segunda-feira, 16 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 8   
MILTON MACIEL 

8 -  O REAL VALOR DAS PESSOAS
Fim do cap. 6 -   “A coisa engraçada era a atitude apatetada de Celso, nada mais. No carro, a caminho do hotel, elas preferiram não comentar nada sobre isso. Limitaram-se a ouvir as recomendações do jefe sobre os melhores lugares para se morar em Amarante. Sabiam quando era a hora de manterem-se discretas, certamente. E Celso sabia que precisava de alguém: Fúlvio Rondelli!”

Estava mais do que na hora de falar sobre outros assuntos com o italiano. Por isso deixou suas espanholitas no hotel e voltou para a firma. O italiano era a única pessoa que ainda estava lá, às voltas com um equipamento computadorizado de teste de exaustão de motores, vibrando de entusiasmo como um menino que ganhou um brinquedo novo.  Surpreendeu-se ao ver Celso de volta.

– Ué, doutor! De volta? Esqueceu alguma coisa?

– Não, esqueci alguém.

– Quem? – estranhou Rondelli

– Você, seu italiano. Esqueci você. Estou precisando de um ombro amigo. E o seu é o único que eu estou vendo num raio de mil quilômetros. Vamos sair, tomar uma cerveja e conversar. Dá pra ser?

Fúlvio pensou na hora: Quer falar sobre o chilique do meu anjinho. Preciso caprichar na defesa da minha menina. Fez sinal que sim com a cabeça. E desligou equipamentos e luzes, tirou o avental imaculadamente branco, apanhou as chaves do carro e saiu com Celso Teles.

– Desta vez lá no Aragonez, por favor. Chega da cerveja choca lá do Bicalho.

– Tá certo, italiano. Vamos lá.

Minutos depois estacionaram no Restaurante e Lanchonete Aragonez e sentaram-se a uma mesa discreta. Era ainda bastante cedo, quase não havia clientes naquele final de tarde, início de noite.

– Notei que o senhor bebe pouco, doutor.

– É, não sou muito dado a beber. Coisa de hábito. Durante muito tempo na minha vida eu não podia beber praticamente nada.

– Hum. Coisa de religião?

Celso não conseguiu segurar o riso:

– Que é isso, italiano, está me estranhando? Não, que religião, que nada. Coisa de esporte. Mais adiante eu lhe conto isso também.

– Ah, então nós estamos aqui para falar de outra coisa. Seria da minha afilhada, por acaso?

Celso sobressaltou-se visivelmente. O suficiente para Fúlvio, o conhecedor do gênero humano, concluir duas coisas: uma, que ele tinha errado, o assunto não era esse; duas, que o doutor tinha tremido na base quando mencionara Larissa. É, aí tinha coisa, precisava observar com mais cuidado, atirar alguns verdes. Mas que tinha, tinha.

– A Larissa? – falou Celso.

E o paulista emitiu mais um sinal, ínfimo, perceptível porém para o olho clínico de Rondelli: por uma fração de tempo os olhos do doutor se entrefecharam e um sorriso beatífico veio-lhe aos lábios. Tinha sido algo rápido demais, mas não o suficiente para que Fúlvio Rondelli deixasse de se certificar – tinha coisa mesmo! Ia testar o chefe de novo. Bastaria repetir, de repente, o nome Larissa, durante a conversa.

Celso repetiu:

A Larissa? Não, claro que não, o assunto é outro. Acabo de comprar a academia do Nelson!

Rondelli se engasgou feio com a cerveja. Por aquela não esperava.

– Comprou a academia, doutor? Mas aquilo é o barco mais furado da cidade.

– E eu não sei? O coitado do Nelson estava realmente afundando no seu barco, dava dó de ver o movimento dele.

– Mas então? O doutor acha que esse barco furado tem conserto?

– Claro que não, Rondelli. Mas eu não comprei para ganhar dinheiro. Comprei por duas outras razões.

– Duas? Não basta uma só, jogar dinheiro fora não chega?

Celso respondeu rindo:

– Seu carcamano burro, não é só pra ganhar dinheiro que a gente faz as coisas na vida. Também faz para ajudar as pessoas.

– Ajudar o Nelson? Mas por que?

–  Ora, por que? Pela mesma razão que eu tive para comprar a sua oficina. Ajudar, com o dinheiro que para mim é tão fácil, uma pessoa digna e competente, que está se afogando pela falta desse mesmo dinheiro. O Nelson, como você, é um tremendo de um profissional. E é uma pessoa digna também. E, como você, é bom demais para um lugarejo onde quase não há clientela. Só que, no seu caso, eu saí ganhando de cara com a transação.

