MILTON MACIEL
13 – BANHO DE LAMA, BANHO DE CHUVA
Fim do cap. 12: Um terceiro homem
pegou a terceira mangueira. E, voltando-as para o campo e para cima, fizeram
cair uma chuva torrencial sobre o gramado recém-instalado. Os jatos eram
fenomenais, com seis centímetros de diâmetro à saída das mangueiras, subiam a
mais de dez metros de altura e se espalhavam como chuva grossa e torrencial sobre uma larga área quando caiam. A grama foi ficando toda úmida, depois claramente encharcada.
– Oba! Oba! Oba! –
gritava Celso sem parar, mais parecia um moleque com um brinquedo novo. E pediu
algo para um funcionário perto dele, que saiu para buscar a tal coisa.
De repente ele voltou com
uma bola de futebol e a arremessou para Celso, que imediatamente partiu com ela
em direção ao japonesinho gordo, começando a driblá-lo. Mas, o japonês, para
surpresa de todos, também parecia entender de bola e, apesar do porte baixo e
retaco, mostrava uma mobilidade muito boa e retribuía os dribles quando
conseguia tomar a bola de Celso.
– Padrinho, olhe! O chefe
está jogando futebol com o japonês. Nossa, parece que ele sabe jogar bem, não é?
– É. Bem, parece que ele
sabe driblar bem, isso sim.
Mas, nesse momento algo
ainda mais surpreendente aconteceu ante os olhos atônitos de Fúlvio e Larissa.
Celso e o japonês, já estavam brincando de bola há vários minutos, suadíssimos,
na faixa exterior do campo, que não tinha recebido grama e estava bem seca, quando
o chefe gritou para o grandalhão:
– Aqui, Nicanor, aqui!
Manda chuva, sem piedade! Água!
O japonês agitou os
bracinhos para cima e gritou também:
– Água! Manda água!
Rindo, Nicanor virou o
enorme jato d’água na direção onde estavam os dois e uma chuva diluviana caiu
sobre eles e a bola. O jogo continuou, mas agora muito mais divertido para quem
assistia – todo o pessoal da obra, mais os dois agentes secretos detrás da
enorme pilha de madeiras. Porque era um passo, um drible e um tombo. Enormes
poças de água se formaram e tudo virou um barro só, os jogadores jogavam como
que sobre sabão puro, caindo a toda hora, levantando com dificuldade e voltado
a cair de novo.
Estavam que era um barro
só: roupas, peitos nus, calçados, rostos, cabelos. E dando as maiores e mais
sonoras gargalhadas, cada um rindo dos tombos do outro e dos seus próprios. E,
ainda mais, das tentativas frustradas de levantarem da lama.
Num dado momento
conseguiram levantar de uma forma hilária, cada um se abraçando no outro,
formando um estranho casal de dançarinos da lama. Pararam um pouco assim,
abraçados, ofegantes, rindo, deixando que as águas do dilúvio os lavassem um pouco.
Foi quando Celso viu que
os olhos de Hiro de repente se arregalaram tanto que nem pareciam mais olhos de
japonês. Estavam parados, vidrados, olhando com espanto para um ponto atrás de Celso.
Este voltou-se instintivamente e que viu também o deixou incrédulo e maravilhado:
ELA!
Era ELA que estava ali, a
uns dez metros deles, absolutamente deslumbrante numa pantalona toda branca,
com uma blusa também branca, de manga bufante e lacinho azul no pescoço, uma
sandália aberta de tiras, também imaculadamente branca, os cabelos loiros
esvoaçando ao sol. Uma fada, uma visão, um sonho!
Os dois homens tentaram
se voltar simultaneamente para ela, apoiados um no outro. Aí ambos começaram a escorregar
enlaçados e deslizaram para o chão abraçados um ao outro, em câmera lenta, numa
cena engraçadíssima, digna de uma comédia de cinema mudo, de Laurel e Hardy, de
Charles Chaplin. A coisa foi tão engraçada que todos os espectadores, além de
gargalharem de doer a barriga e encher os olhos de lágrimas, aplaudiram
espontaneamente por um bom tempo os atores do pastelão.
