MILTON MACIEL
4 – LAS De RIOS, OLÉ!
(FIM DO CAP. 3: Sim, estava fisgado, irremediavelmente fisgado. O peixe morre pela boca, ele morrera pela boca ao dizer que aceitava contratar o anjo. Agora era tarde demais, tarde demais. Estava efetivamente fisgado! E tudo o que queria era fazer o mais rapidamente possível o percurso de volta para Amarante. Que belo fujão que ele era!)
Celso Teles chegou a
Ribeirão Preto uma semana antes do previsto. E foi-se embora de volta para
Amarante apenas dois dias depois. Apresentou justificativas um tanto
esfarrapadas para sua equipe, tanto para a chegada inesperada, quanto para a
partida apressada.
Em Ribeirão funcionava
sua Teles Automóveis há quatro anos.
Um negócio sólido, lucrativo e em plena expansão. Ali possuía o prédio enorme,
com o terreno imenso e todas as instalações necessárias ao funcionamento de uma
Revenda Classe A. O prestígio que ele soubera construir para sua empresa atraía
clientes de toda a região, em si já muito grande e próspera, como chegava a
lugares muito mais distantes: da própria capital, São Paulo, chegavam
compradores mais do que interessados nos veículos da Teles. E vinham também de
outras regiões do estado, assim como da vizinha Minas Gerais.
Celso e seus gestores
souberam implantar uma política de preços que fazia seus automóveis sumamente
mais interessantes para os interessados. E, somando-se a isso, tinham um
sistema de compras de veículos usados que era único na região. Na compra muito
bem feita e na impecável revisão e reforma dos automóveis estava o grande
segredo do negócio: a margem de lucro, mantida propositalmente menor do que as
das outras revendas, permitia a venda a preços substancialmente mais vantajosos
para os compradores; e a garantia dada a todos os veículos usados, bem maior do
que aquela que a concorrência dava, era um poderoso fator a pesar na hora de o
comprador tomar sua decisão.
Com o passar do tempo, o
conceito, o prestígio, a reputação de alta qualidade alcançada pela Teles
Automóveis firmou-se em todo o estado de São Paulo. Havia sempre um desfile
interminável de clientes interessados, quer pessoalmente, quer por telefone ou Internet.
Vendas, de fato, estava muito longe de ser um problema para a Revenda.
Ainda mais que, no salão
principal, flutuavam as jovens divas de Celso Teles: uma equipe de seis
vendedoras escolhidas a dedo e treinadas longamente, para manterem os clientes
absolutamente encantados. Seis moças de exuberante beleza, todas com formação
superior em diversas áreas, exímias em comunicação e relações públicas. E
impressionantemente capazes de discorrer sobre automóveis das mais diversas
marcas, de falar sobre motores e câmbios automáticos, de discutir planilhas de
crédito e financiamento com qualquer economista. Qualquer cliente potencial que
caísse nas mãos de uma delas tornava-se imediatamente cliente cativo, a venda
era certa.
A dirigi-las e treiná-las
a joia maior da Teles Automóveis: Carmen Maria De Rios y Arsuña. Uma legítima
espanhola, uma malaguenha que havia chegado ao Brasil com seus pais ainda
criança. Seguindo a tradição das mulheres da família, preparada por sua mãe
bailarina de flamenco, tornou-se, ela também, uma competente profissional de
danças tradicionais espanholas. Durante os anos de sua adolescência integrou-se
a um grupo de flamenco e passou a viajar com eles pelo Brasil, Uruguai e
Argentina. Ficou vários anos sem voltar a Santos, lugar onde sua família vivia
desde que chegara ao Brasil.
Um dia Carmencita voltou
para casa. Tinha então 25 anos e não chegou em casa sozinha. Nos braços morenos
trazia uma criança, Uma menininha tão encantadora quanto a mãe. A pequena Gládis tornou-se o encanto e a
ventura dos avós, que, ante a felicidade de terem a filha de volta e a dádiva
daquela criança abençoada, nem se importaram quando Carmen lhes revelou que não
tinha casado, que a menina era filha de uma relação com um cantor argentino de
tangos, que era, ele sim, casado. E que não assumiu a criança. Foi quando
Carmen decidiu deixar a carreira de bailarina e retornar ao ninho no Brasil, em
busca da proteção do lar paterno, onde pudesse criar sua menininha com
segurança e carinho.
