quarta-feira, 11 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 4 
MILTON MACIEL 

4 – LAS De RIOS, OLÉ!
(FIM DO CAP. 3: Sim, estava fisgado, irremediavelmente fisgado. O peixe morre pela boca, ele morrera pela boca ao dizer que aceitava contratar o anjo. Agora era tarde demais, tarde demais. Estava efetivamente fisgado! E tudo o que queria era fazer o mais rapidamente possível o percurso de volta para Amarante. Que belo fujão que ele era!)

Celso Teles chegou a Ribeirão Preto uma semana antes do previsto. E foi-se embora de volta para Amarante apenas dois dias depois. Apresentou justificativas um tanto esfarrapadas para sua equipe, tanto para a chegada inesperada, quanto para a partida apressada.

Em Ribeirão funcionava sua Teles Automóveis há quatro anos. Um negócio sólido, lucrativo e em plena expansão. Ali possuía o prédio enorme, com o terreno imenso e todas as instalações necessárias ao funcionamento de uma Revenda Classe A. O prestígio que ele soubera construir para sua empresa atraía clientes de toda a região, em si já muito grande e próspera, como chegava a lugares muito mais distantes: da própria capital, São Paulo, chegavam compradores mais do que interessados nos veículos da Teles. E vinham também de outras regiões do estado, assim como da vizinha Minas Gerais.

Celso e seus gestores souberam implantar uma política de preços que fazia seus automóveis sumamente mais interessantes para os interessados. E, somando-se a isso, tinham um sistema de compras de veículos usados que era único na região. Na compra muito bem feita e na impecável revisão e reforma dos automóveis estava o grande segredo do negócio: a margem de lucro, mantida propositalmente menor do que as das outras revendas, permitia a venda a preços substancialmente mais vantajosos para os compradores; e a garantia dada a todos os veículos usados, bem maior do que aquela que a concorrência dava, era um poderoso fator a pesar na hora de o comprador tomar sua decisão.

Com o passar do tempo, o conceito, o prestígio, a reputação de alta qualidade alcançada pela Teles Automóveis firmou-se em todo o estado de São Paulo. Havia sempre um desfile interminável de clientes interessados, quer pessoalmente, quer por telefone ou Internet. Vendas, de fato, estava muito longe de ser um problema para a Revenda.

Ainda mais que, no salão principal, flutuavam as jovens divas de Celso Teles: uma equipe de seis vendedoras escolhidas a dedo e treinadas longamente, para manterem os clientes absolutamente encantados. Seis moças de exuberante beleza, todas com formação superior em diversas áreas, exímias em comunicação e relações públicas. E impressionantemente capazes de discorrer sobre automóveis das mais diversas marcas, de falar sobre motores e câmbios automáticos, de discutir planilhas de crédito e financiamento com qualquer economista. Qualquer cliente potencial que caísse nas mãos de uma delas tornava-se imediatamente cliente cativo, a venda era certa.

A dirigi-las e treiná-las a joia maior da Teles Automóveis: Carmen Maria De Rios y Arsuña. Uma legítima espanhola, uma malaguenha que havia chegado ao Brasil com seus pais ainda criança. Seguindo a tradição das mulheres da família, preparada por sua mãe bailarina de flamenco, tornou-se, ela também, uma competente profissional de danças tradicionais espanholas. Durante os anos de sua adolescência integrou-se a um grupo de flamenco e passou a viajar com eles pelo Brasil, Uruguai e Argentina. Ficou vários anos sem voltar a Santos, lugar onde sua família vivia desde que chegara ao Brasil.

Um dia Carmencita voltou para casa. Tinha então 25 anos e não chegou em casa sozinha. Nos braços morenos trazia uma criança, Uma menininha tão encantadora quanto a mãe.  A pequena Gládis tornou-se o encanto e a ventura dos avós, que, ante a felicidade de terem a filha de volta e a dádiva daquela criança abençoada, nem se importaram quando Carmen lhes revelou que não tinha casado, que a menina era filha de uma relação com um cantor argentino de tangos, que era, ele sim, casado. E que não assumiu a criança. Foi quando Carmen decidiu deixar a carreira de bailarina e retornar ao ninho no Brasil, em busca da proteção do lar paterno, onde pudesse criar sua menininha com segurança e carinho.

