MILTON MACIEL
8 - O REAL VALOR DAS PESSOAS
Fim
do cap. 6 - “A coisa engraçada era a atitude apatetada
de Celso, nada mais. No carro, a caminho do hotel, elas preferiram não comentar
nada sobre isso. Limitaram-se a ouvir as recomendações do jefe sobre os
melhores lugares para se morar em Amarante. Sabiam quando era a hora de
manterem-se discretas, certamente. E Celso sabia que precisava de alguém:
Fúlvio Rondelli!”
Estava mais do que na hora de
falar sobre outros assuntos com o italiano. Por isso deixou suas espanholitas
no hotel e voltou para a firma. O italiano era a única pessoa que ainda estava
lá, às voltas com um equipamento computadorizado de teste de exaustão de
motores, vibrando de entusiasmo como um menino que ganhou um brinquedo
novo. Surpreendeu-se ao ver Celso de
volta.
– Ué, doutor! De volta? Esqueceu
alguma coisa?
– Não, esqueci alguém.
– Quem? – estranhou Rondelli
– Você, seu italiano. Esqueci
você. Estou precisando de um ombro amigo. E o seu é o único que eu estou vendo
num raio de mil quilômetros. Vamos sair, tomar uma cerveja e conversar. Dá pra
ser?
Fúlvio pensou na hora: Quer falar
sobre o chilique do meu anjinho. Preciso caprichar na defesa da minha menina.
Fez sinal que sim com a cabeça. E desligou equipamentos e luzes, tirou o
avental imaculadamente branco, apanhou as chaves do carro e saiu com Celso Teles.
– Desta vez lá no Aragonez, por
favor. Chega da cerveja choca lá do Bicalho.
– Tá certo, italiano. Vamos lá.
Minutos depois estacionaram no
Restaurante e Lanchonete Aragonez e sentaram-se a uma mesa discreta. Era ainda
bastante cedo, quase não havia clientes naquele final de tarde, início de
noite.
– Notei que o senhor bebe pouco,
doutor.
– É, não sou muito dado a beber.
Coisa de hábito. Durante muito tempo na minha vida eu não podia beber
praticamente nada.
– Hum. Coisa de religião?
Celso não conseguiu segurar o
riso:
– Que é isso, italiano, está me
estranhando? Não, que religião, que nada. Coisa de esporte. Mais adiante eu lhe
conto isso também.
– Ah, então nós estamos aqui para
falar de outra coisa. Seria da minha afilhada, por acaso?
Celso sobressaltou-se visivelmente.
O suficiente para Fúlvio, o conhecedor do gênero humano, concluir duas coisas:
uma, que ele tinha errado, o assunto não era esse; duas, que o doutor tinha
tremido na base quando mencionara Larissa. É, aí tinha coisa, precisava
observar com mais cuidado, atirar alguns verdes. Mas que tinha, tinha.
– A Larissa? – falou Celso.
E o paulista emitiu mais um
sinal, ínfimo, perceptível porém para o olho clínico de Rondelli: por uma
fração de tempo os olhos do doutor se entrefecharam e um sorriso beatífico
veio-lhe aos lábios. Tinha sido algo rápido demais, mas não o suficiente para
que Fúlvio Rondelli deixasse de se certificar – tinha coisa mesmo! Ia testar o
chefe de novo. Bastaria repetir, de repente, o nome Larissa, durante a
conversa.
Celso repetiu:
A Larissa? Não, claro que não, o
assunto é outro. Acabo de comprar a academia do Nelson!
Rondelli se engasgou feio com a
cerveja. Por aquela não esperava.
– Comprou a academia, doutor? Mas
aquilo é o barco mais furado da cidade.
– E eu não sei? O coitado do
Nelson estava realmente afundando no seu barco, dava dó de ver o movimento
dele.
– Mas então? O doutor acha que
esse barco furado tem conserto?
– Claro que não, Rondelli. Mas eu
não comprei para ganhar dinheiro. Comprei por duas outras razões.
– Duas? Não basta uma só, jogar
dinheiro fora não chega?
Celso respondeu rindo:
– Seu carcamano burro, não é só
pra ganhar dinheiro que a gente faz as coisas na vida. Também faz para ajudar
as pessoas.
– Ajudar o Nelson? Mas por que?
–
Ora, por que? Pela mesma razão que eu tive para comprar a sua oficina.
Ajudar, com o dinheiro que para mim é tão fácil, uma pessoa digna e competente,
que está se afogando pela falta desse mesmo dinheiro. O Nelson, como você, é um
tremendo de um profissional. E é uma pessoa digna também. E, como você, é bom demais para um lugarejo onde quase não há clientela. Só que, no seu caso, eu
saí ganhando de cara com a transação.