Voltou a estudar, graduou-se
em Marketing, foi trabalhar em uma grande concessionária de São Paulo,
pósgraduou-se ali em Marketing Automobilístico. Enquanto isso, em Santos, a avó
Mercedes tratou de manter bem viva e acesa a chama do flamenco na família: a
pequena Gládis, que ficou com ela, aprendeu os bailes tradicionais desde que
apenas começou a caminhar. Tornou-se tão perfeita na arte como sua mãe e sua
avó.
Um dia um rapaz de
Ribeirão Preto apareceu no Salão do Automóvel, no Anhembi, e ficou
absolutamente fascinado por aquela dupla extraordinária, que conheceu em um
estande da Mitsubishi Motors: Carmen Maria e Gládis, mãe a filha, igualmente
belas, igualmente simpáticas, igualmente competentes, fechando negócio após
negócio. Tinham então 38 e 17 anos de idade.
O homem de Ribeirão Preto
passou algumas horas no estande, conversando com ambas. Identificou-se como
dono de uma grande Revendedora de automóveis daquela cidade, mostrou fotos, pôsteres,
gráficos, tabelas, comprou dois automóveis zero á vista e chegou onde queria: uma
proposta de emprego para a dupla de mãe e filha, traduzida num convite para
voarem para Ribeirão Preto e passarem alguns dias hospedadas no melhor hotel
local, tudo por conta da empresa Teles Automóveis. Se gostassem do que veriam,
ele lhe faria uma proposta irrecusável de trabalho.
E foi assim, semanas
depois, que Carmen e Gládis De Rios mudaram-se para Ribeirão Preto e começaram
a trabalhar com Celso Teles. Em pouco tempo, a competência comprovada de Carmen
Maria levou-a a conquistar o cargo de gerente geral da loja. Gládis integrou-se
à equipe de vendedoras, como a mais jovem entre as seis campeãs de venda da
Teles. Passaram a ganhar dinheiro, ambas, como jamais haviam sonhado na vida.
Logo depois, ela começou a trilhar a mesma senda da mãe, também nos estudos:
entrou para uma faculdade e graduou-se, também ela, em Marketing.
O incansável e criativo
Celso, quando as viu brincando no fim do expediente, dançando as duas um
bailado flamenco apenas ao som de seus sapateados e estalar de dedos, viu que
estava em frente de duas refinadíssimas artistas. Não deu outra, não sossegou
enquanto não montou na cidade um grupo de dança flamenca, chegando ao ponto de
ir buscar dois guitarristas pessoalmente na Espanha, pagando-lhes viagem e
respeitáveis salários.
Os guitarristas adoraram
a nova oportunidade, vinham de uma Espanha em crise braba de desemprego,
agarraram-se com unhas e dentes ao novo grupo de baile, que Celso registrou com
empresa com o nome de “De Rios Flamenco”.
As espanholitas, com ele
as chamava, viveram dias ainda mais felizes: tinham uma sólida renda e ainda
podiam se dedicar à arte de sua família. No grande espetáculo de
estreia em Ribeirão Preto, casa lotada, Celso Teles lhes fez uma surpresa que
quase as deixa desmaiadas, sem fôlego:
No início da segunda
parte, quando as cortinas subiram, um número extraprograma aconteceu. Combinado
em segredo previamente com os dois guitarristas, luzes esmaecidas no palco, uma
figura esguia entra em cena, envolta em um amplo xale negro e começa a evoluir
no flamenco com uma mestria de tirar o fôlego. Carmen e Gládis, olharam-se
boquiabertas. Só uma autêntica bailarina espanhola poderia fazer aquilo e ainda
tocar castanholas com tal perfeição. Quem era essa que o maluco do Celso
arranjara agora?
Então, num súbito arremesso,
a bailarina jogou ao chão o amplo xale, a luz se fez forte e revelou o rosto de
uma mulher madura e de uma dançarina requintada. Era Mercedes de Rios, do alto
da experiência dos seus sempre delgados e atléticos 60 anos!
A cena seguinte foi comovente
e deixou a plateia eletrizada a ponto de aplaudir por mais de cinco minutos
ininterruptamente: a filha e a neta de Mercedes entraram em cena e abraçaram-se
à bailarina que ainda dançava.
