domingo, 22 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 13   
MILTON MACIEL  

13 – BANHO DE LAMA, BANHO DE CHUVA

Fim do cap. 12:  Um terceiro homem pegou a terceira mangueira. E, voltando-as para o campo e para cima, fizeram cair uma chuva torrencial sobre o gramado recém-instalado. Os jatos eram fenomenais, com seis centímetros de diâmetro à saída das mangueiras, subiam a mais de dez metros de altura e se espalhavam como chuva grossa e torrencial sobre uma larga área quando caiam. A grama foi ficando toda úmida, depois claramente encharcada. 

– Oba! Oba! Oba! – gritava Celso sem parar, mais parecia um moleque com um brinquedo novo. E pediu algo para um funcionário perto dele, que saiu para buscar a tal coisa.

De repente ele voltou com uma bola de futebol e a arremessou para Celso, que imediatamente partiu com ela em direção ao japonesinho gordo, começando a driblá-lo. Mas, o japonês, para surpresa de todos, também parecia entender de bola e, apesar do porte baixo e retaco, mostrava uma mobilidade muito boa e retribuía os dribles quando conseguia tomar a bola de Celso.

– Padrinho, olhe! O chefe está jogando futebol com o japonês. Nossa, parece que ele sabe jogar bem, não é?

– É. Bem, parece que ele sabe driblar bem, isso sim.

Mas, nesse momento algo ainda mais surpreendente aconteceu ante os olhos atônitos de Fúlvio e Larissa. Celso e o japonês, já estavam brincando de bola há vários minutos, suadíssimos, na faixa exterior do campo, que não tinha recebido grama e estava bem seca, quando o chefe gritou para o grandalhão:

– Aqui, Nicanor, aqui! Manda chuva, sem piedade! Água!

O japonês agitou os bracinhos para cima e gritou também:

– Água! Manda água!

Rindo, Nicanor virou o enorme jato d’água na direção onde estavam os dois e uma chuva diluviana caiu sobre eles e a bola. O jogo continuou, mas agora muito mais divertido para quem assistia – todo o pessoal da obra, mais os dois agentes secretos detrás da enorme pilha de madeiras. Porque era um passo, um drible e um tombo. Enormes poças de água se formaram e tudo virou um barro só, os jogadores jogavam como que sobre sabão puro, caindo a toda hora, levantando com dificuldade e voltado a cair de novo.

Estavam que era um barro só: roupas, peitos nus, calçados, rostos, cabelos. E dando as maiores e mais sonoras gargalhadas, cada um rindo dos tombos do outro e dos seus próprios. E, ainda mais, das tentativas frustradas de levantarem da lama.

Num dado momento conseguiram levantar de uma forma hilária, cada um se abraçando no outro, formando um estranho casal de dançarinos da lama. Pararam um pouco assim, abraçados, ofegantes, rindo, deixando que as águas do dilúvio os lavassem um pouco.

Foi quando Celso viu que os olhos de Hiro de repente se arregalaram tanto que nem pareciam mais olhos de japonês. Estavam parados, vidrados, olhando com espanto para um ponto atrás de Celso. Este voltou-se instintivamente e que viu também o deixou incrédulo e maravilhado:

ELA!

Era ELA que estava ali, a uns dez metros deles, absolutamente deslumbrante numa pantalona toda branca, com uma blusa também branca, de manga bufante e lacinho azul no pescoço, uma sandália aberta de tiras, também imaculadamente branca, os cabelos loiros esvoaçando ao sol. Uma fada, uma visão, um sonho!

Os dois homens tentaram se voltar simultaneamente para ela, apoiados um no outro. Aí ambos começaram a escorregar enlaçados e deslizaram para o chão abraçados um ao outro, em câmera lenta, numa cena engraçadíssima, digna de uma comédia de cinema mudo, de Laurel e Hardy, de Charles Chaplin. A coisa foi tão engraçada que todos os espectadores, além de gargalharem de doer a barriga e encher os olhos de lágrimas, aplaudiram espontaneamente por um bom tempo os atores do pastelão.