Fúlvio Rondelli baixou a cabeça,
com um nó na garganta. Diacho, o homem estava certo, ele estava afundado em
dívidas, ainda que pequenas, porque pequeno era tudo o que acontecia na vida
dele. A venda dos seus badulaques desatualizados, velhos de duas décadas, por
muito mais do que valiam, tinha sido um maná caído do céu. E o emprego com o salário
inimaginável, a estabilidade, a segurança...
– Ah, meu doutor. O senhor me
tirou do fundo do poço. Só não entendi por que disse que saiu ganhando de cara
com a transação.
– Por que eu agora tenho você pra
tocar e gerenciar todo o trabalho de oficina. O que eu paguei não foi pelos
materiais, foi pelo seu passe, seu tonto.
– Meu... passe? Que nem jogador
de futebol?
– Isso mesmo, Rondelli. Que nem
no futebol. Nas outras profissões e, de resto, em tudo na vida, as pessoas,
incluindo as donas de casa, deviam ter um passe: quanto mais competentes, mais
valeria esse passe. O seu passe por exemplo: para mim você tem um valor por
ser, folgado, o melhor mecânico que eu já conheci; outro valor por ser um homem
com reputação de honestíssimo. Outro valor por ser uma pessoa que não há quem
não aprecie, que não fale bem de você. Somando tudo isso, eu cheguei ao valor
do seu passe. E paguei à vista por ele, mais do que satisfeito, porque o meu
lucro estava sendo enorme.
O nó na garganta de Rondelli
apertou ainda mais, desistiu de engolir a cerveja, deixou-a refluir para o
copo. Deus do céu, mas que homem era aquele à sua frente. Que cabeça!
Celso continuou:
– Imagine só se eu ficasse sem
você, justo na hora de montar a minha oficina na empresa. O Reginaldo, meu
mecânico de confiança em Ribeirão, que não dá uma perna das suas, seu
carcamano, preferiu ficar com o pessoal comprador. Aí eu, um total desconhecido
por aqui, ia ter que sair atrás de um mecânico de alto nível; diga lá quanto
tempo eu ia precisar para arranjar um? – se arranjasse! Mas, do jeito que eu
fiz, comprando o seu passe, eu saí no lucro na hora. Lembra que nós começamos a
dimensionar a oficina nova já no dia seguinte?
Agora Fúlvio conseguiu falar:
– Claro, lembro, sim.
– Pois então. Mas o mais
importante para mim, o maior lucro na transação veio com o seu NOME,
italiano.
– Meu nome?
– Claro. O seu nome, seu
conceito, seu prestígio na praça, homem. Isso não se faz da noite pro dia.
Isso você construiu durante mais de trinta anos, sujeito! Trinta anos! Quanto
você acha que vale isso?
– Não vale nada doutor. Não vale
nada neste mundo de idiotas. Só encontrou valor na cabeça de uma pessoa tão
diferente como o senhor. Olhe, eu estou bestificado de lhe ouvir falar tudo
isso.
– Mas é o que eu disse, italiano,
eu saí no lucro, comprei junto com suas máquinas velhas todo o prestígio, todo
o nome de um homem, que estavam impregnados nelas. Agora, quando o pessoal fica
sabendo que Fúlvio Rondelli trabalha na Teles Automóveis...
– É, eles levam seus automóveis
para consertar na Teles. Já estamos vendo isso agora mesmo, antes de abrirmos
oficialmente.
– Muito bem. E quando as pessoas
souberem que a garantia dos carros novos e seminovos, que a Teles vende, está
lastreada por Fúlvio Rondelli, de quem é que elas vão comprar os carros?
– Da Teles...
– Entendeu agora? Eu compre foi
VOCÊ, seu carcamano! Você, com todo o seu nome e toda a sua competência. E
paguei barato demais.
– Barato demais?! Por favor,
doutor, o senhor pagou uma barbaridade por aquela tralha velha. E me paga agora
um salário que acho que ninguém ganha nesta cidade. E, ainda por cima, assinou
um contrato de trabalho comigo por cinco anos. Cinco anos! Se tiver que me
mandar embora antes, vai ter que me indenizar. Não é loucura?
– Loucura seria deixar você escapar
de mim antes disso, seu italiano burro. Se você quiser sair antes de cinco
anos, você é que vai ter que me indenizar. E quanto ao seu salário, fique frio.
Você é que vai gerar todo esse dinheiro com o seu trabalho. Parece muito,
porque você vale muito. Mas você não vai me custar nada.
Desta vez Rondelli entornou o
copo inteiro, cheio de cerveja, de uma vez só. Estava emocionado. Não só: na
verdade estava perplexo!
– Doutor, doutor, o senhor não
existe. Que cabeça!
– Pois é, Rondelli, é por isso
que eu ganho tanto dinheiro. Eu aprendi a ver a realidade das coisas e o real
valor das pessoas. Como com o Nelson, agora.
– Quer dizer que agora o Nelson
vai trabalhar para o senhor lá na academia que era dele?
