MILTON MACIEL
9 - FUTEBOL DE VÁRZEA!
Fim
do cap. 8: “ – Bom, quem vai gostar disso vai ser o
Leon, o homem do agarramento lá na churrascaria. Outra vez o italiano percebeu
que o chefe estremeceu levemente. Bingo: ah, falei Leon, ele ouviu Larissa! Mas
o chefe pareceu vivamente interessado:
– Por que o Leon? Ele tem algo a ver com
futebol? Gosta de jogar?”
– Ele tem um time, doutor. Gosta
tanto que montou um time ele mesmo. É o dono da bola, das camisetas, o técnico,
o atacante, o jogador principal.
– Não me diga! Que
interessante...
– Ué, interessante por que?
– Não, não, continue falando
disso, continue...
– Bem ele tem um time que se
chama Delfim Futebol Clube e que, basicamente, é formado de jogadores que são
sócios do Clube Imigrantes, o clube de elite da cidade.
– O clube dos riquinhos, então?
– É, mais ou menos isso.
– E eles jogam bem? Jogam com
outros times da cidade aqui...
– Aí é que está, eles não jogam
mais com times daqui, que são todos de várzea. Jogaram no início. Mas depois
não quiseram mais. Uma, porque eles ganhavam sempre, não tinham adversário à
altura. E outra, que eles se acham elite mesmo. Nunca tiveram ninguém no time
que não fosse branco.
– Opa, racismo! Caramba, isso me
deixa furioso! Ah, se eu tivesse um time pra tocar pra cima desse moleques
filhinhos de papai!
– É, aqui não tem nada de outro
time. Quer dizer, tem uns grupinhos de futebol de várzea, tem o Nacional e tem
o Bandeirantes, que são os mais bem organizadinhos, têm até jogo de camiseta.
– E esses times jogam sempre
aqui? E jogam onde?
– Ah, eles são todos muito
pobres, jogam toda semana lá na baixada,
que é um pedaço de campo meio em declive, na beira do rio. É pessoal
trabalhador, não têm tempo de treinar, forma física, nada disso. Fazem uns
rachões de solteiros contra casados, de vez em quando juntam todo mundo e sai o
jogão entre Nacional e Bandeirantes.
– E como é que eles são com a
bola? Um é melhor do que o outro?
– Bem, doutor, eles são
fraquinhos, até porque só jogam para se divertir, jogam por cerveja, quem perde
paga. Mas atualmente o Nacional está bem melhor que o Bandeirantes. O Nacional
é o time dos pretinhos, os caras do time do Leon os chamam de alvinegrada,
porque o uniforme deles é preto e branco, alvinegro, mas é claro que é por
maldade.
– Um time só de pretinhos?
– Não, tem de tudo, preto,
mulato, alemão, todos muito amigos. Mas é tudo gente humilde.
Celso Teles deu um enorme tapa na
mesa, que estremeceu e virou a garrafa de cerveja. Ergueu-se afogueado, era só
fogo e entusiasmo:
– Pois eu quero conhecer essa moçada!
E já, Seu Fúlvio Rondelli!
– Já? Agora? A esta hora da
noite? Ora, não tem como reunir os caras hoje...
– Já é já, homem! Todo grupo tem
um líder. Quem é que dá as cartas no Nacional? Sabe onde ele está a estas
horas?
– Bom, é o Bentinho. E, a estas
horas, pode contar que ele já está no bar do Bicalho. É que ele faz bico à
noite lá, como garçom. De dia é torneiro mecânico.
Celso jogou uma nota de cinquenta
em cima da mesa e sinalizou para o Aragonez, que estava por perto, falando bem
alto para que os outros garçons também pudessem ouvir:
– Ó aí, põe o troco todo na
caixinha dos funcionários, tá!
E arrancou Fúlvio Rondelli da
cadeira pelo braço, com uma pressa danada.
– Vem no meu carro, italiano,
você dirige muito devagar. Vamos tratar de chegar logo no Bicalho. Você vai ter
que tomar cerveja choca de novo.
Em quatro minutos Celso estava
saltando do Corolla e entrando esbaforido no Bar do Bicalho. E perguntando:
– Cadê o Bentinho?