Fúlvio Rondelli baixou a cabeça, com um nó na garganta. Diacho, o homem estava certo, ele estava afundado em dívidas, ainda que pequenas, porque pequeno era tudo o que acontecia na vida dele. A venda dos seus badulaques desatualizados, velhos de duas décadas, por muito mais do que valiam, tinha sido um maná caído do céu. E o emprego com o salário inimaginável, a estabilidade, a segurança...

– Ah, meu doutor. O senhor me tirou do fundo do poço. Só não entendi por que disse que saiu ganhando de cara com a transação.

– Por que eu agora tenho você pra tocar e gerenciar todo o trabalho de oficina. O que eu paguei não foi pelos materiais, foi pelo seu passe, seu tonto.

– Meu... passe? Que nem jogador de futebol?

– Isso mesmo, Rondelli. Que nem no futebol. Nas outras profissões e, de resto, em tudo na vida, as pessoas, incluindo as donas de casa, deviam ter um passe: quanto mais competentes, mais valeria esse passe. O seu passe por exemplo: para mim você tem um valor por ser, folgado, o melhor mecânico que eu já conheci; outro valor por ser um homem com reputação de honestíssimo. Outro valor por ser uma pessoa que não há quem não aprecie, que não fale bem de você. Somando tudo isso, eu cheguei ao valor do seu passe. E paguei à vista por ele, mais do que satisfeito, porque o meu lucro estava sendo enorme.

O nó na garganta de Rondelli apertou ainda mais, desistiu de engolir a cerveja, deixou-a refluir para o copo. Deus do céu, mas que homem era aquele à sua frente. Que cabeça!

Celso continuou:

– Imagine só se eu ficasse sem você, justo na hora de montar a minha oficina na empresa. O Reginaldo, meu mecânico de confiança em Ribeirão, que não dá uma perna das suas, seu carcamano, preferiu ficar com o pessoal comprador. Aí eu, um total desconhecido por aqui, ia ter que sair atrás de um mecânico de alto nível; diga lá quanto tempo eu ia precisar para arranjar um? – se arranjasse! Mas, do jeito que eu fiz, comprando o seu passe, eu saí no lucro na hora. Lembra que nós começamos a dimensionar a oficina nova já no dia seguinte?

Agora Fúlvio conseguiu falar:

– Claro, lembro, sim.

– Pois então. Mas o mais importante para mim, o maior lucro na transação veio com o seu NOME, italiano.  

– Meu nome?

– Claro. O seu nome, seu conceito, seu prestígio na praça, homem. Isso não se faz da noite pro dia. Isso você construiu durante mais de trinta anos, sujeito! Trinta anos! Quanto você acha que vale isso?

– Não vale nada doutor. Não vale nada neste mundo de idiotas. Só encontrou valor na cabeça de uma pessoa tão diferente como o senhor. Olhe, eu estou bestificado de lhe ouvir falar tudo isso.

– Mas é o que eu disse, italiano, eu saí no lucro, comprei junto com suas máquinas velhas todo o prestígio, todo o nome de um homem, que estavam impregnados nelas. Agora, quando o pessoal fica sabendo que Fúlvio Rondelli trabalha na Teles Automóveis...

– É, eles levam seus automóveis para consertar na Teles. Já estamos vendo isso agora mesmo, antes de abrirmos oficialmente.

– Muito bem. E quando as pessoas souberem que a garantia dos carros novos e seminovos, que a Teles vende, está lastreada por Fúlvio Rondelli, de quem é que elas vão comprar os carros?

– Da Teles...

– Entendeu agora? Eu compre foi VOCÊ, seu carcamano! Você, com todo o seu nome e toda a sua competência. E paguei barato demais.

– Barato demais?! Por favor, doutor, o senhor pagou uma barbaridade por aquela tralha velha. E me paga agora um salário que acho que ninguém ganha nesta cidade. E, ainda por cima, assinou um contrato de trabalho comigo por cinco anos. Cinco anos! Se tiver que me mandar embora antes, vai ter que me indenizar. Não é loucura?

– Loucura seria deixar você escapar de mim antes disso, seu italiano burro. Se você quiser sair antes de cinco anos, você é que vai ter que me indenizar. E quanto ao seu salário, fique frio. Você é que vai gerar todo esse dinheiro com o seu trabalho. Parece muito, porque você vale muito. Mas você não vai me custar nada.

Desta vez Rondelli entornou o copo inteiro, cheio de cerveja, de uma vez só. Estava emocionado. Não só: na verdade estava perplexo!

– Doutor, doutor, o senhor não existe. Que cabeça!

– Pois é, Rondelli, é por isso que eu ganho tanto dinheiro. Eu aprendi a ver a realidade das coisas e o real valor das pessoas. Como com o Nelson, agora.