– Não, ele vai trabalhar para mim
na MINHA academia, que eu vou montar com o material dele, no primeiro predinho,
que fica pronto em duas semanas, lá no meu terreno da Tuiuti.
– Já vai ter prédio pronto,
doutor? Mas como, se faz menos de dois meses que as obras começaram lá?
– Ora, Rondelli, porque todas as
construções são pré-fabricadas, eu as recebo praticamente prontas, é só montar,
que nem quebra-cabeças. Mas é muito mais por causa de um homem, italiano. É por
causa do Nicanor, o mestre de obras que eu trouxe de Ribeirão Preto para tocar
essas construções.
– Aquele mulato alto, de voz
grossa, que mais parece um lutador?
– Isso, aquele mulato alto que é,
simplesmente, o Fúlvio Rondelli das construções. Outro cujo passe eu tive o
privilégio de adquirir, italiano. E que foi, de fato, lutador de boxe.
– Caramba! Então os operários
devem ter o maior respeito por ele!
– Ah, sim. E ai de quem não
tiver! Esse foi um dos primeiros valores que eu atribuí ao passe dele, depois
que o descobri num canteiro de obras de um edifício em Sertãozinho. Como
capataz. Conversei várias vezes com ele, aí mandei levantar a ficha. A primeira
coisa que me agradou foi que o cara não tinha complicação com polícia, não
bebia nem jogava, era pontual e estava estudando construção à noite. Aí eu disse: É esse! Não posso deixar escapar!
E fiz uma oferta pelo passe que montei para ele. Graças a Deus ele aceitou, foi
quem construiu tudo para a minha revenda de Ribeirão, que é muito maior do que
esta nossa daqui.
– Quer dizer que ele está há
muito tempo com o senhor, então.
– Já vai para cinco anos. E é um
doce de criatura, não tem nada a ver com aquela aparência meio selvagem dele.
Mas que é boa para impor respeito na peonada, o que vale muito.
– E quem faz a administração de
construção para ele?
– ELE faz, italiano! O homem tem
uma cabeça e tanto. Eu discuto a ideia com ele, com arquiteto e engenheiro
juntos. Não faço uma só planta sem a presença dele. Aí a gente entrega tudo na
mão dele e ele administra não só o pessoal, mas os materiais também, a obra inteira.
Por isso é que eu digo que ele é meu empreiteiro, quando, tecnicamente, é meu
funcionário.
– Como agora, na obra daqui?
– Como agora. Ele chegou, foi
atrás de máquinas e operadores, soube que já trocou umas três vezes de
prestadoras de serviço e de operadores. Aí ele vai atrás e compra os materiais.
Muita coisa compensa, apesar do frete, a gente mandar vir de São Paulo ou do
Paraná, como os pré-moldados que estamos usando, que vêm de São José dos
Pinhais.
– E como fazem essas compras, que
são um negócio tão complicado?
– Fácil, Fúlvio. Procuramos
concentrar o mais possível em um único fornecedor, para o máximo de materiais
diferentes que der. Aí compramos tudo à vista, contra entrega. Entregou,
recebeu na mesma hora. Atrasou, a gente cancela. E é sempre um negócio muito
grande para o cara se arriscar a perder.
– Caramba, que cabeça, doutor.
Que cabeça! Em tudo o que o senhor faz, pelo jeito...
– Bem, não é nada diferente: eu
faço sempre uma coisa só, de um jeito só, não importa o negócio ou a pessoa.
São princípios elementares, meu cara Fúlvio. Princípios.
– E agora, no terrenão da Tuiuti,
vai ter uma academia.
– Das grandes, Rondelli, das
grandes, com duas piscinas e dois campos de futebol.
– Catzo! Muito maior ainda que a do Nelson. Mas onde vai ter gente para usar tudo
isso?
– Você já me viu apostar para
perder, Rondelli?
– Bem, acho que não seria do seu
feitio, mas neste caso... faça-me o favor...
– Pois então confie em mim,
italiano. Vou lhe dizer só uma coisa curta e grossa: Ali na Tuiuti vai estar o
maior de todos os meus negócios no Brasil. O maior!
– Mas... maior até do que a
revenda?
– Pode contar que sim.
– Mas, com uma academia desse
tamanhão, numa cidade de 50 mil habitantes? E com duas piscinas? Dois campos de
futebol, o senhor disse? Dois campos?! Tem certeza?
– Isso mesmo.
– Bom, quem vai gostar disso vai
ser o Leon, o homem do agarramento lá na churrascaria.
Outra vez o italiano percebeu que
o chefe estremeceu levemente. Bingo: ah, falei Leon, ele ouviu Larissa!
Mas o chefe pareceu vivamente
interessado:
– Por que o Leon? Ele tem algo a
ver com futebol? Gosta de jogar?
CONTINUA
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