MILTON MACIEL
10 - A ATENDENTE LARISSA
Fim do cap. 8: “ Então buscou a bola que corria e começou a se
divertir com ela: embaixadas, passes, cabeceios, corridas atrás de lançamentos
que ele mesmo fazia... Que delícia! De repente se sentia com 12 anos, tanta
coisa deliciosa lhe voltava à memória. Ás oito horas buscou o celular no carro
e ligou para Fúlvio:
– Bom dia, meu
carcamano favorito. Já está no batente? Ora, que dúvida. Pois toma conta da
garrafa pra mim, eu não vou aparecer tão cedo hoje por aí, tenho que cuidar de
um moleque que está brincando de jogar futebol. Depois eu explico. Hum... A
Larissa está aí com você?
– Claro que sim,
jefe – brincou com o título que as
espanholas lhe davam – está aqui toda animada, me enchendo a cabeça com mil
perguntas, como faz sempre, mexendo em tudo. Anotando tudo. Que menina curiosa!
Ó, agora que viu que é senhor no telefone, está me perguntado onde o senhor
está e a que horas chega aqui. Vê se pode!
Aí teve a mesma
inspiração que antes. Passou o telefone para a afilhada e disse:
– Por que não
pergunta você mesma?
Aí viu que moça
ficou mais agitada, enrubesceu, mas, dando um sorriso radioso, falou:
– Bom dia,
chefe. Não ligue para o que ele diz. Quem sou eu para querer saber onde o senhor
está. Mas... – e gaguejou um pouco, enrubescendo ainda mais – não demore, por
favor. Até já.
Desligou. Celso
deixou o telefone cair no gramado. De repente sua prioridade era outra agora.
Juntou a bola, tirou as chuteiras, entrou no carro e voou para a Teles. Tinha
deixado o moleque da bola de boca aberta, o homem falou mais alto. Voou não
para a Teles, mas para o anjo loiro de olhos de água-marinha.
– Não demore, por favor... Não demore, por favor... Ah, música pura para os seus ouvidos.
Ela podia amar
daquele almofadinha, mas era certo que ela gostava da companhia do seu chefe. E
isso já era uma coisa muito, muito, muito boa. Ah, que vontade que ela tomasse
as suas mãos e as apertasse, dizendo qualquer coisa quente. Na sua fantasia,
ela diria: eu te amo... e era doce
demais imaginar isso.
Chegando à
empresa, correu direto para a oficina, antegozando o momento em que ela
preencheria todo o espaço das suas retinas com aquela visão adorável de Miss
Perfeição.
Isso aconteceu
antes, no entanto. Ela o tinha visto estacionando e falou para o padrinho:
– O chefe
chegou! Deixe eu ir lá recepcioná-lo como se fosse um cliente importante, como
a Carmen me ensinou ontem. Assim ele vai ver que eu aprendo rápido, que não sou
só uma colona tapada.
E saiu correndo,
a carinha afogueada, sem esperar resposta de Rondelli, que limitou-se a sorrir,
satisfeito.
Quando Celso,
entrando pela grande porta principal, virou em direção às oficinas, um anjo
loiro – repetindo-se, como descobriu, nas últimas horas, que ela gostava tanto
de fazer – materializou-se, luminosa, saindo de trás da grande coluna central:
– Bom dia,
senhor. Seja muito bem-vindo. A sua preferência pela Teles Automóveis nos deixa
muito honrados. Eu sou a atendente Larissa e ficarei o tempo todo a seu inteiro
dispor. Basta dizer o que deseja, que nós todos vamos fazer até o impossível
para satisfazê-lo.
Celso
estremeceu. Mais uma surpresa de sua musa! Que estava simplesmente radiosa em
um tailleur azul claro, da exata cor de seus olhos, delineando cada uma das
curvas perfeitas do seu corpo de Miss. A custo conseguiu falar:
– Deus do céu,
Larissa! Que perfeição, que progresso! Que talento! Se o cara que entrou for só
o carteiro, que veio só entregar correspondência, você vende um Mercedes pra
ele na hora.
Ela agitou todo
o corpo, quase pulando de contente:
– Gostou,
chefe?! Eu ensaiei um montão em casa, pra lhe receber assim hoje.
– Ah, foi?
Ensaiou pensando em mim? Que gentileza.