Apontaram para o mulatinho jovem,
encostado em pé a uma das mesas vazias, do lado esquerdo. Celso sentou
exatamente ali e pediu ao rapaz:
– Cerveja boa. E bem gelada, por
favor.
Só aí Fúlvio Rondelli chegou e
sentou também. Enquanto Bentinho ia providenciar a bebida e os copos, ele
falou:
– Caramba, doutor, o senhor não
perde tempo. Mas por que toda essa pressa?
– Ah, Rondelli, eu sou assim,
você vai me conhecer melhor. Quando eu tenho uma ideia, eu fico como que tomado
por ela e não sossego enquanto não consigo colocar em prática.
– Então, agora, o senhor tem uma
ideia para o Bentinho. E para o Nacional, imagino.
– Na mosca, italianinho! Para o Nacional
e para o Bandeirantes também.
– Catzo! Mas que coisa pode ser isso?
– Seguinte, vai lá e explica pro
Bicalho que eu vou precisar do Bentinho por uma hora. Emergência. E que eu
acerto os custos na volta, com o Bicalho.
Rondelli foi, explicou e voltou
com o próprio Bicalho, que disse para Bentinho:
– Você vai ficar à disposição
destes dois senhores enquanto ele precisarem. Não serve mais ninguém.
– E sai com a gente um pouquinho,
também. A gente traz você de volta, é claro.
Dizendo isso, Celso foi
empurrando Bentinho para fora e levando-o para o Corolla, junto com Rondelli.
Após entrarem, explicou a um mais que assustado Bentinho o que iam fazer:
– Não se assuste, rapaz, não é
sequestro com a cumplicidade do seu patrão. A gente só quer lhe mostrar uma
coisa, uma coisa que está bem pertinho daqui.
– Você sabe quem é ele, Bentinho?
– É Seu Celso, da firma de automóveis
nova, lá onde era a concessionária GM dos Andrade.
– Isso mesmo, rapaz. É Seu Celso
Teles, meu patrão. E olhe bem, seja o que for que este maluco do meu chefe
esteja pensando fazer, que nem eu mesmo sei bem o que é, pode ter certeza de
uma coisa: vai ser muito bom para você.
– E para o Nacional, completou o
próprio Celso.
Nesse instante já chegaram ao
terreno da rua Tuiuti, que de fato era muito perto do Bar do Bicalho. Rondelli
ficou admiradíssimo de ver que, às oito da noite, os homens ainda estavam
trabalhando, sob um banho feérico de holofotes acesos.
– Benza Deus, doutor! O pessoal
trabalhando até estas horas!
– Vão até às dez, Rondelli.
Trabalham das sete da manhã às dez da noite. Tiramos licença na Prefeitura.
Afinal, o Nicanor é um cara tão agoniado quanto eu.
Um prédio térreo, que devia ter
uns quatrocentos metros quadrados, pela estimativa experiente de Fúlvio
Rondelli, já estava praticamente pronto. Já coberto, o pessoal trabalhava
intensamente dentro dele, na fase final de acabamento. Todas as janelas já
tinham vidros, todas as portas internas já estavam no lugar, um exército de
azulejistas trabalhava nas paredes dos banheiros e nos pisos de cerâmica de
toda a construção.
Celso não se demorou ali, no
entanto, explicando:
– Aqui vai ser a academia
inicialmente. E outras coisas mais. Mas não foi por causa disso que eu trouxe
vocês aqui. O que eu quero que vejam está lá mais adiante, na parte escura do
terreno. Vamos lá.
Ao passarem por dois enormes
buracos, ainda ladeados de montes altos de terra, explicou:
– Aqui vão ser as duas piscinas.
Logo, logo, ficam prontas também. Mas o que eu quero mostrar é a minha menina dos
olhos, a coisa mais importante para mim: Vejam só, não está tão escuro que não
possam distinguir. O que lhes parece isso?
– Uma terraplenagem? – arriscou
Bentinho – Poxa, que coisa mais lisinha, dava até pra jogar bola aqui. A gente
tem que jogar num campinho meio inclinado, onde a bola corre sempre pra um lado,
lá na beira do rio.
