sábado, 28 de novembro de 2015



LUA  OCULTA – 17   
MILTON MACIEL  

17 - ADOLFO SCHLIKMANN
Fim do cap. 16: "Gládis fez sinal com a cabeça que sim, não queria que a mulher entrasse naquele assunto e fosse ficar contando papagaiadas horas a fio. O marido dela comentou:

– Filha minha e mulher minha não precisam trabalhar fora. Não precisam, nem eu deixo. Vão precisar de três gerações para gastar todo o meu dinheiro, essas dondocas."


Madame Silvá fez que sim, orgulhosa. Gládis sorriu, gentil. E feliz, porque imaginou que estava dando uma tremenda joelhada no saco daquele baixinho petulante. Macaco imbecil! Pobre da sua Fofinha, crescendo nas mãos daquele orangotango e daquela mula! Ah, mas ela ia dar um jeito nisso, ou não se chamava Gládis de Rios...

Estavam estabelecendo as primeiras negociações, envolvendo o Mercedes mais caro da empresa, quando viram entrar os Schlikmann. Gládis sorriu, pensando:

Bem que esses dois imbecis podiam sair no braço, como aqueles outros idiotas há pouco, lá fora. Ah, que pena que ela não podia mais ofertar o mesmo carro para aquele alemão alto e antipático, só pra ver aqueles dois ascos se pegarem a tapa. Que vomitórios, os dois!

Aí teve um lampejo e fez sinal para Jennifer, que estava entrando na loja naquele momento, para que ela atendesse Adolfo Schlikmann. Lamentou pela colega, mas precisava ver se aconteceria o que estava imaginando.

Jennifer, a vendedora que chegara horas atrás de Ribeirão Preto, junto com sua colega Paula, não era loira, nem morena, nem mulata. Jennifer era  NEGRA! Sua pele brilhava naturalmente, com um preto retinto quase azulado, lindo de se ver. E, como todas na equipe de Celso Teles, era uma mulher de uma beleza impressionante. Traços africanos característicos, uma boca carnuda que era puro rasgo de sensualidade, alta de um porte altivo e elegante, uma bunda cinematográfica, a maior da equipe. O torneado das pernas era também uma coisa de cinema. Tudo nela inspirava classe e superioridade natural, sem qualquer pose ou afetação. Carmen De Rios gostava de chamá-la “minha Rainha Negra”, “Rainha de Sabá sem Salomäo”, “Deusa da África”.

Até porque, muito mais do que isso, Jennifer tinha algo que a fazia a favorita total de sua chefe: Jennifer era uma mulher muito culta. Formada e pós-graduada em Letras, tinha sido antes professora de inglês em escolas secundárias e depois professora universitária em Ribeirão, especializada em literatura portuguesa de Portugal e das ex-colônias. Trabalhava, nas horas vagas, como tradutora e escrevia contos, que esperava poder publicar um dia, quando achasse que atingira a maturidade que visava.

Mesmo assim, os seus proventos eram muito limitados. Só soube o que foi ganhar dinheiro de verdade quando, a instâncias e insistências de Carmen, começou a trabalhar na Teles Automóveis de Ribeirão Preto, como vendedora.

Em pouco tempo, uma espécie de Miss Simpatia nata e uma incontestável Rainha Africana, tornou-se, também ela, uma das campeãs de vendas. Naturalmente, de vez em quando enfrentava problemas com racistas. Era o que Gládis queria testar agora.

Quando aquela negra alta e elegante foi atendê-lo, Schlikmann fechou ainda mais a cara, já de normal tão amarrada que parecia enxovalhada. Era um homem muito alto, com um metro e oitenta e cinco, magro, com uma face de cera muito enrugada. De idade, andava na casa dos setenta e cinco anos. O cabelo era curto e ralo, totalmente branco, mantido no corte escovinha típico dos militares, o que ele nunca tinha sido Por incrível que pudesse parecer, não precisava usar óculos. Seus olhos azuis acinzentados, frios e penetrantes, eram, por isso mesmo, a parte mais destacada no todo do seu rosto.