– Quer dizer que agora o Nelson vai trabalhar para o senhor lá na academia que era dele?

– Não, ele vai trabalhar para mim na MINHA academia, que eu vou montar com o material dele, no primeiro predinho, que fica pronto em duas semanas, lá no meu terreno da Tuiuti.

– Já vai ter prédio pronto, doutor? Mas como, se faz menos de dois meses que as obras começaram lá?

– Ora, Rondelli, porque todas as construções são pré-fabricadas, eu as recebo praticamente prontas, é só montar, que nem quebra-cabeças. Mas é muito mais por causa de um homem, italiano. É por causa do Nicanor, o mestre de obras que eu trouxe de Ribeirão Preto para tocar essas construções.

– Aquele mulato alto, de voz grossa, que mais parece um lutador?

– Isso, aquele mulato alto que é, simplesmente, o Fúlvio Rondelli das construções. Outro cujo passe eu tive o privilégio de adquirir, italiano. E que foi, de fato, lutador de boxe.

– Caramba! Então os operários devem ter o maior respeito por ele!

– Ah, sim. E ai de quem não tiver! Esse foi um dos primeiros valores que eu atribuí ao passe dele, depois que o descobri num canteiro de obras de um edifício em Sertãozinho. Como capataz. Conversei várias vezes com ele, aí mandei levantar a ficha. A primeira coisa que me agradou foi que o cara não tinha complicação com polícia, não bebia nem jogava, era pontual e estava estudando construção à noite. Aí eu disse: É esse! Não posso deixar escapar! E fiz uma oferta pelo passe que montei para ele. Graças a Deus ele aceitou, foi quem construiu tudo para a minha revenda de Ribeirão, que é muito maior do que esta nossa daqui.

– Quer dizer que ele está há muito tempo com o senhor, então.

– Já vai para cinco anos. E é um doce de criatura, não tem nada a ver com aquela aparência meio selvagem dele. Mas que é boa para impor respeito na peonada, o que vale muito.

– E quem faz a administração de construção para ele?

– ELE faz, italiano! O homem tem uma cabeça e tanto. Eu discuto a ideia com ele, com arquiteto e engenheiro juntos. Não faço uma só planta sem a presença dele. Aí a gente entrega tudo na mão dele e ele administra não só o pessoal, mas os materiais também, a obra inteira. Por isso é que eu digo que ele é meu empreiteiro, quando, tecnicamente, é meu funcionário.

– Como agora, na obra daqui?

– Como agora. Ele chegou, foi atrás de máquinas e operadores, soube que já trocou umas três vezes de prestadoras de serviço e de operadores. Aí ele vai atrás e compra os materiais. Muita coisa compensa, apesar do frete, a gente mandar vir de São Paulo ou do Paraná, como os pré-moldados que estamos usando, que vêm de São José dos Pinhais. 

– E como fazem essas compras, que são um negócio tão complicado?

– Fácil, Fúlvio. Procuramos concentrar o mais possível em um único fornecedor, para o máximo de materiais diferentes que der. Aí compramos tudo à vista, contra entrega. Entregou, recebeu na mesma hora. Atrasou, a gente cancela. E é sempre um negócio muito grande para o cara se arriscar a perder.

– Caramba, que cabeça, doutor. Que cabeça! Em tudo o que o senhor faz, pelo jeito...

– Bem, não é nada diferente: eu faço sempre uma coisa só, de um jeito só, não importa o negócio ou a pessoa. São princípios elementares, meu cara Fúlvio. Princípios.

– E agora, no terrenão da Tuiuti, vai ter uma academia.

– Das grandes, Rondelli, das grandes, com duas piscinas e dois campos de futebol.

 – Catzo! Muito maior ainda que a do Nelson. Mas onde vai ter gente para usar tudo isso?

– Você já me viu apostar para perder, Rondelli?

– Bem, acho que não seria do seu feitio, mas neste caso... faça-me o favor...

– Pois então confie em mim, italiano. Vou lhe dizer só uma coisa curta e grossa: Ali na Tuiuti vai estar o maior de todos os meus negócios no Brasil. O maior!

– Mas... maior até do que a revenda?

– Pode contar que sim.

– Mas, com uma academia desse tamanhão, numa cidade de 50 mil habitantes? E com duas piscinas? Dois campos de futebol, o senhor disse? Dois campos?! Tem certeza?

– Isso mesmo.

– Bom, quem vai gostar disso vai ser o Leon, o homem do agarramento lá na churrascaria.

Outra vez o italiano percebeu que o chefe estremeceu levemente. Bingo: ah, falei Leon, ele ouviu Larissa!

Mas o chefe pareceu vivamente interessado:

– Por que o Leon? Ele tem algo a ver com futebol? Gosta de jogar?


CONTINUA

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