– São os... os campos de futebol,
doutor? – arriscou Rondelli, que já estava informado a respeito deles.
– Isso mesmo, Rondelli. Meus tesouros,
minhas joias!
– Poxa, campos de futebol, Seu
Celso?! Aqui, em plena Amarante? E, ainda por cima, DOIS ao mesmo tempo?
– Isso mesmo, menino. Dois. E
ficam prontos antes do fim do mês.
– O que, doutor?! Mas como?
– Estamos esperando toda a grama
para amanhã, se quer saber, italiano. É a única coisa que vem da minha cidade
natal, de Indaiatuba. Um tapete verde perfeito, que é só instalar placa por
placa. Depois passamos aquele enorme rolo ali, compactamos, molhamos muito
todos os dias e esperamos pegar bem. Aí é só pintar, colocar as traves e já
podemos inaugurar.
– Poxa, inaugurar ainda este mês?
E quem vai jogar?
– Ora, que pergunta, seu
Bentinho, quem vai jogar! Francamente! Ora, os nossos melhores times de
futebol: O Nacional contra o Bandeirantes.
Bentinho quase tem uma síncope.
Não era uma notícia, era uma paulada na cabeça, a mais deliciosa paulada que
poderia receber na vida!
–Nós, Doutor Celso? Nós, uns
timinhos de várzea de nada? Não vão ser times profissionais de fora daqui. Ou o
time dos riquinhos, o do Seu Leon?
– Não mesmo, meu camarada. Vão
ser os dois times que merecem mais respeito, os times do povo de Amarante.
Vamos marcar já o dia do jogo: dia 31, domingo. Agora você já sabe, pode levar
a notícia para os seus camaradas, vão se preparar para o grande dia. Vamos lá,
que eu vou deixar você de volta no Bicalho.
– Eu não vou conseguir trabalhar!
Ah, não vou! Hoje o movimento é fraco, vou pedir dispensa pro Bicalho. Não vou
me aguentar, vou pegar minha moto e vou de casa em casa, de emprego em emprego
noturno, vou falar com toda a turma.
E você poderia avisar o pessoal
do Bandeirantes também, nesse caso? Não são inimigos?
– Ora, que ideia, a gente é tudo
amigo, seu Celso! Meu compadre Dieter é o chefe do Bandeirantes. É o primeiro
que eu pensei em avisar. Primeiro ele
vai me xingar de mentiroso e ficar muito brabo comigo. Aí eu boto ele no lombo
da moto, trago aqui e ele se derrete. Ele vai cair na choradeira, eu garanto. O
alemão se derrete por qualquer coisinha, imagine vendo este preparo para um – não,
para dois – campos de futebol. Capaz de o homem ter um treco, porque eu mesmo
quase tive.
Três minutinhos depois, Celso
desceu no bar do Bicalho, procurou o dono e estendeu-lhe uma nota de cinquenta
reais, para compensar o prejuízo com a saída de Bentinho. Mas quando este
contou, todo esbaforido, já pedindo licença para ir embora, o que tinha
acontecido, Bicalho devolveu a nota para Celso:
– Não senhor, o senhor não
precisa pagar nada. Um homem que faz o que o senhor está fazendo por Amarante,
não tem que pagar nada. E tem mais: dia 31, domingo, o Bar do Bicalho não abre,
vamos todos para o campo ver o jogo. Deus lhe pague, Doutor Celso, por que esta
cidade nunca vai poder pagar tal benefício.
E, num gesto inesperado,
adiantou-se e abraçou longamente o paulista, batendo-lhe energicamente nas
costas:
– Deus lhe pague.
Estava aí! Celso retribui o
abraço com a mesma intensidade, pensando: Caramba
esse cara me pegou. Vou virar cliente cativo, vou me acostumar com cerveja
ruim, ele merece, Ou então dou um jeito nisto tudo aqui, quem sabe. Que sujeito
batuta, me ganhou pra sempre hoje.
No dia seguinte, como fazia
sempre, Celso correu seus doze quilômetros e entrou pontualmente na academia do
Nelson às 6 da manhã. Ele era o único cliente. Passando pelo professor,
passou-lhe também a mão na bunda e cumprimentou:
– Bom dia, como vai a minha Demi
Moore? Já foi procurar o contador?
