MILTON MACIEL
16 - A ÚLTIMA SEMANA DO MÊS!
Fim do cap. 15: "– Rondelli acabou de tranquilizar sua menina, que foi para casa com gosto de quero mais: Que pena que o chefe tinha ido embora assim, de repente. Não tinha conversado nada legal com ela. E era tão bom conversar com ele!"
Naquela semana que se seguiu, a última de
Outubro, coisas importantes demais aconteceram: Na terça-feira, chegaram as
seis carretas com os 84 automóveis novos e seminovos, que vieram de Ribeirão
Preto. No mesmo dia, às duas da tarde, chegaram as vendedoras Paula e Jennifer,
que eram mais duas jovens e belas mulheres do esquadrão fatal de Celso Teles.
A passagem daquele desfile de enormes
caminhões-cegonha foi o grande acontecimento da cidade por vários dias. Nunca
os habitantes tinham visto tantos carros de alta qualidade, todos como zero
quilômetro, juntos. De propósito, Celso havia ordenado um trajeto em que eles
passariam por vários pontos vitais da cidade, além da zona central. Depois os
veículos ocuparam as ruas que definiam a grande praça em frente à Revendedora e
ali permaneceram tranquilos, expostos à intensa visitação pública. Mais
propaganda do que isso era desnecessário!
Até os Schlikmann, todos os três, vieram
contemplar aquelas jóias raras da Teles Automóveis. Os Silva também,
capitaneados por Madame Silvá, que foi arrancar o velho Valdemar de sua
transportadora e o trouxe a pulso para ver aquele mundão de automóveis, a maior
parte dos quais ninguém tinha igual em Amarante.
Antes mesmo que a Revenda fosse inaugurada, as
moças de Celso Teles tiveram que atender a dezenas de interessados. As pessoas
cercavam as carretas e esperavam pelo desembarque e acomodação de cada veículo
no enorme pátio interno, onde eles seriam lavados e polidos, antes de poderem
entrar para os amplos salões de exposição internos. Muitos acompanhavam um determinado carro já
gritando para os outros:
– Esse é meu. Ninguém tasca, eu vi primeiro.
Nessa batida, a primeira encrenca já surgiu
antes de meia hora. Neco Palhares e Jonas Miúdo, ambos sócios destacados do
Clube dos Imigrantes, foram às vias de fato por causa de um Audi zero
quilômetro. O “ninguém tasca, eu vi primeiro” não valeu para Neco Palhares, em
que pese Jonas Miúdo ter acompanhado o Audi desde a descida da carreta e estar
com os braços envolvendo o capô empoeirado, o paletó branco completamente em
miséria ante o abraço carinhoso ao veículo. Mas Neco Palhares discordou:
– Que besteira é essa, Miúdo? Por que o carro
tem que ser seu? Eu também quero. E estou disposto até a pagar um ágio sobre o
preço dele. E garanto que levo, duvido que você tenha poder de fogo pra
cobrir minha oferta.
Imediatamente o pau degenerou. Aquilo tinha
passado de uma simples disputa por um automóvel para o campo da ofensa
pessoal: O desgraçado está me chamando de pobre!
E sentou um murro na cara de Palhares na mesma
hora, Mas, como o apelido já dizia, Jonas era mesmo miúdo, de forma que o soco
atingiu foi o peito gordo do súbito desafeto. Que revidou na mesma hora também,
atingindo a cabeça desguarnecida do baixinho. A turma do deixa disso entrou
imediatamente em ação, segurando os dois contendores, que ficaram se xingando e
colocando os podres pra fora, um do outro:
– Rolha de poço! Mastodonte!
– Baixinho corno.
– Viado!
– Filho da puta!
Foram a avisar Celso do tumulto lá fora. Ele
estava com Fúlvio Rondelli e ambos saíram correndo para a frente da loja. Ante
a baixaria, Celso foi rápido e rasteiro:
– Podem parar, senhores, a causa é perdida.
Infelizmente para vocês este carro já
está vendido.
– Como?? Pra quem? – berraram em uníssono os
dois brigões, interrompendo os tapas.
– Para meu amigo e colega Fúlvio Rondelli, é
claro.