Os dois, a caro custo, conseguiram se erguer sobre os próprios pés, separados agora, em equilíbrio precário e balouçante. Hiro Ito, como bom oriental, curvou-se repetidas vezes para a frente, agradecendo os aplausos. Celso, pegando a deixa, passou a fazer a mesma coisa, o que prolongou os aplausos e gerou uma nova onda de gargalhadas. Pareciam, dois bonecos de barro, movidos a pilha, em perfeito e tremelicante sincronismo.

Adorando seu novo papel de protagonista de comédia, Hiro encontrou com o pé a bola e partiu patinando, já caindo, em direção a Celso. A plateia delirou e aplaudiu, o jogo ia reiniciar!

Celso, contudo, permaneceu imóvel duro como se o barro que o recobria por inteiro tivesse endurecido de repente. Seus olhos não viam mais nada além da Vênus loira à sua frente, também ela rindo e aplaudindo aos pulinhos, mais linda do que nunca.

Mas a quota de surpresas da tarde ainda não estava completa. Ainda paralisado, apatetado, Celso viu quando o anjo loiro, de repente, tirou rapidamente as duas sandálias e, impossível acreditar, começou a correr em direção ao lodaçal onde ele e o japa estavam.

Não, não podia ser, ele devia estar delirando!

Não, não estava delirando, era ELA mesma. Pulando na lama!

E, embarrando toda a roupa imaculadamente branca, a carinha mimosa, os cabelos antes esvoaçantes, que se fizeram instantaneamente ninho de joão-de-barro. Com muito mais facilidades que os dois jogadores, ela conseguia se erguer e manter-se em equilíbrio, por mais que escorregasse. Não caía, jogava-se propositalmente nas poças. Depois levantava, pegava a bola, atirava com as mãos, ora em um, ora em outro dos contendores, de modo que o jogo além de recomeçar, tinha agora três jogadores.

Subitamente a joaninha-de-barro começou a acenar na direção onde estava Nicanor e clamou:

– Água, manda água! Água! – no que foi imediatamente secundada por seus dois parceiros.

O sardentinho acionou de novo a bomba, os jatos emergiram poderosos, Nicanor assumiu o leme e mandou a água pedida. Mas a moça, muito esperta, foi andando para o lado, até que saiu da faixa de lama, seguida pela chuva do eficiente Nicanor, pisando agora sobre uma larga faixa cimentada. Os parceiros entenderam a deixa e saíram também, ainda que aos trancos e barrancos. Pouco tempo depois já estavam todos praticamente livres do barro mais grosso sobre o corpo.

Livres, felizes, incrédulos com a ação da moça loira e... sim, maravilhados, como todos os outros homens!

Com a roupa leve e branca toda molhada, grudada ao corpo, a tanguinha certamente branca ficou plenamente evidente. Sob ela, na frente, um tênue triângulo, possivelmente loiro também ... E um busto, tão perfeito e rígido que dispensava sutiãs normalmente, fez-se notar pelos mamilos róseos sob o tecido da blusa, que a água fizera quase transparente.

A moça seguia rindo feliz, sem ligar para nada, como um anjo que de fato não tivesse qualquer maldade ou malícia. Mas, posto que todos os outros teriam, o anjo mais velho, o anjo protetor sempre de plantão, Fúlvio Rondelli, adiantou-se e envolveu sua anjinha protegida com seu próprio e amplo uniforme de mecânico da Teles Automóveis.  Fim de show, peonada!

Quando os três se consideraram razoavelmente limpos, fizeram sinal a Nicanor, que fez cessar as águas do dilúvio, depois dos 40 dias e 40 noites de inundação nos gramados de Amarante. Estavam ensopados, inundados de uma alegria que só as crianças sabem sentir num banho de chuva, dois meninos peladeiros e uma menina em êxtase de travessura.

– Cara, que demais! Há séculos que eu não curtia uma pelada no barro e um banho de chuva assim. Parece até mentira.

– Foi o máximo, Hiro. Eu me senti o moleque de Indaiatuba, você o japinha meu companheiro, o barro, a chuva... cara, como a gente pode ser feliz demais com tão pouca coisa!  E depois, mais incrível ainda, vem a Larissa se juntar à gente!