Voltou a estudar, graduou-se em Marketing, foi trabalhar em uma grande concessionária de São Paulo, pósgraduou-se ali em Marketing Automobilístico. Enquanto isso, em Santos, a avó Mercedes tratou de manter bem viva e acesa a chama do flamenco na família: a pequena Gládis, que ficou com ela, aprendeu os bailes tradicionais desde que apenas começou a caminhar. Tornou-se tão perfeita na arte como sua mãe e sua avó.

Um dia um rapaz de Ribeirão Preto apareceu no Salão do Automóvel, no Anhembi, e ficou absolutamente fascinado por aquela dupla extraordinária, que conheceu em um estande da Mitsubishi Motors: Carmen Maria e Gládis, mãe a filha, igualmente belas, igualmente simpáticas, igualmente competentes, fechando negócio após negócio. Tinham então 38 e 17 anos de idade.

O homem de Ribeirão Preto passou algumas horas no estande, conversando com ambas. Identificou-se como dono de uma grande Revendedora de automóveis daquela cidade, mostrou fotos, pôsteres, gráficos, tabelas, comprou dois automóveis zero á vista e chegou onde queria: uma proposta de emprego para a dupla de mãe e filha, traduzida num convite para voarem para Ribeirão Preto e passarem alguns dias hospedadas no melhor hotel local, tudo por conta da empresa Teles Automóveis. Se gostassem do que veriam, ele lhe faria uma proposta irrecusável de trabalho.

E foi assim, semanas depois, que Carmen e Gládis De Rios mudaram-se para Ribeirão Preto e começaram a trabalhar com Celso Teles. Em pouco tempo, a competência comprovada de Carmen Maria levou-a a conquistar o cargo de gerente geral da loja. Gládis integrou-se à equipe de vendedoras, como a mais jovem entre as seis campeãs de venda da Teles. Passaram a ganhar dinheiro, ambas, como jamais haviam sonhado na vida. Logo depois, ela começou a trilhar a mesma senda da mãe, também nos estudos: entrou para uma faculdade e graduou-se, também ela, em Marketing.

O incansável e criativo Celso, quando as viu brincando no fim do expediente, dançando as duas um bailado flamenco apenas ao som de seus sapateados e estalar de dedos, viu que estava em frente de duas refinadíssimas artistas. Não deu outra, não sossegou enquanto não montou na cidade um grupo de dança flamenca, chegando ao ponto de ir buscar dois guitarristas pessoalmente na Espanha, pagando-lhes viagem e respeitáveis salários.

Os guitarristas adoraram a nova oportunidade, vinham de uma Espanha em crise braba de desemprego, agarraram-se com unhas e dentes ao novo grupo de baile, que Celso registrou com empresa com o nome de “De Rios Flamenco”.

As espanholitas, com ele as chamava, viveram dias ainda mais felizes: tinham uma sólida renda e ainda podiam se dedicar à arte de sua família. No grande espetáculo de estreia em Ribeirão Preto, casa lotada, Celso Teles lhes fez uma surpresa que quase as deixa desmaiadas, sem fôlego:

No início da segunda parte, quando as cortinas subiram, um número extraprograma aconteceu. Combinado em segredo previamente com os dois guitarristas, luzes esmaecidas no palco, uma figura esguia entra em cena, envolta em um amplo xale negro e começa a evoluir no flamenco com uma mestria de tirar o fôlego. Carmen e Gládis, olharam-se boquiabertas. Só uma autêntica bailarina espanhola poderia fazer aquilo e ainda tocar castanholas com tal perfeição. Quem era essa que o maluco do Celso arranjara agora?

Então, num súbito arremesso, a bailarina jogou ao chão o amplo xale, a luz se fez forte e revelou o rosto de uma mulher madura e de uma dançarina requintada. Era Mercedes de Rios, do alto da experiência dos seus sempre delgados e atléticos 60 anos!

A cena seguinte foi comovente e deixou a plateia eletrizada a ponto de aplaudir por mais de cinco minutos ininterruptamente: a filha e a neta de Mercedes entraram em cena e abraçaram-se à bailarina que ainda dançava. 