– Gentileza nada
chefe. Foi para mostrar que eu posso aprender a fazer um bom trabalho, nas mãos
da Carmen. E para desmanchar a má impressão de ontem, na churrascaria.
– Ora, Larissa,
Larissa, não fale mais nessa coisa, isso já passou e não tem a menor
importância.
E esperou –
suplicou mentalmente – que ela lhe apertasse as mãos mais uma vez. Porém isso
não veio, frustração...
Mas o anjo loiro
perguntou:
– O senhor vai
ver meu padrinho?
– Sim, vou.
Imediatametne
ela reassumiu seu papel de atendente:
– Então o
senhor, nosso cliente mais distinto, faça o favor de me seguir.
E caminhou, como
uma perfeita hostess, à frente dele.
Ah, que
maravilha, que perfeição, que bom que até à oficina o percurso era de 60
metros! 60 metros de puro êxtase! Aquelas costas, aquele traseiro empinado
oscilando delicado, com classe extrema, bem delineado pelo tailleur azul. O
roliço das coxas, as pernas torneadíssimas e bronzeadas, os pés perfeitos como
que flutuando em saltos altos. E os cabelos loiros e longos, movendo-se
rítmicos para os lados, acompanhando o leve balouçar da cabeça... Ah, tudo nela
era classe, extrema classe, extrema elegância, extremo bom gosto! Tudo nela era
sedução. Mas uma sedução natural, espontânea, não-intencional, pois ao mesmo
tempo ela tinha aquele quê indefinível de inocência infantil, que fazia com que
as pessoas, com a maior facilidade, a chamassem de anjo. O anjo da sedução,
isso sim!
Celso seguiu-a
em deleite, em transe, até que chegaram – infelizmente para ele – à oficina de
Fúlvio, que se voltou para eles. Todos os demais homens se voltaram para ELA. E
ela concluiu sua encenação, também estudada PARA ELE:
– Permita que eu
lhe apresente nosso gerente geral das oficinas, nosso mecânico-chefe Fúlvio
Rondelli. Senhor Fúlvio, este é nosso cliente muito especial, Doutor Celso
Romano Teles. Eu o deixo agora entregue à sua competência e à sua atenção.
Muito obrigada, senhores, devo me retirar.
E completando a
figuração, fez meia volta com seu andar gracioso e saiu para o amplo corredor,
deixando o ambiente impregnado por uma onda de perfume extremamente suave e
sutil.
Fúlvio Rondelli
encarou Celso com um sorriso de orelha a orelha:
– E então,
chefe? Que lhe pareceu?
– Uma perfeição,
Rondelli! Isso: uma perfeição. Simplesmente perfeita, em todos os sentidos. Se
ela continua, eu compro um carro de mim mesmo e pago o dobro do preço.
– O senhor
imagine, então, qual a minha surpresa, a minha alegria, ao ver o desempenho
dela, doutor. Está vendo, é só a gente dar uma oportunidade e ela vai conseguir
mostrar o seu valor. Mostrar para o senhor, para nós outros e, principalmente,
para ela mesma, que é o mais importante. E acho que isso vai acontecer doutor,
como eu lhe disse na primeira noite, lá no Bicalho: o dia em que ela for ela
mesma, ninguém segura esta garota. E, se isso acontecer agora, vai ser graças
ao senhor. O senhor que é uma espécie de anjo guardião prático das pessoas, que
muda a vida da gente para melhor das formas mais incríveis. Eu tenho certeza,
quando essa mudança acontecer na vida da minha menina, então eu vou poder
descansar. Ao invés de estar sempre me preocupando em proteger sua fraqueza, eu
vou inchar de orgulho do meu anjinho, ela vai ser alguém muito importante
ainda.
– Caramba,
Rondelli, que discurso! Bravos, com esse papo você absolve até o Fernandinho
Beira-Mar e o Al Capone num júri.
– Me exaltei,
não é chefe?
– Com justa
razão, Rondelli. Você ama essa menina e isso é lindo.
– Amo, sim
doutor, ela é a filha e o filho que eu nunca tive. Minha vida de carvalho seco
e estéril só ganhou sentido quando eu conheci essa menininha e comecei a ver as
maldades que faziam com ela. Desde então eu vivo só por causa dela. Vibro por
ela, sofro por ela. E agora, graças ao senhor – e certamente às espanholitas –
pela primeira vez eu tenho muito mais por que vibrar do que por que me
preocupar, que sofrer.