– Eu NUNCA brinquei na lama, nunca! Minha mãe nunca deixou. Eu morria de vontade, de banho de chuva também, mas minha mãe não deixava. Não podia sujar a roupa, não podia estragar o penteado... Ai, que maravilha hoje! Parece que é o dia mais feliz da minha vida e eu...

Não completou a frase, caiu num choro forte e sentido, o anjo protetor saltou sobre ela, deu-lhe o largo peito para se esconder, envolveu-a com o longo braço. E, para um Celso perplexo e assustado, explicou:

– É de alegria, doutor! Minha menina está chorando de alegria. Ela é assim, o senhor ainda não conhece. Não se impressione.

O anjo loiro de Rondelli virou o rosto para Celso e Hiro, sacudindo a cabeça em vários movimentos delicados de sim, com os lábios carnudos abertos num vasto sorriso de felicidade, os dentinhos alvos expostos em todo a sua perfeição. Mas dos olhos de água-marinha continuava a verter o dilúvio, um dilúvio de lágrimas que primeiro subiam e brilhavam ao sol da tarde quente, depois escorriam para baixo como dois rios de alegria, a sulcar o rosto harmonioso até perderem-se no mar do uniforme do enorme padrinho, tecido espesso e amigo que a envolvia totalmente, do pescoço quase até os pés.

Mais uma das incontáveis surpresas dela – pensou encantado Celso Teles –  Chorar assim, tanto, tanto, e é de alegria! Ah, sua musa era a criaturinha mais adorável da face da Terra! Como não amá-la? Como pudera ser tão imbecil a ponto de cogitar mandá-la embora da firma? Como viver sem poder vê-la, falar com ela todos os dias, ainda que fossem só as coisas triviais e áridas dos negócios de automóveis?

Mais algum tempo e Larissa se recompôs. Estava deslumbrante mesmo assim, toda encapotada num uniforme enorme de mecânico, os cabelos escorridos ainda pingando água, o rostinho molhado de água e lágrimas. Hiro Ito também estava embevecido, mas tratou de manter a compostura e arriscou:

–  Sim, senhor, seu malandro! Então, casou e não contou pro seu melhor amigo de infância, hein! Queria me fazer surpresa? Pois olhe que fez. Meus parabéns, seu gosto pra mulher evolui uma enormidade. É sua esposa, não é? E o senhor alto aqui é o seu sogro, é o pai dela?

Celso ficou sem reação na hora, olhou agoniado para Rondelli, à espera de uma ajuda. Mas quem falou foi Larissa, uma frase curta, que começou com um riso infantil e terminou séria, misteriosa, a voz perdendo amplitude:

– Eu? Eu, mas como?... Quem... me dera.

Celso estremeceu. Não, não podia tomar aquela última expressão como se fosse para ele. Não, era evidente o que a garota quis dizer: Quem lhe dera fosse filha de Fúlvio Rondelli. E não, é claro, esposa de Celso Teles! Ainda devaneou um instante mais, sorvendo o som daquelas palavras repetidamente na imaginação, até que o italiano veio botar ordem na casa. Enlaçou novamente sua menina, deu-lhe um beijo estalado no alto da cabeça molhada e falou:

Tesoro mio –  De fato, para ele, aquela era a sua filha querida, ainda que não a tivesse gerado.

Ela repousou de novo a cabeça no largo tórax de seu protetor. Sempre se repetindo, pensou de novo Celso Teles.

Ah, sim – pensava por sua vez a cabecinha loira –  como ela quisera tanto  e queria ainda que aquele homem alto e gentil tivesse sido o seu pai! E não aquele anão de jardim, como costumava referir-se a ele, em voz bem baixa, o seu querido Leon. Um anão de jardim careca e de pernas tortas, grosseiro e seco, prepotente e arrogante como poucos.

Hiro engoliu em seco e, muito constrangido por seu fora, tentou se explicar:

– Puxa, gente, foi mal. Mas juro que eu pensei, desculpem. É que parecia...

