quarta-feira, 18 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 10    
MILTON MACIEL  

10 -  A ATENDENTE LARISSA
Fim do cap. 8:  “ Então buscou a bola que corria e começou a se divertir com ela: embaixadas, passes, cabeceios, corridas atrás de lançamentos que ele mesmo fazia... Que delícia! De repente se sentia com 12 anos, tanta coisa deliciosa lhe voltava à memória. Ás oito horas buscou o celular no carro e ligou para Fúlvio:

– Bom dia, meu carcamano favorito. Já está no batente? Ora, que dúvida. Pois toma conta da garrafa pra mim, eu não vou aparecer tão cedo hoje por aí, tenho que cuidar de um moleque que está brincando de jogar futebol. Depois eu explico. Hum... A Larissa está aí com você?

– Claro que sim, jefe – brincou com o título que as espanholas lhe davam – está aqui toda animada, me enchendo a cabeça com mil perguntas, como faz sempre, mexendo em tudo. Anotando tudo. Que menina curiosa! Ó, agora que viu que é senhor no telefone, está me perguntado onde o senhor está e a que horas chega aqui. Vê se pode!

Aí teve a mesma inspiração que antes. Passou o telefone para a afilhada e disse:

– Por que não pergunta você mesma?

Aí viu que moça ficou mais agitada, enrubesceu, mas, dando um sorriso radioso, falou:

– Bom dia, chefe. Não ligue para o que ele diz. Quem sou eu para querer saber onde o senhor está. Mas... – e gaguejou um pouco, enrubescendo ainda mais – não demore, por favor. Até já.

Desligou. Celso deixou o telefone cair no gramado. De repente sua prioridade era outra agora. Juntou a bola, tirou as chuteiras, entrou no carro e voou para a Teles. Tinha deixado o moleque da bola de boca aberta, o homem falou mais alto. Voou não para a Teles, mas para o anjo loiro de olhos de água-marinha.

– Não demore, por favor... Não demore, por favor... Ah, música pura para os seus ouvidos.

Ela podia amar daquele almofadinha, mas era certo que ela gostava da companhia do seu chefe. E isso já era uma coisa muito, muito, muito boa. Ah, que vontade que ela tomasse as suas mãos e as apertasse, dizendo qualquer coisa quente. Na sua fantasia, ela diria: eu te amo... e era doce demais imaginar isso.

Chegando à empresa, correu direto para a oficina, antegozando o momento em que ela preencheria todo o espaço das suas retinas com aquela visão adorável de Miss Perfeição.

Isso aconteceu antes, no entanto. Ela o tinha visto estacionando e falou para o padrinho:

– O chefe chegou! Deixe eu ir lá recepcioná-lo como se fosse um cliente importante, como a Carmen me ensinou ontem. Assim ele vai ver que eu aprendo rápido, que não sou só uma colona tapada.

E saiu correndo, a carinha afogueada, sem esperar resposta de Rondelli, que limitou-se a sorrir, satisfeito.

Quando Celso, entrando pela grande porta principal, virou em direção às oficinas, um anjo loiro – repetindo-se, como descobriu, nas últimas horas, que ela gostava tanto de fazer – materializou-se, luminosa, saindo de trás da grande coluna central:

– Bom dia, senhor. Seja muito bem-vindo. A sua preferência pela Teles Automóveis nos deixa muito honrados. Eu sou a atendente Larissa e ficarei o tempo todo a seu inteiro dispor. Basta dizer o que deseja, que nós todos vamos fazer até o impossível para satisfazê-lo.

Celso estremeceu. Mais uma surpresa de sua musa! Que estava simplesmente radiosa em um tailleur azul claro, da exata cor de seus olhos, delineando cada uma das curvas perfeitas do seu corpo de Miss. A custo conseguiu falar:

– Deus do céu, Larissa! Que perfeição, que progresso! Que talento! Se o cara que entrou for só o carteiro, que veio só entregar correspondência, você vende um Mercedes pra ele na hora.

Ela agitou todo o corpo, quase pulando de contente:

– Gostou, chefe?! Eu ensaiei um montão em casa, pra lhe receber assim hoje.
 