Seu porte mostrava um homem levemente encurvado para a frente, mas que tinha um passo estugado e rígido. E andava sempre olhando para a frente e um pouco para cima, o que lhe dava uma aparência de arrogância que, a bem da verdade, nada tinha de aparente, porque era mais do que real. Era tido por todos, de uma forma generalizada, como um homem muito antipático e orgulhoso.

O orgulho provinha, obviamente, de sua posição de chefe da família mais importante do lugar, descendente direto dos primeiros Schlikmann, alemães fundadores da cidade, junto com os italianos da Calábria, os Piacenzi. Mas estes tinham entrado em declínio e só a estirpe dos alemães sobrevivera ao duro passar do tempo, tornando-se estes alemães cada vez mais ricos e poderosos. A curva ascendente da riqueza da família durou até seu pai, o velho Heinz, o primeiro a perder dinheiro e começar a liquidar patrimônio na família. Colaborou para isso o alcoolismo. E, também, seu vício de jogo, que o levava a viajar constantemente para a Europa, em busca dos grandes cassinos, como o de Monte Carlo, onde perdeu boa parte do patrimônio da família.

Quando o velho Heinz se foi, consequência de uma bala de 38 que teve por bem guardar dentro de sua própria cabeça, o jovem Adolfo exultou de felicidade. Estava, a um só tempo, livre daquele maldito estrupício detestável e passava, instantânea e inesperadamente, a poder dispor de toda a fortuna restante da família.  Dispor em termos, porque havia aquela idiota da sua irmã Helga, que fizera a estupidez de engravidar de um brasileiro comum, pobre e sem profissão definida, um mero vendedor de loja de sapatos; um reles Souza, desses que caem aos milhares cada vez que se chuta uma árvore no Brasil. E, pior, casado!

Fiel seguidor dos velhos métodos, a que recorrera muitas vezes no passado, Heinz Schlikmann , quando soube da gravidez da filha, mandou buscar um dos seus homens de confiança na fazenda de Lages e encomendou-lhe o passamento do infeliz balconista. Mas, na última hora viu-se obrigado a mudar o alvo das balas do pistoleiro.

Depois de dar várias surras violentíssimas na filha grávida, sempre tomando o cuidado de chutar-lhe a barriga diversas vezes, o alemão compreendeu que não havia jeito de convencer aquela cabeça dura a abortar a criança, a óbvia solução para o problema. A filha, estúpida e sentimental, defeito recorrente de todas as mulheres para ele, obstinava-se em ter o filho. Foi então que Heinz capitulou e resolveu casar a filha com aquele maldito balconista. Mas como o bastardo já era casado, mandou o pistoleiro matar a mulher dele e consagrou-o viúvo.

O casamento foi feito às pressas, dois meses depois apenas, que a barriga da filha não permitia mais delongas. Foi feito na discreta capelinha da fazenda de Lages, onde a filha e o desgraçado do genro foram obrigados a ficar pelos próximos dois anos, sem ousar aparecer em Amarante com aquela criança de má semente, um Souza – semente maldita que o velho Heinz suspeitava que tivesse um pé na África, nódoa a conspurcar a sangue ariano puro dos Schlikmann.

Ainda estavam lá quando o velho Heinz, durante um porre fenomenal, teve a abençoada ideia de acabar com a própria vida. Aberto o testamento, soube-se que todos os bens haviam ficado para o filho Adolfo, com exceção da fazenda de Lages, único bem deixado à ingrata da filha mais velha. Adolfo não se conformou, eram mais de 600 hectares de pasto de primeira qualidade, com várias centenas de bois na engorda. Valia muito dinheiro e era o único bem do espólio que tinha liquidez garantida, bastaria um único anúncio e seria vendida de um dia para o outro.

Por isso, dois meses depois da morte de Heinz Schlikmann, a desgraça voltou a se abater sobre aquela família infeliz. A fazenda foi assaltada por um bando de ladrões de gado, em plena madrugada. E os desalmados, não satisfeitos em sumirem com mais de 150 cabeças de gado gordo, ainda entraram na casa e promoveram uma chacina, matando a irmã, o cunhado e o sobrinho de Adolfo Schlikmann, de um ano e meio apenas. E também a velha empregada que dormia na casa com os patrões.

Foi um dos crimes mais bárbaros cometidos no município e um dos poucos que ficou sem solução, face à extrema lentidão do processo investigativo, que parecia contar com toda a má vontade da autoridade policial local.

