se fez de
desentendido e perguntou:
– Ah, nunca trabalhou
como agrônoma? Mas por que razão?
Larissa voltou a corar
energicamente. Olhou para o chão daquele jeito tão seu e, quando ergueu os
olhos novamente, o rapaz viu que havia neles o brilho tênue de duas quase-lágrimas.
Imediatamente arrependeu-se da pergunta. Era evidente que a menina tinha
vergonha ou uma dor especial por causa dessa sua realidade.
– Ah, é uma coisa
complicada, outra vez eu vejo se tenho coragem de lhe contar. O fato é que eu
desisti de procurar trabalho como agrônoma. Mas agora, quando soube do senhor e
de sua empresa, me veio esta ideia maluca, esta ânsia de poder trabalhar em
qualquer coisa que fosse útil ao senhor e sua firma, que me permitisse sair da
mesmice, da vida chata e sem valor que eu levo. Se o senhor me aceitar, não sei
como lhe agradecer, vai ser o maior acontecimento do ano para mim.
Celso sentiu-se condoer
pela situação daquela criatura tão meiga à sua frente. Sim podia defini-la
agora, depois de uma conversa de uns poucos minutos, como uma pessoa meiga,
delicada, certamente muito sensível. E que vivia emparedada entre as muralhas
de duas famílias ricas e o fantasma de sua própria beleza extrema. Comovido, considerou que não podia deixar de
estender a mão àquela que era a última que poderia ter considerado antes como
uma náufraga. Que se danasse o medo que sentia da garota! Ele haveria de se
controlar e de se blindar contra os encantos do anjo loiro. Seria sua
funcionária e colega, nunca sua amada. Paciência. A vida continua:
– Pois bem, de minha
parte está tudo certo, aceito contratar você para trabalhar no salão de
exposição e venda de automóveis. Quanto aos seus vencimentos...
Não pode concluir a
frase, pois a jovem agarrou suas duas mãos entre as suas e as apertou com muita
força. Celso percebeu que as mãos delicadas tremiam:
– Bendito seja, doutor! –
ela copiava Fúlvio! – Bendito, bendito, bendito! O senhor não pode imaginar
como isso é importante pra mim – e as gemas de água marinha desta vez se
encheram tanto de lágrimas que elas verteram copiosas sobre o rosto perfeito.
Celso voltou a ficar
perturbado, era impossível não reagir assim ao toque daquelas mãos sobre as
suas, ao perfume suave que vinha da garota, à constatação que ele, sem esperar,
iria se tornar uma espécie de anjo para o anjo, o anjinho loiro que se
debulhava em lágrimas de emoção à sua frente.
– Olhe, eu fico feliz de
saber que esse emprego é tão importante assim para sua vida. Agora, quanto ao
salário e às comissões...
– Não têm a menor
importância, doutor! O senhor paga o que quiser, quando quiser. O que eu
preciso é o emprego, a ocupação, a oportunidade de trabalhar e de ser útil, de
sair de casa e ter responsabilidades fora. Eu preciso é do emprego, não do
dinheiro.
Celso percebeu-se ainda
trêmulo internamente, ia ser duro não se deixar estremecer ante essa mulher tão
diferente, tão especial. Lembrou-se de Fúlvio e pensou em Carmen Maria e sua
equipe. Logo estariam ali em Amarante, entregaria o anjo loiro aos cuidados delas,
manteria uma prudente distância. Mas enquanto as moças de Ribeirão preto não
chegavam, seu porto seguro, na emergência, haveria de ser Fúlvio Rondelli. Ele
que cuidasse do seu anjinho loiro enquanto isso.
– Olhe, moça. Vamos fazer
assim: eu levo mais umas semanas até poder inaugurar a loja e a oficina. Aliás,
a oficina, a bem dizer, já está pronta, sob a batuta do Fúlvio. Então, enquanto
a gente ainda não está com tudo pronto, enquanto o resto do pessoal e dos
automóveis ainda não chegou, penso entregá-la nas mãos de seu anjo protetor.
Vou encarregar o Fúlvio de lhe mostrar tudo na firma, de lhe dar os primeiros
treinamentos, de lhe ensinar muita coisa sobre automóveis.
– Que demais! O meu
padrinho!
– Ah, ele é seu padrinho,
é? Eu não sabia.
– Ele não é! Mas eu
considero como se fosse. E é como eu o chamo: padrinho. Ele não tem as suas
manias de chamar as pessoas, não chama o senhor de doutor, não me chama de
anjinho loiro? Pois eu o chamo de padrinho e ponto final.