Celso Teles em pessoa apareceu no palco e explicou ao público quem era a bailarina misteriosa e qual a sua relação com as outras duas moças, para as quais ele tinha armado aquela surpresa sensacional.  O auditório veio abaixo em aplausos e gritos de olé, especialmente quando os guitarristas voltaram a tocar e, agora, as três bailarinas passaram a executar um bailado tão extraordinário, tão perfeito, tão em sincronia, que era muito difícil acreditar que aquilo era na verdade um improviso inesperado e jamais ensaiado.

Se as duas espanholitas já tinham verdadeira adoração pelo “jefe”, com o chamavam carinhosamente, daquele dia em diante passaram a idolatrá-lo. Fariam qualquer coisa por ele!

Algum tempo depois aconteceu a grande oportunidade de elas demonstrarem sua gratidão ao jefe e amigo: aconteceu a desgraça na vida de Celso, o casamento dele terminou de repente e ele decidiu deixar para sempre seus negócios e imóveis em Ribeirão Preto e Sertãozinho. Mais uma vez ele quis fugir de uma mulher que o magoou muito, um evento recorrente em sua vida, e tratou de criar uma sólida distância prática entre Rosana e ele.

Reuniu suas funcionárias e funcionários, revelou-lhes que estava vendendo a firma e que os novos proprietários, na verdade uma grande empresa de São Paulo, os assumiria a todos, depois que eles fossem indenizados pela Teles Automóveis. Para eles, um considerável dinheiro inesperado viria folgar ou desafogar suas contas.

Poucos, no entanto, ficaram felizes com a notícia. E quando souberam que o chefe ia se transferir para uma cidade relativamente pequena em Santa Catarina, na região de Blumenau, onde ativaria um negócio similar com automóveis, muitos manifestaram o desejo de migrarem para o Sul com o aquele Celso Teles tão humano e tão generoso.

Para as espanholitas foi o momento de demonstrarem o quanto amavam seu jefe. As duas, imediatamente, ofereceram-se para mudar para o novo negócio. Celso tentou dissuadi-las, mostrando que elas poderiam ter muito a perder. Tinham suas vidas estabilizadas e prósperas em Ribeirão Preto, tinham acabado de comprar um apartamento grande e ainda tinham o De Rios Flamenco em pleno funcionamento, agora inclusive também como uma escola de danças espanholas, sob a direção da experiente Mercedes De Rios, que havia conseguido convencer o cabeça dura do Pablo, seu marido, a sair de Santos depois de mais de duas décadas de residência ali.

Elas tinham, portanto, toda uma estrutura montada, excelentes rendimentos e os avós de Gládis ali ao lado delas. Celso achava que as perdas delas seriam imensas e se opunha a que isso acontecesse com pessoas amigas, por quem ele tinha tanta afeição.

– Ora, jefe, você nos paga muito bem aqui, com certeza vai fazer a mesma coisa lá – argumentou Carmen.

– Mas... e o De Rios Flamenco?

– A gente começa outra por lá – retrucou uma sorridente Gládis, cujo olhar sempre decidido e altivo mostrava que não aceitaria um não como resposta.

– Não adianta, jefe. Não tem desculpa, de nós você não vai fugir.

– Isso mesmo, mãe. Ele pode fugir de umas e outras cadelas,  mas de suas escudeiras aqui ele não foge.

– Mas o lugar é muito menor e vocês nem conhecem...

– Não importa, jefe. Não importa o lugar, com você nós vamos até o inferno.

– Mas, Carmen, eu não tenho coragem de expor vocês a uma mudança tão drástica assim.

– Mas nós temos coragem, por você e por nós, não é, mãe? E chega, Seu Celso Teles, onde a Teles Automóveis for, suas espanholitas vão junto. E, por favor, chega de falar nisso.

– Isso mesmo, filha. Que nós vamos está resolvido, não se discute mais. Só diga QUANDO e nós estaremos prontas para ir.