Fúlvio levou um susto, Mas entendeu logo qual
era a jogada do patrão e entrou na dança convicto:
– Isso mesmo, estou esperando há dois meses por
esse carro.
– Mas... você? Ué, de onde tirou dinheiro pra
isso? Você sempre foi um durango, que eu sei.
– Engano seu, meu amigo – atalhou Celso Teles –
Sempre, não. Agora ele tem outra condição, é o maior salário da empresa. Mas,
independente disso, uma parte do valor do carro faz parte dos nossos acertos
para a compra da oficina dele.
Os dois ex-brigões murcharam. Olharam atônitos
um para o outro, tinham feito papel de trouxas, brigado por nada afinal. Aquele
maldito italiano durango é que ia curtir com a cara deles. E o resto do pessoal
ali presente também, que já apontavam para ambos e se dobravam de rir.
Inclusive Celso Teles, fazendo um enorme esforço para parecer discreto.
A esta altura a
experiente Carmen tinha chegado apressada, para saber o que tinha
acontecido, o que tinha feito o chefe e o mecânico saírem correndo da loja. Uma refinada vendedora e resolvedora de
conflitos nata, tomou a iniciativa de imediato:
– Ah, mas que pena, ver dois amigos se
desentendendo por tão pouco. Se eu soubesse disso, se eu estivesse aqui, teria
evitado tudo isso.
– Mas como, moça? – arriscou um
impressionadíssimo Jonas Miúdo, que não conseguia tirar os olhos daquela boca
carnuda da espanhola.
– Ora, os senhores discutindo por um Audi
quando eu tenho uma carreta inteirinha só de Mercedes importados, alemães
legítimos, para descarregar, aquela
última da fila.Aqueles sim são carros para quem pode, para quem tem uma posição
social de elite, como os senhores dois. Venham comigo.
E dirigiu-se para a última carreta, arrancando
um aplauso discreto de Celso Teles, que ficou com Fúlvio Rondelli por ali.
Todos os outros espectadores do pugilato correram juntos, atrás de Carmen e dos
lutadores. Queriam ver os Mercedes, deviam ser um luxo só. Mas tinham a secreta
esperança de que a briga recomeçasse, com os dois, outra vez, se embeiçando
pelo mesmo automóvel.
Mas isso não aconteceu. Neco Palhares logo
voltou, desiludido. Para ele, automóvel era Audi e fim de papo. Ou era um Audi,
ou era nada. Falou isso para Celso, que prontamente sugeriu:
– Por que o senhor não procura se entender com
o Rondelli aqui. Ele recebeu o carro pelo preço de lista, o preço FIPE. Mas, se
receber um bom ágio por fora, quem sabe...
Rondelli arregalou os olhos. Que jogada do
chefe, aquilo era uma águia!
Neco Palhares, animadíssimo de novo, foi direto ao ponto, sem perder tempo, aproveitando enquanto o desgraçado do tampinha não
voltava e não se metia de novo no negócio dele:
– Eu posso dar dez mil hoje mesmo. É um
excelente ágio.
– Só?! – estranhou Celso, com cara de
incrédulo.
– Só?... estranhou Palhares que Celso estranhasse.
– Bem, é que me disseram que o senhor é um dos
homens mais ricos, dos mais respeitados desta cidade, por isso.
Atingido em seu orgulho, golpe certeiro
encestado pelo paulista, Palhares aumentou a oferta:
– Doze mil.
Mas Celso tinha feito sinal para Fúlvio não
aceitar por enquanto. Então o mecânico falou, com ar de enfado:
– Não, não me interessa. Por essa merreca eu
não deixar de ter o prazer de desfilar por Amarante com o meu Audi Zero.
Neco imaginou a humilhação pela qual passaria,
aquele pé-de-chinelo desfilando com o carro que ele tinha chegado a disputar a
socos. Viu-se ridicularizado, os outros sócios do clube gozando com cara dele,
o italiano contando para todos sobre a oferta de um ágio que só um pobre
ofereceria. Começou a entrar em pânico:
– Vinte mil! Vinte mil e não se fala mais
nisso!
Agora Celso fez sinal de positivo para Fúlvio.
Este deu-se por vencido:
– Está certo, Doutor Neco, eu me rendo – pelo
menos estava promovendo o trouxa do Neco Palhares a doutor, como gostava de
fazer.
