MILTON MACIEL
12 - OS CAMPOS DE GRAMA
Fim do cap. 11: E, sentindo um alívio, uma paz beatífica, sentou-se na poltrona
executiva e ligou para casa:
– Alô, meu bem. Tudo certo aí com vocês? Precisa de algo do
super-mercado? Não? Então tá, até o almoço. Beijinho, te amo, fofa.
No dia seguinte, com a
chegada das carretas com a grama, a vida de Celso tomou um novo impulso e ele
parecia mais entusiasmado do que nunca. Chegou ás sete e meia da academia,
correu para ver sua musa, conversar com ela. Depois conversou um pouco com
Fúlvio, com Lucas, com as espanholitas, nessa ordem.
E foi embora para sua
obra, para ver seus adorados campos de futebol. E, às 9 da manhã, já estava
recepcionando Hiro, o filho do venerável Hanashiro Ita, o dono da maior
fornecedora de grama para estádios do Brasil. O velho havia dado o nome de Hiro
para seu primogênito, para que soasse como Hiro Ito, uma reminiscência respeitosa,
uma homenagem ao velho imperador falecido, que ele havia tido a honra de ver
pessoalmente em Nagoia, antes de emigrar para o Brasil, na força da juventude.
– E então, japinha, ainda
vendendo muito desse pasto pra vaca pé-duro?
– Celso Teles! Que alegria!
Há quanto tempo a gente não se vê, rapaz!
– Faça as contas, japa:
eu saí de Indaiatuba com 16 anos, estou com 39 agora.
– Vinte e três anos! Caramba,
tanto tempo, mas parece que foi ontem. Você não mudou tanto assim, eu acho que
reconheceria você na rua...
– Mas você, em
compensação, virou quase dois japinhas. Deve ser a prosperidade...
– Pois é, daquele tempo
pra cá, eu engordei um bocado, com esta minha alturinha de nada. Tinha 18,
agora estou com 41. Também, depois daquelas peladas da gente lá em Indaiatuba,
nunca mais que eu joguei futebol. Virei sedentário. Hoje, se você me mandar
atravessar esse campo correndo, pode colocar a ambulância e o rabecão do outro
lado. Enfarto e empacoto na hora!
– Mas, pelo que vejo,
você continua gostando de dirigir uma carreta, hein.
–Ah, cara, isso eu adoro!
De vez em quando largo tudo por lá e me mando como motorista de uma carga para
bem longe, só para espairecer e curtir uma estrada. Parando em tudo quanto é
churrascaria e lanchonete, é claro.
– Comendo em botecos, não
é?
– Isso mesmo. Coisa boa,
não é?
– O máximo, japinha. Eu
também continuo um adorador de comida de boteco: coxinha, pastel, quibe, misto
frio. E bolinho de ovo, japa! Bolinho de ovo, minha paixão!
– Ah, é mesmo, o ovo
cozido empanado, o bolovo. Sabe que quase não se vê mais bolinho de ovo nos
botecos, hoje em dia? Se você quiser ter certeza de encontrar, vai ter que ir a
São Paulo, capital e ainda procurar bem.
– Pois é, Hiro, aqui em
Santa Catarina os caras nem conhecem bolinho de ovo. Onde eu pedi, ficaram com
uma cara de tacho, parece que eu estava pedindo caviar. Mas espera aí, até que
você está me dando uma ideia.
– Lá no Baltazar, em
Indaiatuba, tem. Mas que ideia é essa?
– Pois olhe só: Aqui em
Amarante tem um boteco bem surrapa, com uma cerveja horrível, de um cara muito
legal chamado Bicalho. Estou pensando em dar um jeito no negócio dele. Uma boa
ideia é conseguir que ele faça bolinho de ovo pra nós. E aí ele fatura também
com os outros clientes dele. É, acho que eu podia começar por aí. Você sabe como
é a receita do bolinho de ovo?
– Eu não sei, mas eu ligo
pro Baltazar, tenho o número dele aqui no celular. E aí faço o negrão me dar a
receita na marra, na hora.
– Puxa, garantido que ele
dá? Maravilha, então hoje nós vamos ter um almoço de luxo, japinha: bolinho de
ovo até vomitar, mais coxinha, pastel, quibe, quanto mais usado o óleo da
fritura, melhor! Tudo da cozinha sem par de Chez Bicalho.
– Puta, Celso, que coisa
boa rever você, você continua o mesmo molecão de Indaiatuba. É estar um pouco
com você e a gente fica de bem com a vida! Sempre foi assim. Por isso, quando
eu consegui acreditar que o Celso Romano Teles do pedido de grama era mesmo
você, imediatamente mudei tudo para poder vir pilotando uma das carretas. Cara,
como valeu a pena!