– Ele é meu padrinho. É o anjo bom que Deus botou na minha vida, porque teve pena de mim. E o senhor não tem nada que se desculpar, eu é que lhe agradeço ter brincado comigo, mesmo sem me conhecer.

Ora, ora, mas que coisa, onde já se viu, que moça mais delicada, mais respeitosa! Imagine, agradecer por ele ter brincado com ela sem a conhecer. Quem era aquela coisa linda, afinal. Vai ver era um anjo que caiu do céu com o dilúvio de Nicanor.

Hiro Ito era só mais um a pensar na menina de Rondelli como um anjo. Mas todos faziam isso, todos faziam...

Celso enfim retomou o controle da situação:

– Esta é a Larissa, afilhada do Rondelli, que você está conhecendo também agora. E minha mais nova funcionaria, é nossa trainee na Teles Automóveis. E o Rondelli, que também trabalha com a gente, é o melhor mecânico do mundo. Não é pai da Larissa, seu japinha burro, é padrinho dela.

Larissa, por fim, pareceu ter tomado consciência de sua situação física:

– Nossa, eu estou em petição de miséria! Minha roupa toda molhada e manchada, meu cabelo uma palha escorrida! Como é que eu vou voltar pro trabalho? E, quando eu chegar em casa, minha mãe vai me encher por horas com os seus chiliques.

Desta vez Celso pensou e agiu rápido:

– Vamos todos para a minha casa: O Fúlvio, você e o Hiro vêm comigo. Lá eu tenho vários banheiros e é onde o japinha vai ficar hospedado mesmo. Assim vocês tomam banho e, enquanto isso, eu dou um jeito nas roupas da Larissa.

– Um jeito como, chefe? – perguntou a garota, surpresa.

– Ah, isso deixe comigo, eu prometo que você não vai se arrepender.

E, dirigindo-se ao mestre de obras, falou:

– Nicanor, pegue o seu jipão, a gente pode molhar e embarrar o dito cujo à vontade. Você nos deixa lá, volta aqui e mais tarde, lá pelas seis, leva o meu Corolla lá em casa e eu trago você de volta pra cá.

– Que nada, gente. Pra que complicar? Deixa o coitado do Nicanor em paz. Seu Fúlvio vai no carro dele mesmo e vocês, seus pintos embarrados, assim como eu, vamos andar de carreta. Que tal?

–  OBA! –   O grito estridente e o salto para cima de Larissa, com os dois braços levantados, com direito a espadanar de água dos cabelos e tudo, respondeu por todos eles. Era definitivo. Quem era Celso para discordar?

Subiram na alta boleia do caminhão imenso de Hiro Ito e saíram sacolejando pelas ruas de Amarante. Na frente, em seu carro, foi Fúlvio Rondelli, que chegou à casa do chefe e ficou esperando por uma carreta que nunca aparecia. Caramba, será que pifou no caminho?

Não, no caminho uma moça loira, parecendo de novo uma moleca entre os dois homens, pedia a todo instante:

– Mais um pouco, só mais um pouquinho, Seu Hiro. Vamos andar mais um pouco, é tão maravilhoooso andar de carreta!

E quem era ele, Hiro para dizer não a um anjo? Ainda mais um anjo que dizia que andar de carreta era maravilhoooso! Claro que era.

Seguiram andando por Amarante mais um pouco, até que, de repente, a garota levou a mão à boca e falou:

– Ai, minha nossa, o padrinho! O coitado deve estar cansado de esperar pela gente. Ai, eu não tenho jeito mesmo! Vamos para casa do chefe, seu Hiro. E Deus lhe pague pelo passeio, pela
paciência.

Ah, aquela menina não existia, não podia existir! Vai ver o malandro do Celso tinha comprado, lá nas estranjas por onde andou, um robô japonês de última geração, um protótipo exclusivo, absoluto, da mulher perfeita!...

Celso, para variar, ficava mudo, no exercício da arte que aprendera a cultivar em sua expressão máxima, desde poucos dias atrás: a arte da contemplação muda e estática de uma deusa. Ah, como não amar Miss Paraíso?

CONTINUA

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