Pouco depois da perda irreparável dos parentes, um inconsolável Adolfo apresentou ao advogado inventariante uma via do testamento do velho Heinz, em que só ele figurava como herdeiro único de todos os bens, a fazenda de Lages, inclusive. O patriarca, desiludido e magoado com o comportamento mesquinho da filha, vergonha da família, a deserdava nesse mesmo documento. Mas, coração de ouro, permitira-lhe ficar morando na fazenda dele, com dó do netinho, criança inocente que não tinha culpa de nada.

Presente ao ato, para garantir a autenticidade do documento, o Doutor Alcebíades Moro, dono do tabelionato de Blumenau onde o testamento fora lavrado (e relavrado em sigilo, no melhor estilo dos velhos caxixes nordestinos, ao módico custo de mais cem cabeças de gado gordo de Lages).

Assim, tudo esclarecido, legalizado e perfeito, Adolfo Schlikmann passou nos cobres a malfada fazenda, onde, afirmara antes, jamais voltaria a botar os pés, face à maldição que ela representava para a família, face às lembranças dolorosas de sua saudosa irmã.

Com o dinheiro apurado, Adolfo Schlikmann pôde manter-se muitos anos sem precisar se preocupar com aplicações ou rendimentos financeiros, área em que, reconhecidamente, não tinha nem competência, nem sorte. Competência e sorte que continuaram madrastas ao longo da vida do rico herdeiro, que foi torrando aos pouco os outros imóveis do espólio, ao ponto de tê-lo, agora, reduzido a duas casas e um único galpão industrial, responsáveis pela bem mais minguada renda com que podia contar no presente. Esses imóveis ele não poderia vender – talvez ainda precisasse vender uma das casas – pois acabaria ficando com uma renda menor do que suas largas despesas.

É claro que trabalhar ele nunca tinha trabalhado, era uma coisa indigna de um Schlikmann, de um nobre da linhagem dos fundadores. E ele se horrorizava só em pensar que poderia ter uma empresa, que, obrigatoriamente, por causa de sua importância, teria que ser muito grande. Ou seja, teria que ter preocupações infinitas, dor de cabeça atrás de dor de cabeça, como têm os empresários. Que vida iria ter? A de um Valdemar Silva, que, para ser o homem mais rico de Amarante, tinha que se esfalfar no trabalho dia e noite, como ou mais do que o mais ínfimo dos seus peões ou caminhoneiros, sem tempo para poder gozar a vida, ir à Europa comprar boas roupas, fazer safáris na África, ir a New York ou passar férias (do que?) no Taiti?

Quando a Rainha Negra se aproximou e o recebeu com um gentil discurso, o velho Adolfo respondeu incisivamente.

– Boa tarde, senhor. Boa tarde, senhora. Sua preferência pela Teles Automóveis nos deixa muito satisfeitos e orgulhosos. Eu sou a atendente Jennifer, uma consultora de vendas especializada, à sua inteira disposição. Diga o que gostaria de ver e nós faremos até o impossível para satisfazê-lo.

Ríspido e seco, Schlikmann falou:

– Vá chamar sua patroa, prefiro falar direto com ela.

Mais direto impossível. Mais racista e ofensivo também. Até mesmo para a experiente e tranquila Jennifer o direto na boca do estômago pesou, deixou-a sem fala na hora. O velho a chamá-la de empregada doméstica simplesmente, para colocá-la no seu lugar, segundo o conceito dele. Humilhava e já colocava as coisas como tinham que ser, estabelecia a hierarquia e a distância.

Gládis não desgrudara um só instante a sua atenção da cena ao seu lado, enquanto conversava socialmente amenidades com o casal Silva. A venda já estava lavrada, assinada e paga, com o Mercedes mais caro de toda a linha de importados solidamente garantido nas mãos do homem mais rico de Amarante. Gládis sorriu e pediu licença ao casal por um momento.

Dirigindo-se ao cliente importante de Jennifer, o mais importante de Amarante, uma espécie de rainha da Inglaterra do lugar, disse-lhe gentilmente:

– Boa tarde, senhores. Eu sou Gládis de Rios, subgerente da loja e chefe imediata de nossa Jennifer aqui. Em que poderia servi-los?