Celso abraçou Hiro com
leveza e muita, muita satisfação:
– Cara, tem certas
amizades que nunca morrem. Você também não consegue imaginar a minha alegria
quando eu tive certeza que era você em pessoa que estava descendo daquela
cabine. Sabe, é como se, de repente, a gente voltasse no tempo, para um tempo
muito feliz da juventude da gente, um tempo fantástico, onde tudo de bom
começou pra mim.
– Pois é, você deve ter
um bocado de histórias pra contar, amigo. Soube que até no exterior você andou.
– Se tenho! Mas isso eu
só conto quando a gente tiver obrigado o Bicalho a nos servir bolinho de ovo.
Porque agora o que eu mais quero é mandar colocar essa sua grama aqui nos meus
campos. Vamos fazer descarga.
E, a um sinal de Celso,
Nicanor veio com um exército de homens e começaram a descarregar e transportar
para as bases niveladas os grandes rolos de grama.
–Hiro, que espetáculo!
Vocês continuam produzindo igual, usando a mesma grama, com a mesma qualidade,
a melhor do Brasil, como sempre. Que uniformidade!
– Ah, sabe como é, é o
velho. Continua na ativa, rijo e forte como um touro, supervisionando tudo
pessoalmente, fazendo o controle de qualidade. E com 86 anos, você olha e não
acredita.
Pouco depois Hiro Ito
começou a treinar Nicanor e seu homens para aplicarem a grama na base. Celso
quis aprender também. Então, depois disso, todos começaram a fazer a aplicação,
obedecendo fielmente as determinações do japonês.
Celso foi o primeiro a
começar o trabalho:
– Deixa eu cair de
quatro, japinha. Assim ajudo a aplicar esta maravilha e presto uma homenagem a
seu Hanashiro, de joelhos.
Nicanor, também
ajoelhando, comentou entusiasmado, com sua habitual sutileza:
– Vão fazer coisa
bem-feita assim na puta que pariu! Eu aplico grama em construções há mais de
vinte anos, nunca vi nada assim!
Celso, avançando rápido
com o seu rolo, completou:
– Está vendo, Nicanor,
como é sempre assim. Esta é a grama mais cara do Brasil, portanto é a mais
barata que existe.
–É isso aí, capitão.
Falou e disse. Aprendi essa verdade com o senhor já faz muito tempo. Como o
senhor sempre nos afirmou: Com qualidade, com perfeição, o caro é sempre o mais
barato.
Ao lado deles, em pé,
gerenciando a tudo e a todos com a máxima atenção, Hiro Ito sentiu-se inchar de
orgulho e endereçou um pensamento ao velho Hanashiro, dividindo com ele aquele
momento de reconhecimento e felicidade.
Continuaram todos, Celso
inclusive, a aplicar grama sem parar. Para o chefe, cada pedaço que crescia na
horizontal parecia mais um pedaço de sonho que se concretizava. E ele avançava,
infatigável, mais veloz que qualquer outro, como num transe, dominado pela
ânsia de ver seu primeiro campo concluído.
Mas tiveram que parar
para o almoço, com uma quarta parte da colocação já feita. A contragosto Celso
parou, não podia exigir que Hiro, Nicanor e os outros tivessem o mesmo empenho
fanático que ele demonstrava.
Fez um sinal, que Nicanor
transformou em ordem:
– Largar pro almoço,
cambada! Continuamos à uma e meia.
Correram alguns para suas
marmitas, outros para o boteco do Osório, onde pegariam um comercial maneiro.
Suados como estavam, Celso e Hiro entraram no Corolla e foram direto para o Bar
do Bicalho, ali pertinho.
A chegada de Celso Teles
ao Bicalho na hora do almoço assustou o proprietário, que falou para a moça do
caixa:
– Ué, o doutor querendo
almoçar aqui?! E ainda trazendo um japonês com ele? Mas o que é que eu posso
servir pra eles? Meu comercial, prato pronto?
Mais surpreso ficou
quando Celso, ao ser atendido por ele pessoalmente na mesa 3, foi logo dizendo
o que queria:
– Bicalho, meu camarada,
eu trouxe aqui o meu grande amigo de infância, Hiro san, para comer o melhor bolinho de ovo de Amarante, o do seu bar.
– Bolinho do que? De ovo?
Mas, doutor, me perdoe, essa eu vou ficar devendo. A gente não tem isso, aqui.
Eu nunca fiz...