Saíram dali para dentro da loja, para lavrarem
os documentos e nota fiscal de venda à vista. Antes, Neco Palhares preencheu e
entregou a Rondelli um cheque de vinte mil reais, ao portador. Era a primeira
venda da loja ainda não inaugurada de Celso Teles em Amarante. Era necessário
que as normas fossem respeitadas. Uma vendedora devia fazer todo o processo e
embolsar a respectiva comissão. Celso hesitou um pouco, mas viu, por trás de
Rondelli, que Gládis apontava discretamente para Larissa.
Bingo, sua espanholita esperta e generosa como
sempre! Chamou Fúlvio e Gládis de lado e confabulou rapidamente com eles. Então
fez sinal para que Larissa se aproximasse:
– Sua colega Gládis, a subgerente da loja, que
decide sempre que a gerente, Carmen, não está presente, acaba de indicar você
para fechar este processo de venda, Larissa. Por favor, assuma o controle com o
senhor Neco Palhares, Seu padrinho e a própria Gládis vão ajudá-la com os
documentos, não é nenhum bicho de sete cabeças.
E afastou-se logo, para deixar a boquiaberta
Larissa à vontade para desempenhar seu primeiro papel de vendedora. Voltou-se
de longe, já à porta do seu escritório, a tempo de ver Larissa, com os olhos
molhados, apertando as duas mãos de Gládis entre as suas. Já sabia o que ela
estaria dizendo, sem sombra de dúvida:
– Deus lhe pague!
Ah, como era bom ter Larissa ali na loja e na
oficina. Como seria miserável uma vida sem ela ao alcance dos olhos e dos
sonhos!
Minutos depois Rondelli apareceu triunfante,
com um sorriso de Papai Noel, comentando:
– Sucesso total, doutor. O homem já pagou o
carro e minha afilhada fez toda a tramitação, seguindo a orientação da
espanholita filha. Que garota de ouro essa sua, patrão!
– Sim Rondelli, todo o meu povo é assim, só
gente de muito, muito valor. Gládis poderia ter escolhido a ela mesmo, sua mãe
ou Paula ou Jennifer. Mas, como você viu, pensou primeiro em Larissa. Por essa
e por outras é que eu faço qualquer coisa por essa menina, o que ela quiser e
precisar.
Rondelli lembrou-se do cheque e o entregou a
Celso:
– Olha aí, doutor, o cheque, o ágio, os vinte
mil mais moleza que o senhor já ganhou.
– Que eu ganhei, Rondelli?! Você pirou? O homem
pagou o ágio para você, o Audi era seu.
– Mas como, doutor? Aquilo era só figuração,
para enganar aquele idiota do Neco.
– Engano seu, Rondelli. Não era nem figuração,
nem para enganar. Era uma forma de punir aquele pavão. E de fazer ele dar uma
grana bem razoável para você.
– Para mim?! Mas o senhor vai ter um prejuízo
enorme!
– Deixe de dizer besteira Rondelli, eu não vou
ter prejuízo algum. Acabei de vender o carro pelo preço certo, de tabela, fico
com o lucro normal, depois de descontados os custos e a comissão da vendedora Larissa,
inclusive.
E entregou o cheque de volta a Fúlvio.
Que levantou da cadeira de um salto, deu um
abraço no chefe, murmurou um muito obrigado carregado de emoção e correu para
mostrar o cheque para sua menina. Ah, ela precisava ver aquilo. Não pelo valor
do cheque em si, altíssimo, mas pelo valor imensamente maior da ação daquele
homem incomparável.
Estava fazendo isso, emocionados os dois,
quando Fúlvio olhou para fora e falou rápido:
– Xi, seu pais estão chegando, estão vindo para
a loja. Vamos correr para a oficina, tire esse casaquinho azul de uniforme das
vendedora de Teles. É certo que eles vão querer ver você na oficina comigo, é
só uma questão de tempo. Vamos embora, vamos botar um montão de peças nas
bancadas e no chão, aí você brinca de classificar. Vamos. Rápido.