O velho dragão abriu um sorriso de satisfação e, vitorioso, usufruindo o prazer de ter pisado na cabeça daquela negra insolente, metida a sebo, respondeu:

– Eu quero um carro alemão como eu, um Mercedes, o melhor e mais caro que vocês tiverem por aqui.

– Senhor Schlikmann, nesse caso devo lhe dizer que temo que o simpático freguês que acabo de atender, o Sr. Valdemar Silva ali, já tenha feito exatamente essa mesma escolha, no automóvel CLK que acabo de faturar para ele. Mas ainda temos vários outros veículos Mercedes, todos zero quilômetro, certamente o senhor poderá encontrar uma outra excelente opção.

O alemão cerrou o cenho, mas depois voltou a sorrir. Sim, o que poderia esperar, se o troglodita do caminhoneiro chegara antes dele? Por um lado, até era bom, assim não seria obrigado a gastar tanto com o carro mais caro da loja, podia economizar ficando com o segundo da tabela de preços. O modelo e as características não tinham assim tanta importância, desde que, depois de Valdemar Silva, ninguém pudesse desfilar com um carro tão caro quanto ele em Amarante. Existia, na prática, uma espécie de acordo tácito na cidade, quando se tratava de avaliar os seus dois homens mais importantes: Silva era o mais rico, Schlikmann o mais nobre. Silva era um macaco nanico e sem classe, um reles caminhoneiro que subira às custas de muito trambique e tenebrosas transações. Schlikmann era um ariano puro e altíssimo, que já nascera por cima. Silva era um ignorante. Schlikmann também: apesar de toda a pose, também não tivera estudo algum. Só que o macaco baixinho era um tigre nos negócios, sabia ganhar dinheiro como ninguém. O ariano comprido era um ogro nesse campo: sabia perder dinheiro como poucos, levava décadas demonstrando isso.

Gládis, a subgerente, saboreou então a vitória que sua intuição prodigiosa lhe fizera antever:

– Nesse caso, o senhor teve muita sorte, porque foi atendido de imediato justo por nossa única especialista em Mercedes na empresa. A Jennifer tem vários cursos e estágios de especialização. Aproveite o privilégio, ela irá orientá-lo sobre todas as características técnicas e mercadológicas dos cinco modelos que temos hoje em desembarque. Com licença.

E afastou-se, voltando a conversar com o senhor Silva e Madame Silvá, a francesa, colocando-os a par da mais nova vitória do baixinho sobre o compridão. E deixando este entregue irremediavelmente às mãos da Rainha de Sabá.

Schlikmann falou, contrariado, para a esposa, em alemão, para não ser atendido por aquela doméstica, aquela empregadosa  metida a grande coisa:

– "Werde ich von dieser Schwarzen bedient werden?

Jennifer sorriu satisfeita, entendendo agora toda a extensão da armadilha preparada por Gládis para o imbecil. Ela havia entendido perfeitamente o que ele dissera à esposa: Eu vou ter que ser atendido por essa negra?

Ah, ia ter sim! E como...

A bela negra deu alguns passos até sua mesa, abriu uma gaveta e retirou uma coleção de folhetos promocionais e catálogos técnicos, todos em inglês. Colocou-os sobre a ampla mesa à frente deles e respondeu ao homem, com um semblante iluminado, sorridente e sereno. Respondeu em ALEMÃO perfeito, escorreito, sem sotaque:

– Receio que, para poder adquirir um Mercedes zero em nossa empresa, o senhor terá que se submeter ao incômodo de ser atendido por mim pessoalmente. Acontece que eu sou a única especialista em Mercedes aqui, com dois estágios de seis meses cada um na própria fábrica, em Bremen e em Stuttgart, na Alemanha. De qualquer forma vai lhe compensar o extremo sacrifício, porque eu vou, como lhe disse, fazer até o impossível para ajudá-lo a fechar o melhor negócio. No caso, a melhor escolha.