Os dois, a caro custo,
conseguiram se erguer sobre os próprios pés, separados agora, em equilíbrio precário
e balouçante. Hiro Ito, como bom oriental, curvou-se repetidas vezes para a frente,
agradecendo os aplausos. Celso, pegando a deixa, passou a fazer a mesma coisa,
o que prolongou os aplausos e gerou uma nova onda de gargalhadas. Pareciam, dois
bonecos de barro, movidos a pilha, em perfeito e tremelicante sincronismo.
Adorando seu novo papel
de protagonista de comédia, Hiro encontrou com o pé a bola e partiu patinando,
já caindo, em direção a Celso. A plateia delirou e aplaudiu, o jogo ia
reiniciar!
Celso, contudo, permaneceu
imóvel duro como se o barro que o recobria por inteiro tivesse endurecido de
repente. Seus olhos não viam mais nada além da Vênus loira à sua frente, também
ela rindo e aplaudindo aos pulinhos, mais linda do que nunca.
Mas a quota de surpresas
da tarde ainda não estava completa. Ainda paralisado, apatetado, Celso viu
quando o anjo loiro, de repente, tirou rapidamente as duas sandálias e, impossível
acreditar, começou a correr em direção ao lodaçal onde ele e o japa estavam.
Não, não podia ser, ele
devia estar delirando!
Não, não estava delirando,
era ELA mesma. Pulando na lama!
E, embarrando toda a
roupa imaculadamente branca, a carinha mimosa, os cabelos antes esvoaçantes,
que se fizeram instantaneamente ninho de joão-de-barro. Com muito mais facilidades
que os dois jogadores, ela conseguia se erguer e manter-se em equilíbrio, por
mais que escorregasse. Não caía, jogava-se propositalmente nas poças. Depois
levantava, pegava a bola, atirava com as mãos, ora em um, ora em outro dos contendores,
de modo que o jogo além de recomeçar, tinha agora três jogadores.
Subitamente a
joaninha-de-barro começou a acenar na direção onde estava Nicanor e clamou:
– Água, manda água! Água!
– no que foi imediatamente secundada por seus dois parceiros.
O sardentinho acionou de
novo a bomba, os jatos emergiram poderosos, Nicanor assumiu o leme e mandou a
água pedida. Mas a moça, muito esperta, foi andando para o lado, até que saiu
da faixa de lama, seguida pela chuva do eficiente Nicanor, pisando agora sobre
uma larga faixa cimentada. Os parceiros entenderam a deixa e saíram também,
ainda que aos trancos e barrancos. Pouco tempo depois já estavam todos
praticamente livres do barro mais grosso sobre o corpo.
Livres, felizes,
incrédulos com a ação da moça loira e... sim, maravilhados, como todos os outros
homens!
Com a roupa leve e branca
toda molhada, grudada ao corpo, a tanguinha certamente branca ficou plenamente
evidente. Sob ela, na frente, um tênue triângulo, possivelmente loiro também
... E um busto, tão perfeito e rígido que dispensava sutiãs normalmente, fez-se
notar pelos mamilos róseos sob o tecido da blusa, que a água fizera quase
transparente.
A moça seguia rindo
feliz, sem ligar para nada, como um anjo que de fato não tivesse qualquer
maldade ou malícia. Mas, posto que todos os outros teriam, o anjo mais velho, o
anjo protetor sempre de plantão, Fúlvio Rondelli, adiantou-se e envolveu sua
anjinha protegida com seu próprio e amplo uniforme de mecânico da Teles
Automóveis. Fim de show, peonada!
Quando
os três se consideraram razoavelmente limpos, fizeram sinal a Nicanor, que fez
cessar as águas do dilúvio, depois dos 40 dias e 40 noites de inundação nos
gramados de Amarante. Estavam ensopados, inundados de uma alegria que só as
crianças sabem sentir num banho de chuva, dois meninos peladeiros e uma menina
em êxtase de travessura.
–
Cara, que demais! Há séculos que eu não curtia uma pelada no barro e um banho
de chuva assim. Parece até mentira.
–
Foi o máximo, Hiro. Eu me senti o moleque de Indaiatuba, você o japinha meu companheiro,
o barro, a chuva... cara, como a gente pode ser feliz demais com tão pouca
coisa! E depois, mais incrível ainda,
vem a Larissa se juntar à gente!