– Então estamos acertados
preliminarmente, moça. Eu vou para a empresa agora, e já aviso o Fúlvio da nova
missão dele. Claro que ele vai ficar todo bobo, todo feliz.
– O que é claro é que ele
vai me considerar a maior cara-de-pau. Nunca que ele ia imaginar que eu fosse
capaz de tomar esta iniciativa, vir falar com o senhor aqui, atrapalhar a sua
ginástica. Para falar a verdade, nem eu acredito que eu tive essa audácia. E o
mais incrível, o que parece até mentira ainda pra mim, é que o senhor
concordou, que o senhor me aceitou. E que vai me entregar justamente aos
cuidados do meu padrinho.
O anjo loiro pareceu ter
tido uma nova ideia, baixou os olhos outra vez – Celso já sabia agora que
aquilo queria dizer medo de falar algo inconveniente – depois encarou-o
novamente e perguntou:
– O senhor vai agora para
a firma? Posso ir junto, eu sigo o senhor com o meu carro e já dou a boa
notícia pro padrinho pessoalmente. Ai, por favor, eu não me aguento, preciso
falar disso com alguém! E, por enquanto, ele é a única pessoa a quem eu posso
falar isso.
Celso percebeu na hora o
que a moça ocultava: Sim, sua família, é claro! O velho quadrado, que acha que
lugar de mulher é em casa, a velha dondoca que não quer a filha, aspirante a
nobre via casamento de conveniência, sujando as botas de lama ou trabalhando em
outra coisa qualquer. Sim, pobre garota, ela ia ter uma batalha cruel pela
frente. Ainda bem que, ao menos por ora, estava rompida com o “sempre noivo”,
senão ia ter que encarar de imediato também a carga dos barões feudais da
nobreza falida. Teve certeza do que pensava quando a moça lhe pediu, oura vez
toda embaraçada e mais uma vez muito vermelha:
– Será que eu podia pedir
um outro grande favor ao senhor? Que o senhor não comente nada por enquanto com
ninguém, sobre o emprego. Pra não dar azar, olho gordo, sabe como é. Eu imagino
que o senhor não acredita nisso, mas por favor...
– Pode deixar, moça. Eu
não comento com ninguém além do Fúlvio, então.
E pensou: Pobrezinha, está tendo que mentir para mim,
é lógico que nem ela deve acreditar nesse tal de olho gordo. Só se for o olho
gordo do velho Valdemar, de olho no sobrenome dos Schlikmann. É, a batalha para
ela vai ser mesmo dura... Precisava conversar com o padrinho, para ver se
havia algum modo de ajudarem o anjo nessa guerra.
Então lembrou do pedido
dela e disse que sim, que ela poderia segui-lo até à empresa. Entraram em seus
respectivos carros, o dele o Toyota Corolla, o dela uma impressionante SUV
enorme, e partiram rumo à Revenda.
Dentro do Corolla, um
Celso receoso considerava se não tinha cometido um grave erro. A moça partiria
para sua batalha pessoal contra a família e, se vencesse, encontraria na
Revenda o campo ideal para ser feliz. Já ele teria uma batalha ainda mais
difícil: teria que se defender contra o sentimento que aquela criatura
maravilhosa lhe inspirava e que ele receava que estivesse crescendo já,
descontroladamente, dentro de si. A última das coisas que ele podia querer
agora e, no entanto, algo que parecia desabar, inexorável, sobre ele.
Sim, ele tinha se metido
em camisa de onze varas! A lembrança das lágrimas nos olhos de água marinha
encheram todo o espaço de sua memória, ocuparam todo o interior do Toyota, todo
o volume vazio e morto que existia em seu coração.
Ah,
Celso Romano Teles, você continua o mesmo! Tem uma couraça rígida por fora,
para encarar as pessoas no mundo dos negócios. Mas continua desarticulado,
frágil, indefeso nas coisas do coração. Esse era e continuava sendo seu grande
calcanhar de Aquiles, cara! ...
Possivelmente tinha
começado, minutos atrás, mais um percurso que o levaria a apaixonar-se
tolamente, a sofrer desilusões amorosas, como as que amargara na Europa, como a
mais cruel de todas, que o detonara por dentro lá em Sertãozinho, causada pela
hoje ex-esposa.