Celso Teles em pessoa
apareceu no palco e explicou ao público quem era a bailarina misteriosa e qual
a sua relação com as outras duas moças, para as quais ele tinha armado aquela
surpresa sensacional. O auditório veio
abaixo em aplausos e gritos de olé, especialmente quando os guitarristas
voltaram a tocar e, agora, as três bailarinas passaram a executar um bailado
tão extraordinário, tão perfeito, tão em sincronia, que era muito difícil
acreditar que aquilo era na verdade um improviso inesperado e jamais ensaiado.
Se as duas espanholitas
já tinham verdadeira adoração pelo “jefe”, com o chamavam carinhosamente,
daquele dia em diante passaram a idolatrá-lo. Fariam qualquer coisa por ele!
Algum tempo depois
aconteceu a grande oportunidade de elas demonstrarem sua gratidão ao jefe e
amigo: aconteceu a desgraça na vida de Celso, o casamento dele terminou de
repente e ele decidiu deixar para sempre seus negócios e imóveis em Ribeirão
Preto e Sertãozinho. Mais uma vez ele quis fugir de uma mulher que o magoou
muito, um evento recorrente em sua vida, e tratou de criar uma sólida distância
prática entre Rosana e ele.
Reuniu suas funcionárias
e funcionários, revelou-lhes que estava vendendo a firma e que os novos
proprietários, na verdade uma grande empresa de São Paulo, os assumiria a
todos, depois que eles fossem indenizados pela Teles Automóveis. Para eles, um
considerável dinheiro inesperado viria folgar ou desafogar suas contas.
Poucos, no entanto,
ficaram felizes com a notícia. E quando souberam que o chefe ia se transferir
para uma cidade relativamente pequena em Santa Catarina, na região de Blumenau,
onde ativaria um negócio similar com automóveis, muitos manifestaram o desejo
de migrarem para o Sul com o aquele Celso Teles tão humano e tão generoso.
Para as espanholitas foi
o momento de demonstrarem o quanto amavam seu jefe. As duas, imediatamente,
ofereceram-se para mudar para o novo negócio. Celso tentou dissuadi-las,
mostrando que elas poderiam ter muito a perder. Tinham suas vidas estabilizadas
e prósperas em Ribeirão Preto, tinham acabado de comprar um apartamento grande
e ainda tinham o De Rios Flamenco em pleno funcionamento, agora inclusive
também como uma escola de danças espanholas, sob a direção da experiente
Mercedes De Rios, que havia conseguido convencer o cabeça dura do Pablo, seu
marido, a sair de Santos depois de mais de duas décadas de residência ali.
Elas tinham, portanto,
toda uma estrutura montada, excelentes rendimentos e os avós de Gládis ali ao
lado delas. Celso achava que as perdas delas seriam imensas e se opunha a que
isso acontecesse com pessoas amigas, por quem ele tinha tanta afeição.
– Ora, jefe, você nos
paga muito bem aqui, com certeza vai fazer a mesma coisa lá – argumentou
Carmen.
– Mas... e o De Rios
Flamenco?
– A gente começa outra
por lá – retrucou uma sorridente Gládis, cujo olhar sempre decidido e altivo
mostrava que não aceitaria um não como resposta.
– Não adianta, jefe. Não
tem desculpa, de nós você não vai fugir.
– Isso mesmo, mãe. Ele
pode fugir de umas e outras cadelas, mas de suas escudeiras aqui ele não foge.
– Mas o lugar é muito
menor e vocês nem conhecem...
– Não importa, jefe. Não
importa o lugar, com você nós vamos até o inferno.
– Mas, Carmen, eu não
tenho coragem de expor vocês a uma mudança tão drástica assim.
– Mas nós temos coragem,
por você e por nós, não é, mãe? E chega, Seu Celso Teles, onde a Teles
Automóveis for, suas espanholitas vão junto. E, por favor, chega de falar
nisso.
– Isso mesmo, filha. Que
nós vamos está resolvido, não se discute mais. Só diga QUANDO e nós estaremos
prontas para ir.
Celso, evidentemente
ficou extremamente comovido com a atitude das duas. Aquilo era muito mais do
que lealdade e gratidão, era acima de tudo uma demonstração de caráter! Abraçou
longamente mãe e filha e levou-as para um restaurante espanhol, tomando o
cuidado de, antes, recolherem Pablo e Mercedes para selar o grande novo acordo.