Valdemar Silva ficou um bom tempo do lado de
fora, apreciando os automóveis que ainda estavam nas carretas e os que estavam
sendo descarregados. Aí viu que havia um grande número de carros já
estacionados no patio interno, alguns sendo lavados. E comentou com a esposa,
Madame Silvá:
– Esse rapaz parece louco. Onde ele espera
vender todos estes carros de luxo? Aqui em Amarante? Ora, aqui, com muita
sorte, vende no máximo uns vinte. E bem devagar. Preciso dar uns conselhos para
esse moço.
– Mas vamos entrar logo, marido. Vamos, antes
que apareça compadre Schlikmann e compre o carro mais caro da loja. Esse carro
tem que ser nosso, Grand Dieu!
– Criatura, para de falar comigo nesse idioma
arrevesado! Já lhe disse que eu não suporto essa sua exibição. Comigo não,
violão.
– Ah, marido, sabe como é, passei tanto tempo
em Paris, a gente se acostuma como a língua, os costumes, o caviar, as
baguetes, os...
– Você passou dois meses em Paris, criatura! Só
dois meses. E quer que eu acredite que virou francesa. Pra cima de mim, não.
– Ah, mas você não compreende. É como se eu
tivesse voltado pra casa. Não importa o tempo que fiquei lá, tenho certeza que
vivi em Paris na minha encarnação anterior. Eu me sinto completamente francesa.
– Tá bom. Mas na minha frente não, senão eu vou
ter que falar pra todo mundo, lembrar você inclusive, que você é só uma colona
italiana da Linha Mangelli, uma menina da roça analfabeta e bonitinha que eu achei
um dia por ali.
Madame Silvá fechou-se em copas. Não adiantava,
aquele seu marido era um grosso, não tinha finesse,
nunca teria la grande éducation, nunca seria um Monsieur Silvá. Tinha sido, continuava
sendo, seria para sempre só um caminhoneiro bronco e mal educado. Mas, pelo
menos, ficava mais rico a cada ano, e isso deculpava todo o resto.
Ela era a grande Madame Silvá, a mulher mais
rica da cidade. E era também a mãe da mulher mais bonita de Amarante. Tinha
motivos de sobra para se orgulhar. E para exigir que aquela gentalha toda lhe
devesse render tributo.
Estava ali para obrigar aquele mão-de-vaca a
comprar o carro importado mais caro daquela firma nova. O mais caro, não
importava a marca, desde que fosse novo, zero quilômetro, é claro. Por isso
tinha pressa, queria resolver isso logo, antes que Adolfo Schlikmann chegasse
com a mesma ideia. E queria fazer o marido trocar o carro da filha. Afinal,
Larissa já tinha aquele SUV há mais de dois anos e não ficava bem, para gente
como eles, que vissem a filha andando sempre no mesmo carro, como se eles fossem uma gentinha qualquer.
E também estava na hora de mostrar para aquele
moço de São Paulo , que parecia tão
rico, quem eram as pessoas mais ricas do lugar. Ele que botasse a viola no saco
e aprendesse a respeitar os Silvá!
Assim que entraram, foram recepcionados por uma
jovem de incrível beleza e maior simpatia, que se identificou com o nome de
Gládis. Ela perguntou se eles eram os pais da jovem Larissa e, recebendo
resposta positiva, derramou-se a fazer elogios à beleza e à finesse da moça.
Ao pronunciar a palavra francesa, ganhou de imediato a simpatia de Madame
Silvá. Sim, sua filha tinha muita, muita finesse. Assim como ela mesmo, sua mãe. Era uma questão de berço. Na certa, também ela havia
vivido na França na encarnação anterior.
– A filha de vocês é uma moça notável. Além de
ser a mulher mais bonita que eu já vi, é
de uma bondade sem fim. Imaginem que ela vem para cá todos os dias e fica,
feliz da vida, ajudando o seu padrinho na organização da oficina. E isso sem
ganhar um tostão sequer, não é nossa funcionária.
– Minha filha é mesmo maravilhosa – falou,
orgulhosa, Madame Silvá. E ela foi Miss Amarante, sabia?
Gládis fez sinal com a cabeça que sim, não
queria que a mulher entrasse naquele assunto e fosse ficar contando papagaiadas
horas a fio. O marido dela comentou:
CONTINUA
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