Aquele rostinho mimoso,
no auto atrás do seu, irradiando felicidade, talvez fosse o arauto de muito
sofrimento para ele. Sim, a esta altura ele tinha certeza absoluta que não
resistiria ao convívio com os poderes do anjo loiro sem sucumbir. Ele era fraco
demais, exatamente fraco demais nas coisas do coração.
Acelerou um pouco mais o
Toyota, querendo chegar logo e entregar o anjo para o padrinho. Depois, talvez
antecipasse sua viagem para Ribeirão Preto, a pretexto de acelerar os
preparativos da mudança da Revenda de lá para Amarante. Na verdade, tudo o que
precisava agora era fugir rapidamente do anjo loiro.
Ao chegarem, mal desceu
do carro pediu para lhe chamarem Fúlvio Rondelli. Assim que ele apareceu,
encarregou o anjo de contar toda a história ao padrinho e tratou de se mandar
dali. Voltou a entrar no carro e foi para o grande terreno, onde as primeiras
máquinas já estavam trabalhando na terraplanagem e abertura de valas para
alicerces.
Outras chegariam ainda
esta semana e começariam a escavar os buracos para as piscinas. E a preparar o
terreno para aquilo que era o mais importante de tudo, a verdadeira razão de
sua presença ali em Amarante, o espaço mágico para a realização de seu sonho
mais caro de profissional. Conversando com os trabalhadores das obras,
caminhando pelo amplo terreno, vendo as máquinas enormes engolindo e cuspindo
terra, os caminhões trazendo e levando materiais, sentiu seu tumulto interno se
acalmar.
Sim, ali estava a mais
esplêndida realidade de sua vida tomando corpo. Ali, e não na revenda, que era
um bom negócio, sem dúvida, mas que não lhe falava ao coração como aquele
projeto que ele conseguia vislumbrar completo e inteiro ao olhar aquele monte
de buracos e aquelas montanhas de terra, areia e saibro.
Para isso ele tinha
vindo, para realizar seu sonho de menino solitário nos campos de gelo da Europa
e da Arábia. Para isso e não para se enrolar todo com uma Miss Universo tão
irresistível quanto inacessível, não para sofrer amando em silêncio uma deusa
que nunca o iria aceitar como seu homem. Para ela, ele seria sempre o senhor, o
doutor, o patrão, o chefe velho, o vovozão.
Não, precisa se livrar
urgentemente desse sentimento traiçoeiro que teimava em se erguer dentro dele.
Deixou a obra, foi para casa, fez sua mala e ligou para Fúlvio, explicando que
um chamado de emergência exigia sua presença em Ribeirão Preto. Saindo de casa,
dirigiria diretamente para Navegantes, de onde pegaria um avião para Congonhas
e, dali, outro para Ribeirão Preto.
O italiano estava
esfuziante, a notícia que seu anjinho lhe dera o tinha levado literalmente ao
paraíso. Comentou todo entusiasmado como sua menina estava ficando corajosa,
como o havia surpreendido com sua iniciativa, como ficara feliz com a
concordância por parte do doutor. E, ao término da conversa, fez algo para o
que Celso não estava nem um pouco preparado:
– Escute só, doutor.
Escute só.
No instante seguinte,
aquela voz melodiosa, a típica ‘voz de mormaço’ irrompeu do telefone dele: Era
ELA de novo!
– Ai, doutor, eu não
queria deixar de lhe dizer como eu estou feliz. E como o senhor é legal, bacana,
generoso, tudo aquilo que o padrinho diz do senhor e muito mais. Vá com Deus,
faça uma ótima viagem. Mas volte logo, por favor.
Celso mal gaguejou uma
resposta, atônito, enquanto a moça desligava lá na Revenda.
– Mas volte logo, por favor... Volte logo, por favor... Volte logo, por
favor... E ele não conseguia parar de repetir essa frase para si mesmo.
Repetiu-a incontáveis vezes na estrada, a caminho de Navegantes. Repetiu-a nos
aviões, repetiu-as inúmeras vezes em Ribeirão Preto.
E ali, incoerência das
incoerências, ele que tinha vindo para Ribeirão sem necessidade, antes do
tempo, só para fugir da menina, passou a desejar, o tempo todo, voltar
rapidamente para Amarante.
Sim, estava fisgado,
irremediavelmente fisgado. O peixe morre pela boca, ele morrera pela boca ao
dizer que aceitava contratar o anjo. Agora era tarde demais, tarde demais.
Estava efetivamente fisgado! E tudo o que queria era fazer o mais rapidamente
possível o percurso de volta para Amarante. Que belo fujão que ele era!
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