– Tomara que dê
certo, Fúlvio.
– Já deu certo,
doutor! Já deu. Basta que uma criatura caia nas suas mãos e tudo muda para
melhor. Basta ver o que o senhor já fez, só aqui e em pouco mais de dois meses,
por mim, pelo Nelson, pelos times de várzea. Sem falar nesse pessoal que se
abalou de Ribeirão Preto atrás do senhor, as espanholas, o empreiteiro, o
contador, as moças que ainda vão chegar. Tudo gente, que, segundo me contou a
Carmen, simplesmente adora o senhor. Então me dê licença de comemorar. Larissa
caiu em suas mãos, prepare-se: aí vem a minha menina para viver a sua própria
vida. Os Silva e os Schlikmann que se fodam! Inclusive aquele eterno moleque de
calças curtas, o Leon.
– Ah, por falar
nele, Rondelli, me lembrei de uma coisa de futebol. Sabe onde eu estava quando
liguei para vocês às oito horas? Pois se segure: eu estava batendo uma bolinha
lá no campinho da várzea, na beira do rio.
– Opa, mas o
senhor é demais, doutor! Já descobriu onde fica, é?
– Não só
descobri, como resolvi que vou enfiar a colher onde não sou chamado: vou
aproveitar as máquinas que estão fazendo os meus campos de futebol na Tuiuti e,
assim que elas se liberarem, vou terraplenar a várzea toda.
– Papagaio!
– exclamou Rondelli, completando com um
enorme assobio. Vai gastar uma grana preta com isso, doutor.
– Que depois
sempre volta, Rondelli, aprenda. Sempre foi assim na minha vida. Toda vez que
eu faço uma coisa assim, é como se eu emprestasse esse dinheiro a Deus. Só que,
no meu caso, Deus é sempre tão afobadinho quanto eu e me paga o empréstimo
muito depressa. A propósito, você, que está há tantos anos aqui, sabe de quem é
aquela área toda?
– Pra dizer a
verdade, não tenho certeza. Aquilo era uma fazenda antes, teve dezenas de
herdeiros ao longo de mais de 50 anos. A beira do rio, é reserva, acho que é a
Marinha que administra, não tenho bem certeza, acho que são 20 ou 30 metros.
Mas é a parte pior, por que está sujeita as oscilações do nível do rio, boa
parte é lama pura, de vez em quando dá enchente mais braba. Acho que é por isso
que nunca ninguém se arvorou em dono da coisa toda.
– Bem, então eu
vou falar com o Paulo César, da
imobiliária. Agora ele deve estar com as espanholitas, levando-as para
escolherem seu novo lar em Amarante. Vou pedir que ele se encarregue de me
decifrar esse embrulho da várzea, até à quinta geração.
– E eu volto ao
meu inventário final, doutor. Por favor, me mande aquela fujona da minha
afilhada de volta aqui, vou precisar muito dela. Eu já imagino onde ela está.
– Onde,
italiano?
– Ah, o senhor
já vai ver, aposto – e sorriu, enigmático. Estava ainda mais feliz!
– Celso
atravessou os amplos corredores sem encontrar Larissa neles. Chegou ao saguão
principal, entrecerrou os olhos e começou a imaginá-lo cheio de automóveis
novos. Estava no meio do devaneio quando – mais uma vez – um anjo irrompeu de
trás da grande coluna – Ela se repete
sempre, acho que foi isso que o Fúlvio quis dizer.
– Ai, chefe, eu
estava esperando só para poder lhe dizer isto: É maravilhoso trabalhar! Eu
nunca trabalhei antes, não me deixaram. É maravilhoso demais poder trabalhar! E
mais maravilhoso ainda quando o chefe é o senhor.
E aí,
inevitável, o gesto que ela sempre repetia: apertou-lhe as duas mãos
rapidamente entre as suas e sussurrou:
– Deus lhe
pague!
E, mais uma vez,
saiu correndo, naquela sua corrida leve, serena, pouco mais que um caminhar
rápido, um oscilar harmônico de ancas e cabelos loiros. Uma gazela em fuga! Um
deleite.
CONTINUA
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