Celso, evidentemente ficou extremamente comovido com a atitude das duas. Aquilo era muito mais do que lealdade e gratidão, era acima de tudo uma demonstração de caráter! Abraçou longamente mãe e filha e levou-as para um restaurante espanhol, tomando o cuidado de, antes, recolherem Pablo e Mercedes para selar o grande novo acordo. Ali, sob tragos de sangria e música espanhola, ficou acertado que os avós manteriam a De Rios Flamenco em Ribeirão Preto, A filha e a neta mudariam para a tal cidade do Sul ainda desconhecida, e viriam dançar sempre que houvesse espetáculo a apresentar em qualquer lugar do Brasil. Mantinham o trabalho em revenda de automóveis padrão Celso Teles e mantinham ativa a vida artística também.

O exemplo das duas espanholitas repercutiu fortemente sobre outras pessoas da equipe de Celso. Mais duas moças, Paula e Jeniffer juraram fidelidade e se dispuseram a mudar para o Sul também. O resto do pessoal, com famílias e outros interesses em Ribeirão, preferiram ficar e usufruir das indenizações e das mesmas posições sob a nova administração da Revenda.

Por isso tudo, quando Celso apareceu inesperadamente em Ribeirão Preto, colhendo as espanholitas de surpresa, elas se dispuseram a viajar com ele para a tal Amarante imediatamente. Nos dois dias em que ficou na cidade, o jefe tomou todas as providências para o embarque do seu estoque de automóveis nas diversas carretas que os levariam para o Sul. Despediu-se mais uma vez dos antigos colaboradores que ficavam na nova empresa e, com isso, cortou de vez os laços que o prendiam à cidade.

Adeus Ribeirão Preto, adeus lembranças de Rosana, adeus aos quatro anos em que fora tão feliz ali e em Sertãozinho. Pela frente o horizonte de uma nova vida, uma nova Revendedora, uma nova cidade e os desafios do recomeço.

Nesse mesmo horizonte, antevia e temia nuvens brilhantes, cor de água marinha, que poderiam se tornar sombrias para ele. Nesse horizonte pairavam as asas de um anjo loiro que tinha tudo para fazê-lo passar por seus costumeiros desastres afetivos, sua recorrente miséria de amor.

No avião, ao lado das duas maravilhosas espanholitas, ele ia em silêncio, evocando o anjo e seus perigos. Possivelmente estava marchando para mais um Waterloo. Mas não tinha mais como correr dessa coisa toda. Estava vencido. Nem mesmo fugir de Larissa ele tinha conseguido.

Gládis olhava-o a todo instante de soslaio. Aí tem coisa! Depois de algum tempo comentou com a mãe a estranha postura silenciosa do sempre risonho e animado Celso.

– Aí tem coisa, mãe – cochichou – e eu rasgo meu diploma se não for mulher!

– É, você pode ter razão minha filha. Também achei o Celso muito estranho, muito calado, olhando longe como quem quer ver algo que não se pode ver ...

– Pois eu aposto, mãe, minha intuição me grita isso. Tomara que, desta vez, seja alguém que tenha dignidade, mãe, que não seja uma vagabunda como a Rosana.

– Verdade, minha filha. Se há alguém neste mundo que merece encontrar a felicidade, esse alguém é essa doce de criatura. Ele está com uns olhos tão tristinhos, será que ainda é por causa daquela cadela?

– Não, mãe, eu acho que é outra coisa, parece que ele está com um olhar que, para mim, é de medo.

– Isso eu não sei, minha filha. Mas você, com essa sua intuição sem igual, essa sua enorme antena parabólica para o além, via de regra está sempre certa.

– Desta vez também estou, mãe. Pode apostar. Quando chegarmos lá, eu descubro e sinalizo para você. Sinalizo quem. Quem é essa pessoa, essa mulher, de quem o Celso está morrendo de medo.

– Ah, Gládis, Gládis, você devia abrir uma banca com uma bola de cristal. Ia ganhar rios de dinheiro.

– Isso eu já ganho com o Celso, mãe. E com o nosso flamenco também.

– Tem razão, minha filha. Bendita hora em que esse rapaz nos descobriu lá em São Paulo.

– Bendita hora, mãe. Ele parece que tem o dom de transformar a vida das pessoas para melhor. Veja o que houve com nós duas e com os avós.

– E com tantos outros lá na firma, em Ribeirão, não é?

– É. Mas olhe, mãe, ele agora conseguiu dormir. Está em paz, enfim.

– Pena que seja por tão pouco tempo, este voo é tão curto...

CONTINUA...

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