– Ô cara, se fui, enchi o saco do
sujeitinho, fiz ele trabalhar de noite até quase meia-noite, aqui comigo,
prometi uma nota preta. Acho que está tudo aqui, ó.
– Legal, depois do banho eu pego
e levo. Apareça lá de tarde, para pegar o seu cheque executivo, deve estar tudo
certo, o meu contador, que já está aqui em Amarante, vai arredondar tudo e
redigir o documento de compra e venda. Aí você assina e vai depositar a sua
grana.
– Mas já hoje?! Cacete, isso pode
ser tão rápido assim?
– Claro, cara. Ou a gente quer ou
não quer. Se quer, tem que ser na hora, perder tempo com mais burocracia é
estupidez.
– Caramba. Celso. Ontem eu estava
na merda, amanhã posso estar com uma conta bancária gorda como nunca tive na
vida. Aí quito e vendo o carro e vou ficar com uns cento e quinze livres,
disponíveis pra viver em Miami na boa, por um ano. No seu apartamento, ainda
por cima...
– Mais, não é? Se você for frugal
assim como diz, ainda vai levar a maior parte do seu salário junto.
– Meu salário? Que salário?
– Ora, cara, você não vai
trabalhar dois meses para mim? Não vai ser meu funcionário?
– Sim, vou trabalhar os dois
meses, com toda certeza. Mas eu pensei que esse trabalho já estava incluído nos
cem mil.
– Que é isso, camarada, tá me
estranhando? Desde quando eu sou de explorar o trabalho dos outros? Você vai ganhar
seis mil por mês, salário de gerente de negócio pequeno.
– Puta que pariu! Mais seis mil
por mês, cada mês?!
– Claro, com todos os direitos e
encargos trabalhistas. A propósito, você tem carteira de trabalho? Na Teles,
ninguém trabalha sem registro.
– Não tenho, nunca tive, sempre
trabalhei por conta...
– Não tem problema, a gente tira
uma para você. E depois da rescisão, você faz o que quiser com ela.
– Jogo essa merda na lata do
lixo, nunca vou ser empregado nesta vida.
– Taí uma posição que eu respeito.
É só você tratar de aprender a projetar e administrar um negócio próprio mais
bem do que este aqui e você está pronto para ser empreendedor. Empregador e não
empregado. E agora vamos pra nossa série.
Após o trabalho puxado, Celso
tomou seu banho e saiu levando os papéis do contador de Nelson. Mas não dirigiu
para a firma. Foi direto para beira do rio e procurou informar-se onde ficava o
campinho dos times de várzea. Encontrou com facilidade, entrou com o Toyota
nele e conferiu o tremendo declive que ele tinha. Pô, coitados dos caras, como é que vão conseguir formar um time bom
jogando nesta joça de campo?
Eram só sete horas. Abriu o
porta-malas e tirou dele um par de chuteiras e uma bola bem inflada. Soltou–a
no chão e observou-a correr em direção ao rio, lentamente primeiro, depois
acelerando adoidada. E decidiu:
Vou mandar terraplenar esta merda! Tenho que pensar também no resto da
molecada, nos que não têm times organizados. Foi da várzea que eu vim, foi em
campinhos assim ou piores, de areião ou barro brabo, que eu passei a maior
parte da minha infância. É à várzea que eu devo o que conquistei na vida, foi o
meu começo, eu não teria sido nada sem ela. Amanhã mesmo ligo para o Paulo César,
da imobiliária, e vejo quem é dono deste terreno. Talvez seja até da
Prefeitura. Além da área de reserva legal, das margens, tenho que ver de
quantos metros é neste lugar.
Então buscou a bola que corria e começou a se divertir com
ela: embaixadas, passes, cabeceios, corridas atrás de lançamentos que ele mesmo
fazia... Que delícia! De repente se sentia com 12 anos, tanta coisa deliciosa
lhe voltava à memória. Ás oito horas buscou o celular no carro e ligou para
Fúlvio:
CONTINUA
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