– Ah, foi? Ensaiou pensando em mim? Que gentileza.

– Gentileza nada chefe. Foi para mostrar que eu posso aprender a fazer um bom trabalho, nas mãos da Carmen. E para desmanchar a má impressão de ontem, na churrascaria.

– Ora, Larissa, Larissa, não fale mais nessa coisa, isso já passou e não tem a menor importância.
E esperou – suplicou mentalmente – que ela lhe apertasse as mãos mais uma vez. Porém isso não veio, frustração... 

Mas o anjo loiro perguntou:

– O senhor vai ver meu padrinho?

– Sim, vou.

Imediatametne ela reassumiu seu papel de atendente:

– Então o senhor, nosso cliente mais distinto, faça o favor de me seguir.

E caminhou, como uma perfeita hostess, à frente dele.

Ah, que maravilha, que perfeição, que bom que até à oficina o percurso era de 60 metros! 60 metros de puro êxtase! Aquelas costas, aquele traseiro empinado oscilando delicado, com classe extrema, bem delineado pelo tailleur azul. O roliço das coxas, as pernas torneadíssimas e bronzeadas, os pés perfeitos como que flutuando em saltos altos. E os cabelos loiros e longos, movendo-se rítmicos para os lados, acompanhando o leve balouçar da cabeça... Ah, tudo nela era classe, extrema classe, extrema elegância, extremo bom gosto! Tudo nela era sedução. Mas uma sedução natural, espontânea, não-intencional, pois ao mesmo tempo ela tinha aquele quê indefinível de inocência infantil, que fazia com que as pessoas, com a maior facilidade, a chamassem de anjo. O anjo da sedução, isso sim!

Celso seguiu-a em deleite, em transe, até que chegaram – infelizmente para ele – à oficina de Fúlvio, que se voltou para eles. Todos os demais homens se voltaram para ELA. E ela concluiu sua encenação, também estudada PARA ELE:

– Permita que eu lhe apresente nosso gerente geral das oficinas, nosso mecânico-chefe Fúlvio Rondelli. Senhor Fúlvio, este é nosso cliente muito especial, Doutor Celso Romano Teles. Eu o deixo agora entregue à sua competência e à sua atenção. Muito obrigada, senhores, devo me retirar.

E completando a figuração, fez meia volta com seu andar gracioso e saiu para o amplo corredor, deixando o ambiente impregnado por uma onda de perfume extremamente suave e sutil.

Fúlvio Rondelli encarou Celso com um sorriso de orelha a orelha:

– E então, chefe? Que lhe pareceu?

– Uma perfeição, Rondelli! Isso: uma perfeição. Simplesmente perfeita, em todos os sentidos. Se ela continua, eu compro um carro de mim mesmo e pago o dobro do preço.

– O senhor imagine, então, qual a minha surpresa, a minha alegria, ao ver o desempenho dela, doutor. Está vendo, é só a gente dar uma oportunidade e ela vai conseguir mostrar o seu valor. Mostrar para o senhor, para nós outros e, principalmente, para ela mesma, que é o mais importante. E acho que isso vai acontecer doutor, como eu lhe disse na primeira noite, lá no Bicalho: o dia em que ela for ela mesma, ninguém segura esta garota. E, se isso acontecer agora, vai ser graças ao senhor. O senhor que é uma espécie de anjo guardião prático das pessoas, que muda a vida da gente para melhor das formas mais incríveis. Eu tenho certeza, quando essa mudança acontecer na vida da minha menina, então eu vou poder descansar. Ao invés de estar sempre me preocupando em proteger sua fraqueza, eu vou inchar de orgulho do meu anjinho, ela vai ser alguém muito importante ainda.

– Caramba, Rondelli, que discurso! Bravos, com esse papo você absolve até o Fernandinho Beira-Mar e o Al Capone num júri.

– Me exaltei, não é chefe?

– Com justa razão, Rondelli. Você ama essa menina e isso é lindo.

– Amo, sim doutor, ela é a filha e o filho que eu nunca tive. Minha vida de carvalho seco e estéril só ganhou sentido quando eu conheci essa menininha e comecei a ver as maldades que faziam com ela. Desde então eu vivo só por causa dela. Vibro por ela, sofro por ela. E agora, graças ao senhor – e certamente às espanholitas – pela primeira vez eu tenho muito mais por que vibrar do que por que me preocupar, que sofrer.