–
Eu NUNCA brinquei na lama, nunca! Minha mãe nunca deixou. Eu morria de vontade,
de banho de chuva também, mas minha mãe não deixava. Não podia sujar a roupa,
não podia estragar o penteado... Ai, que maravilha hoje! Parece que é o dia
mais feliz da minha vida e eu...
Não
completou a frase, caiu num choro forte e sentido, o anjo protetor saltou sobre
ela, deu-lhe o largo peito para se esconder, envolveu-a com o longo braço. E,
para um Celso perplexo e assustado, explicou:
–
É de alegria, doutor! Minha menina está chorando de alegria. Ela é assim, o
senhor ainda não conhece. Não se impressione.
O
anjo loiro de Rondelli virou o rosto para Celso e Hiro, sacudindo a cabeça em
vários movimentos delicados de sim, com os lábios carnudos abertos num vasto
sorriso de felicidade, os dentinhos alvos expostos em todo a sua perfeição. Mas
dos olhos de água-marinha continuava a verter o dilúvio, um dilúvio de lágrimas
que primeiro subiam e brilhavam ao sol da tarde quente, depois escorriam para
baixo como dois rios de alegria, a sulcar o rosto harmonioso até perderem-se no
mar do uniforme do enorme padrinho, tecido espesso e amigo que a envolvia
totalmente, do pescoço quase até os pés.
Mais
uma das incontáveis surpresas dela – pensou encantado Celso Teles – Chorar assim, tanto, tanto, e é de alegria!
Ah, sua musa era a criaturinha mais adorável da face da Terra! Como não amá-la?
Como pudera ser tão imbecil a ponto de cogitar mandá-la embora da firma? Como
viver sem poder vê-la, falar com ela todos os dias, ainda que fossem só as
coisas triviais e áridas dos negócios de automóveis?
Mais
algum tempo e Larissa se recompôs. Estava deslumbrante mesmo assim, toda encapotada
num uniforme enorme de mecânico, os cabelos escorridos ainda pingando água, o
rostinho molhado de água e lágrimas. Hiro Ito também estava embevecido, mas
tratou de manter a compostura e arriscou:
– Sim, senhor, seu malandro! Então, casou e não
contou pro seu melhor amigo de infância, hein! Queria me fazer surpresa? Pois
olhe que fez. Meus parabéns, seu gosto pra mulher evolui uma enormidade. É sua
esposa, não é? E o senhor alto aqui é o seu sogro, é o pai dela?
Celso
ficou sem reação na hora, olhou agoniado para Rondelli, à espera de uma ajuda.
Mas quem falou foi Larissa, uma frase curta, que começou com um riso infantil e
terminou séria, misteriosa, a voz perdendo amplitude:
–
Eu? Eu, mas como?... Quem... me dera.
Celso
estremeceu. Não, não podia tomar aquela última expressão como se fosse para
ele. Não, era evidente o que a garota quis dizer: Quem lhe dera fosse filha de
Fúlvio Rondelli. E não, é claro, esposa de Celso Teles! Ainda devaneou um instante
mais, sorvendo o som daquelas palavras repetidamente na imaginação, até que o
italiano veio botar ordem na casa. Enlaçou novamente sua menina, deu-lhe um
beijo estalado no alto da cabeça molhada e falou:
–
Tesoro mio – De fato, para ele, aquela era a sua filha
querida, ainda que não a tivesse gerado.
Ela
repousou de novo a cabeça no largo tórax de seu protetor. Sempre se repetindo,
pensou de novo Celso Teles.
Ah,
sim – pensava por sua vez a cabecinha loira –
como ela quisera tanto e queria
ainda que aquele homem alto e gentil tivesse sido o seu pai! E não aquele anão
de jardim, como costumava referir-se a ele, em voz bem baixa, o seu querido
Leon. Um anão de jardim careca e de pernas tortas, grosseiro e seco, prepotente
e arrogante como poucos.
Hiro
engoliu em seco e, muito constrangido por seu fora, tentou se explicar:
–
Puxa, gente, foi mal. Mas juro que eu pensei, desculpem. É que parecia...