Ali, sob tragos de sangria e música espanhola, ficou acertado que os avós
manteriam a De Rios Flamenco em Ribeirão Preto, A filha e a neta mudariam para a
tal cidade do Sul ainda desconhecida, e viriam dançar sempre que houvesse
espetáculo a apresentar em qualquer lugar do Brasil. Mantinham o trabalho em
revenda de automóveis padrão Celso Teles e mantinham ativa a vida artística
também.
O exemplo das duas
espanholitas repercutiu fortemente sobre outras pessoas da equipe de Celso.
Mais duas moças, Paula e Jeniffer juraram fidelidade e se dispuseram a mudar
para o Sul também. O resto do pessoal, com famílias e outros interesses em
Ribeirão, preferiram ficar e usufruir das indenizações e das mesmas posições
sob a nova administração da Revenda.
Por isso tudo, quando
Celso apareceu inesperadamente em Ribeirão Preto, colhendo as espanholitas de
surpresa, elas se dispuseram a viajar com ele para a tal Amarante
imediatamente. Nos dois dias em que ficou na cidade, o jefe tomou todas as
providências para o embarque do seu estoque de automóveis nas diversas carretas
que os levariam para o Sul. Despediu-se mais uma vez dos antigos colaboradores
que ficavam na nova empresa e, com isso, cortou de vez os laços que o prendiam
à cidade.
Adeus Ribeirão Preto,
adeus lembranças de Rosana, adeus aos quatro anos em que fora tão feliz ali e
em Sertãozinho. Pela frente o horizonte de uma nova vida, uma nova Revendedora,
uma nova cidade e os desafios do recomeço.
Nesse mesmo horizonte,
antevia e temia nuvens brilhantes, cor de água marinha, que poderiam se tornar
sombrias para ele. Nesse horizonte pairavam as asas de um anjo loiro que tinha
tudo para fazê-lo passar por seus costumeiros desastres afetivos, sua
recorrente miséria de amor.
No avião, ao lado das
duas maravilhosas espanholitas, ele ia em silêncio, evocando o anjo e seus
perigos. Possivelmente estava marchando para mais um Waterloo. Mas não tinha
mais como correr dessa coisa toda. Estava vencido. Nem mesmo fugir de Larissa
ele tinha conseguido.
Gládis olhava-o a todo
instante de soslaio. Aí tem coisa!
Depois de algum tempo comentou com a mãe a estranha postura silenciosa do
sempre risonho e animado Celso.
– Aí tem coisa, mãe –
cochichou – e eu rasgo meu diploma se não for mulher!
– É, você pode ter razão
minha filha. Também achei o Celso muito estranho, muito calado, olhando longe
como quem quer ver algo que não se pode ver ...
– Pois eu aposto, mãe,
minha intuição me grita isso. Tomara que, desta vez, seja alguém que tenha
dignidade, mãe, que não seja uma vagabunda como a Rosana.
– Verdade, minha filha.
Se há alguém neste mundo que merece encontrar a felicidade, esse alguém é essa
doce de criatura. Ele está com uns olhos tão tristinhos, será que ainda é por
causa daquela cadela?
– Não, mãe, eu acho que é
outra coisa, parece que ele está com um olhar que, para mim, é de medo.
– Isso eu não sei, minha
filha. Mas você, com essa sua intuição sem igual, essa sua enorme antena
parabólica para o além, via de regra está sempre certa.
– Desta vez também estou,
mãe. Pode apostar. Quando chegarmos lá, eu descubro e sinalizo para você.
Sinalizo quem. Quem é essa pessoa, essa mulher, de quem o Celso está morrendo
de medo.
– Ah, Gládis, Gládis,
você devia abrir uma banca com uma bola de cristal. Ia ganhar rios de dinheiro.
– Isso eu já ganho com o
Celso, mãe. E com o nosso flamenco também.
– Tem razão, minha filha.
Bendita hora em que esse rapaz nos descobriu lá em São Paulo.
– Bendita hora, mãe. Ele
parece que tem o dom de transformar a vida das pessoas para melhor. Veja o que
houve com nós duas e com os avós.
– E com tantos outros lá
na firma, em Ribeirão, não é?
– É. Mas olhe, mãe, ele
agora conseguiu dormir. Está em paz, enfim.
– Pena que seja por tão
pouco tempo, este voo é tão curto...
CONTINUA...
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