– Mas como? – falou Hiro,
fazendo cara de brabo, cerrando o cenho – então você deixa de me levar na
churrascaria e me traz neste lugar, dizendo que eu vou comer o melhor bolinho
de ovo da cidade, melhor até que os de São Paulo, e agora isso? O homem nunca
viu um bolinho de ovo. Mas que belo amigo você me saiu!
Bicalho já estava
começando a suar, apavorado:
– Doutor, me perdoe,
estou fazendo o senhor passar vergonha com o seu amigo, mas... Por favor, leve
o homem pra churrascaria. Leve pra Estrela dos Pampas, é a melhor, a do
Etelvino, o gaúcho.
Mas o japonês baixinho
ficou ainda mais invocado e deu um tapa na mesa:
– Churrascaria porra
nenhuma! Eu vim aqui comer bolinho de ovo. Só saio depois de comer bolinho de
ovo. E eu já tô ficando nervoso. Vocês dois deem um jeito nisso ou eu não me
responsabilizo, quebro esta joça toda aqui!
O Bicalho, em pânico,
olhava desesperado para Celso Teles, já com medo daquele japonesinho gordo e
invocado pensando: Na certa, pra botar
toda essa banca, é um lutador de judô, de caratê, de jiu jitsu, um faixa preta
numa dessas merdas quaisquer.
Porém Celso, de repente, não
se aguentou mais e caiu na gargalhada, falando:
– Ô, japonês sacana! Para
de tirar sarro do coitado do Bicalho e liga logo pro seu amigo Baltazar, lá em Indaiatuba.
E, ainda rindo muito,
seguiu:
– Senta aqui, Bicalho,
relaxa, que eu vou te explicar o que é o tal bolinho de ovo, o bolovo de São
Paulo. É claro que a gente sabia que você não tem ele aqui. Ninguém tem em
Amarante. Por isso, se você fizer, de cara o seu já vai ser o melhor da cidade,
porque não vai ter concorrente. Agora o japinha aqui vai ligar para um amigo
dele, que tem um bar como o seu lá em Indaiatuba, São Paulo, que é a cidade
onde ele e eu nascemos. E ele vai ensinar você a fazer o tal bolinho.
E, enquanto Hiro Ito
começava a conversar, alegre, com Baltazar, Celso concluiu:
– O negócio é tão
elementar que você vai fazer com a maior facilidade. Aí a gente espera e só sai
daqui depois de comer o tal bolinho. Mas é claro, enquanto você manda sua cozinheira
fazer, a gente vai se esbaldando nas coxinhas e outros salgadinhos que você tem
aqui, pode mandar um garçom aqui que eu faço o pedido.
Hiro passou o telefone
celular para Bicalho, que o levou ao ouvido e falou:
– Sim, senhor, sou eu.
Aanh... Aanh... Sim... como? Mas é SÓ ISSO?!!! Ovo cozido duro que é empanado?
Ora, mas isso qualquer um faz. Que beleza, vou mandar fazer agora mesmo. Olhe, se
o senhor esperar, eu vou mandar chamar a minha cozinheira aqui agora mesmo e o
senhor explica direto pra ela. Pode ser? Tá, muito obrigado, sim?
Devolveu o telefone a Hiro
e mandou chamar a cozinheira com urgência. Uma mulata rechonchuda de meia-idade,
sorridente, veio correndo.
– Esta é a Jacira, minha
cozinheira, a melhor comida de Amarante. Fale com o moço que está nesse
telefone aqui do seu Hiro, Jacira.
O Baltazar explicou tudo
com minúcias a Jacira, deu as dicas e segredos para ela e desligou. A mulata
saiu toda rebolante para a cozinha, dizendo:
– Podem deixar comigo,
daqui uns minutos vocês vão comer o melhor bolinho de ovo de Amarante – e
soltou uma sonora gargalhada.
– Simpática essa sua
cozinheira, Bicalho. Pode ser muito boa, mas daí a você afirmar que ele é a
melhor comida de Amarante...
– Isso é porque o senhor
ainda não comeu ela, doutor. Se tivesse comido, concordava comigo.
– Bicalho, seu sacana...
– disse Celso, rindo também.
– Bom, agora que vocês já
me deram esse susto tremendo, deixem que eu vá cuidar do resto do serviço, a
casa está começando a encher. Com licença. Ah, sim, quantos bolinhos de ovo
vocês querem?
– Mande fazer uma dúzia,
Bicalho, pode ser que assim sobre algum para você experimentar.
De fato, menos de meia
hora depois, a exótica culinária do ovo duro estreou em Amarante. Fórmula
mágica de Baltazar de Indaiatuba, executada com perfeição por Jacira, a melhor
comida de Amarante, segundo garantia seu chefe e protetor.