–
Ele é meu padrinho. É o anjo bom que Deus botou na minha vida, porque teve pena
de mim. E o senhor não tem nada que se desculpar, eu é que lhe agradeço ter
brincado comigo, mesmo sem me conhecer.
Ora, ora, mas que coisa, onde
já se viu, que moça mais delicada, mais respeitosa! Imagine, agradecer por ele
ter brincado com ela sem a conhecer. Quem era aquela coisa linda, afinal. Vai
ver era um anjo que caiu do céu com o dilúvio de Nicanor.
Hiro
Ito era só mais um a pensar na menina de Rondelli como um anjo. Mas todos
faziam isso, todos faziam...
Celso
enfim retomou o controle da situação:
–
Esta é a Larissa, afilhada do Rondelli, que você está conhecendo também agora.
E minha mais nova funcionaria, é nossa trainee
na Teles Automóveis. E o Rondelli, que também trabalha com a gente, é o melhor
mecânico do mundo. Não é pai da Larissa, seu japinha burro, é padrinho dela.
Larissa,
por fim, pareceu ter tomado consciência de sua situação física:
–
Nossa, eu estou em petição de miséria! Minha roupa toda molhada e manchada, meu
cabelo uma palha escorrida! Como é que eu vou voltar pro trabalho? E, quando eu
chegar em casa, minha mãe vai me encher por horas com os seus chiliques.
Desta
vez Celso pensou e agiu rápido:
–
Vamos todos para a minha casa: O Fúlvio, você e o Hiro vêm comigo. Lá eu tenho
vários banheiros e é onde o japinha vai ficar hospedado mesmo. Assim vocês tomam
banho e, enquanto isso, eu dou um jeito nas roupas da Larissa.
–
Um jeito como, chefe? – perguntou a garota, surpresa.
–
Ah, isso deixe comigo, eu prometo que você não vai se arrepender.
E,
dirigindo-se ao mestre de obras, falou:
–
Nicanor, pegue o seu jipão, a gente pode molhar e embarrar o dito cujo à
vontade. Você nos deixa lá, volta aqui e mais tarde, lá pelas seis, leva o meu
Corolla lá em casa e eu trago você de volta pra cá.
–
Que nada, gente. Pra que complicar? Deixa o coitado do Nicanor em paz. Seu
Fúlvio vai no carro dele mesmo e vocês, seus pintos embarrados, assim como eu,
vamos andar de carreta. Que tal?
– OBA! –
O grito estridente e o salto para cima de Larissa, com os dois braços
levantados, com direito a espadanar de água dos cabelos e tudo, respondeu por
todos eles. Era definitivo. Quem era Celso para discordar?
Subiram
na alta boleia do caminhão imenso de Hiro Ito e saíram sacolejando pelas ruas
de Amarante. Na frente, em seu carro, foi Fúlvio Rondelli, que chegou à casa do
chefe e ficou esperando por uma carreta que nunca aparecia. Caramba, será que pifou no caminho?
Não,
no caminho uma moça loira, parecendo de novo uma moleca entre os dois homens,
pedia a todo instante:
–
Mais um pouco, só mais um pouquinho, Seu Hiro. Vamos andar mais um pouco, é tão
maravilhoooso andar de carreta!
E
quem era ele, Hiro para dizer não a um anjo? Ainda mais um anjo que dizia que
andar de carreta era maravilhoooso! Claro
que era.
Seguiram
andando por Amarante mais um pouco, até que, de repente, a garota levou a mão à
boca e falou:
–
Ai, minha nossa, o padrinho! O coitado deve estar cansado de esperar pela
gente. Ai, eu não tenho jeito mesmo! Vamos para casa do chefe, seu Hiro. E Deus
lhe pague pelo passeio, pela
paciência.
Ah, aquela menina não
existia, não podia existir! Vai ver o malandro do Celso tinha comprado, lá nas
estranjas por onde andou, um robô japonês de última geração, um protótipo
exclusivo, absoluto, da mulher perfeita!...
Celso,
para variar, ficava mudo, no exercício da arte que aprendera a cultivar em sua
expressão máxima, desde poucos dias atrás: a arte da contemplação muda e
estática de uma deusa. Ah, como não amar Miss Paraíso?
CONTINUA
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