E estendeu-lhe o primeiro folheto, com fotos e gráficos coloridos deslumbrantes, em um primoroso caderno de oito páginas. Para Schlikmann, totalmente inútil, tudo escrito naquela maldita língua dos bastardos ingleses! E a jovem especialista começou a discorrer com impressionante conhecimento sobre os detalhes técnicos do motor, sua evolução ao longo dos últimos seis anos, os estágios da fabricação do mesmo, os exaustivos testes de qualidade, para deixá-los adequados à ultra rígida norma alemã. Depois passou a discorrer sobre os diversos tipos de câmbios automáticos e por que razão cada um deles era usado em determinado modelo e, não, em outro.

Fez isso para cada um dos automóveis Mercedes que tinham em estoque, o que custou ao alemão – que, afinal, não era alemão coisíssima nenhuma, mas somente e no máximo neto de alemães – uma aula de mais de 20 minutos, em que ele ouvia, arregalava os olhos, fazia um esforço imenso para entender aquele alemão tão perfeito, pois o dele era de colono. E, nas poucas vezes em que ousou falar, o fez em português, pois se sentia inseguro com a pronúncia de certas palavras em alemão, além de ter um vocabulário muito restrito, pouco mais do que o coloquial.

Indiferente a isso, toda vez que Schlikmann dizia algo em português, numa evidente tentativa desesperada de fazer aquela negra do demônio parar de falar em alemão, era neste idioma que ela respondia e continuava sua dissertação técnica. Por fim, dando-se por satisfeita, Jennifer pediu, finalmente em português, que o cliente fizesse enfim a sua escolha soberana. A esta altura, o homem já estava todo confuso com tanto dado técnico, tanta performance econômica, tanta tabela de desvalorização e depreciação, que nem sabia mais o que queria. Resolveu passar o abacaxi para a esposa:

– Marion pode escolher, mulher tem instinto para essas coisas, acaba escolhendo bem sem saber por que – Sabia que estava dizendo uma grande besteira, mas o que fazer...

– Então eu quero o azulzinho. É a minha cor, é o mais bonito – numa demonstração perfeita do tal “instinto para essas coisas”.

Mas ambos, nesse momento, foram interrompidos por uma voz muito familiar:

– Ora, por que vocês não deixam a moça escolher? Ela acabou de mostrar que entende de Mercedes mais do que o senhor, do que eu e do que todos os homens de Amarante juntos, nunca vi uma coisa assim. Moça, você é um prodígio! Qual é o seu nome?

– Jennifer Oliveira, para servi-lo, senhor.

– Muito prazer, senhorita. Eu sou Leon Schlikmann. É uma honra conhecer uma mulher tão inteligente. E, como se não bastasse, tão bonita.

– Encantada, senhor. Muito obrigada. É da família do senhor Adolfo?

– É nosso filho, falou a surpresa e contrariada Marion, ao ver que Leon estivera assistindo possivelmente a maior parte da demonstração de conhecimento e perícia daquela africana surpreendente. Contrariada por ver que um herdeiro dos Schlikmann, a nata da sociedade de Amarante, tinha acabado de chamar uma negra de bonita!

Só então o velho Adolfo Schlikmann percebeu que ele estava no centro de um amplo círculo de pessoas: os Silva – o tampinha, a madame e a filha – um monte de gente, o próprio paulista dono da loja, um japonês baixinho e gordão, e, o pior de tudo, seu próprio filho, que tinha acabado de falar aquela barbaridade. Pelo jeito o pessoal foi passando por ali e parando, ao ver aquela negra alta falando um alemão muito melhor que o dele, por tanto tempo, e mostrando entender aquele despropósito de automóveis.

Humilhação maior do que aquela não poderia ter-lhe acontecido nessa cidade. Imediatamente deu meia volta, dizendo:

– Bom. Você escolhe então. Você ou sua mãe, tanto faz. Desde que eu troque meu carro hoje, está tudo certo. Você pode dar um cheque seu, que eu faço a transferência depois.


Afastou-se rapidamente rumo ao estacionamento. Sua úlcera mordia-o impiedosamente por dentro. Mas não se dobrou nem gemeu até estar sentado dentro do carro. Nunca iria dar esse gosto àquela gentinha! Por hoje já tivera o suficiente. Maldita negra! E não podia esquecer o olhar de gozação daquela outra moça, aquela sim, branca e bonita, que era a subgerente. Por que ela o havia olhado assim antes, muito antes que aquela humilhação toda tivesse acontecido com ele?

CONTINUA...

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