– Ah, o manjar dos
deuses, japinha!
– Perfeito. A cabrocha do
seu amigo Bicalho acertou em cheio, No momento, com certeza, pra mim, esta é a melhor comida de Amarante. E
enfiou mais um bolinho inteiro na boca.
Quando voltaram para a
rua Tuiuti, cerca de duas da tarde, já o pessoal todo estava atracado com as
mantas de grama, aplicando-as com a técnica ensinada por Hiro. Celso e o
próprio Hiro incorporaram-se imediatamente ao grupo e a colocação prosseguiu
tarde adentro.
anese meio tempo, na oficina
da Teles Automóveis, uma loirinha curiosa e agitada perguntava a seu padrinho,
enquanto etiquetava peças de carros;
– Puxa, onde andará o
doutor, nem voltou aqui de manhã, nem veio almoçar com a gente. Será que
continua lá na Tuiuti?
– Mas é claro, pode
apostar, do jeito que ele está empolgado com os tais campos de futebol dele,
com a chegada da grama, aposto o que você quiser que ele mesmo está ajudando a
colocar as placas no chão.
– Ah, essa eu queria ver!
Duvido que ele vá fazer um serviço de peão desses. Ele é o dono, não é?
– É o dono, mas é o
Celso. Aposto que ele não apareceu porque está colocando grama.
– Pois eu aposto que não.
Vale um bolo de chocolate da Bom Bocado, aquele com recheio de castanha do
Pará.
– Fechado! – respondeu
Fúlvio Rondelli. Mas aí, olhando com mais atenção o sorriso de vitória da
afilhada, percebeu que tinha entrado na jogada dela. A safadinha, o que queria,
era ir ao campo de futebol já. Ah, ele começava a ter esperanças que... Não! Melhor
não imaginar coisas, a adivinha ali era a espanholita Gládis. Talvez, se
perguntasse para ela...
– Então, tio, vamos lá? Ou está com medo de perder a aposta?
– A aposta eu já ganhei.
Mas vamos lá, então, já que isso é o que você mais quer agora.
Larissa, mais uma vez se
traiu através do tom da face. Mudança sutil, mas aquele à sua frente era Fúlvio
Rondelli, não era qualquer um que não sabe ler mensagens sutis.
Poucos minutos depois,
estavam entrando no terreno da Tuiuti. Fúlvio foi direto pra o grande prédio
quase pronto e ficou admirando a perfeição dos detalhes de acabamento já
colocados. Larissa não o acompanhou. Fazendo algo que era marca registrada sua,
foi se esconder atrás de uma pilha de madeiras, para observar o campo em
trabalho bem de perto, sem ser vista.
De fato, Celso, sem
camisa e todo suado, estava ao sol, abaixado como todos os outros, aplicando
placas de grama em grandes rolos, com atenção e velocidade. O padrinho tinha
levado a aposta!
Nossa, esse chefinho era
demais! Trabalhava como qualquer um ao lado, trabalho de peão, que ele fazia
todo alegre, ainda brincando com muitos e, ainda mais, com um japonesinho
gorducho, que arfava ao lado dele, todo suado também.
Ficou observado dali por
um bom tempo, sua atenção agora colocada na musculatura notável das costas e do
peito do chefe. Nossa, que forte, não dá
pra imaginar com ele vestido! Lembrou de Leon sem roupa, parecia-lhe agora
um meninão magro, um espicho, um fracote comparado com Celso Teles.
Quando Fúlvio se
aproximou, fez-lhe sinal para que ficasse ali com ela, sem se deixar ver
também. E sem fazer barulho. Dali viram quando o grupo chegou à metade do
campo. E então todos pararam. Celso parecia satisfeito demais com o resultado.
Riu, abraçou o japonês, abraçou o homem enorme que parecia ser o chefe dos operários,
apertou as mãos de todos, um por um. Ouviram-no falar:
– Perfeito, pessoal! Por
hoje está bom, é melhor parar e molhar, o sol está muito forte. A água está
pronta, Nicanor?
O mulato enorme fez um
gesto para um rapazinho sardento de cabelos ruivos curtinhos e este ligou uma
chave. Imediatamente uma grande bomba centrífuga roncou e a água começou a
jorrar de três grossas mangueiras conectas a elas. Nicanor pegou uma delas, o
rapazinho pegou outra, com certa dificuldade, porque a força do jato que
emergia era enorme. Um terceiro homem pegou a terceira mangueira. E,
voltando-as para o campo e para cima, fizeram cair uma chuva torrencial sobre o
gramado recém-instalado.
CONTINUA
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