– Tomara que dê certo, Fúlvio.

– Já deu certo, doutor! Já deu. Basta que uma criatura caia nas suas mãos e tudo muda para melhor. Basta ver o que o senhor já fez, só aqui e em pouco mais de dois meses, por mim, pelo Nelson, pelos times de várzea. Sem falar nesse pessoal que se abalou de Ribeirão Preto atrás do senhor, as espanholas, o empreiteiro, o contador, as moças que ainda vão chegar. Tudo gente, que, segundo me contou a Carmen, simplesmente adora o senhor. Então me dê licença de comemorar. Larissa caiu em suas mãos, prepare-se: aí vem a minha menina para viver a sua própria vida. Os Silva e os Schlikmann que se fodam! Inclusive aquele eterno moleque de calças curtas, o Leon.
– Ah, por falar nele, Rondelli, me lembrei de uma coisa de futebol. Sabe onde eu estava quando liguei para vocês às oito horas? Pois se segure: eu estava batendo uma bolinha lá no campinho da várzea, na beira do rio.

– Opa, mas o senhor é demais, doutor! Já descobriu onde fica, é?

– Não só descobri, como resolvi que vou enfiar a colher onde não sou chamado: vou aproveitar as máquinas que estão fazendo os meus campos de futebol na Tuiuti e, assim que elas se liberarem, vou terraplenar a várzea toda.

– Papagaio! –  exclamou Rondelli, completando com um enorme assobio. Vai gastar uma grana preta com isso, doutor.

– Que depois sempre volta, Rondelli, aprenda. Sempre foi assim na minha vida. Toda vez que eu faço uma coisa assim, é como se eu emprestasse esse dinheiro a Deus. Só que, no meu caso, Deus é sempre tão afobadinho quanto eu e me paga o empréstimo muito depressa. A propósito, você, que está há tantos anos aqui, sabe de quem é aquela área toda?

– Pra dizer a verdade, não tenho certeza. Aquilo era uma fazenda antes, teve dezenas de herdeiros ao longo de mais de 50 anos. A beira do rio, é reserva, acho que é a Marinha que administra, não tenho bem certeza, acho que são 20 ou 30 metros. Mas é a parte pior, por que está sujeita as oscilações do nível do rio, boa parte é lama pura, de vez em quando dá enchente mais braba. Acho que é por isso que nunca ninguém se arvorou em dono da coisa toda.

– Bem, então eu vou falar com o Paulo César, da imobiliária. Agora ele deve estar com as espanholitas, levando-as para escolherem seu novo lar em Amarante. Vou pedir que ele se encarregue de me decifrar esse embrulho da várzea, até à quinta geração.

– E eu volto ao meu inventário final, doutor. Por favor, me mande aquela fujona da minha afilhada de volta aqui, vou precisar muito dela. Eu já imagino onde ela está.

– Onde, italiano?

– Ah, o senhor já vai ver, aposto – e sorriu, enigmático. Estava ainda mais feliz!

– Celso atravessou os amplos corredores sem encontrar Larissa neles. Chegou ao saguão principal, entrecerrou os olhos e começou a imaginá-lo cheio de automóveis novos. Estava no meio do devaneio quando – mais uma vez – um anjo irrompeu de trás da grande coluna – Ela se repete sempre, acho que foi isso que o Fúlvio quis dizer.

– Ai, chefe, eu estava esperando só para poder lhe dizer isto: É maravilhoso trabalhar! Eu nunca trabalhei antes, não me deixaram. É maravilhoso demais poder trabalhar! E mais maravilhoso ainda quando o chefe é o senhor.

E aí, inevitável, o gesto que ela sempre repetia: apertou-lhe as duas mãos rapidamente entre as suas e sussurrou:

– Deus lhe pague!

E, mais uma vez, saiu correndo, naquela sua corrida leve, serena, pouco mais que um caminhar rápido, um oscilar harmônico de ancas e cabelos loiros. Uma gazela em fuga! Um deleite.
CONTINUA


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