terça-feira, 17 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 9     
MILTON MACIEL  

9 -  FUTEBOL DE VÁRZEA! 
Fim do cap. 8:  “ – Bom, quem vai gostar disso vai ser o Leon, o homem do agarramento lá na churrascaria. Outra vez o italiano percebeu que o chefe estremeceu levemente. Bingo: ah, falei Leon, ele ouviu Larissa! Mas o chefe pareceu vivamente interessado:
– Por que o Leon? Ele tem algo a ver com futebol? Gosta de jogar?”

– Ele tem um time, doutor. Gosta tanto que montou um time ele mesmo. É o dono da bola, das camisetas, o técnico, o atacante, o jogador principal.

– Não me diga! Que interessante...

– Ué, interessante por que?

– Não, não, continue falando disso, continue...

– Bem ele tem um time que se chama Delfim Futebol Clube e que, basicamente, é formado de jogadores que são sócios do Clube Imigrantes, o clube de elite da cidade.

– O clube dos riquinhos, então?

– É, mais ou menos isso.

– E eles jogam bem? Jogam com outros times da cidade aqui...

– Aí é que está, eles não jogam mais com times daqui, que são todos de várzea. Jogaram no início. Mas depois não quiseram mais. Uma, porque eles ganhavam sempre, não tinham adversário à altura. E outra, que eles se acham elite mesmo. Nunca tiveram ninguém no time que não fosse branco.

– Opa, racismo! Caramba, isso me deixa furioso! Ah, se eu tivesse um time pra tocar pra cima desse moleques filhinhos de papai!

– É, aqui não tem nada de outro time. Quer dizer, tem uns grupinhos de futebol de várzea, tem o Nacional e tem o Bandeirantes, que são os mais bem organizadinhos, têm até jogo de camiseta.

– E esses times jogam sempre aqui? E jogam onde?

– Ah, eles são todos muito pobres, jogam toda semana lá na baixada, que é um pedaço de campo meio em declive, na beira do rio. É pessoal trabalhador, não têm tempo de treinar, forma física, nada disso. Fazem uns rachões de solteiros contra casados, de vez em quando juntam todo mundo e sai o jogão entre Nacional e Bandeirantes.

– E como é que eles são com a bola? Um é melhor do que o outro?

– Bem, doutor, eles são fraquinhos, até porque só jogam para se divertir, jogam por cerveja, quem perde paga. Mas atualmente o Nacional está bem melhor que o Bandeirantes. O Nacional é o time dos pretinhos, os caras do time do Leon os chamam de alvinegrada, porque o uniforme deles é preto e branco, alvinegro, mas é claro que é por maldade.

– Um time só de pretinhos?
– Não, tem de tudo, preto, mulato, alemão, todos muito amigos. Mas é tudo gente humilde.

Celso Teles deu um enorme tapa na mesa, que estremeceu e virou a garrafa de cerveja. Ergueu-se afogueado, era só fogo e entusiasmo:

– Pois eu quero conhecer essa moçada! E já, Seu Fúlvio Rondelli!

– Já? Agora? A esta hora da noite? Ora, não tem como reunir os caras hoje...

– Já é já, homem! Todo grupo tem um líder. Quem é que dá as cartas no Nacional? Sabe onde ele está a estas horas?

– Bom, é o Bentinho. E, a estas horas, pode contar que ele já está no bar do Bicalho. É que ele faz bico à noite lá, como garçom. De dia é torneiro mecânico.

Celso jogou uma nota de cinquenta em cima da mesa e sinalizou para o Aragonez, que estava por perto, falando bem alto para que os outros garçons também pudessem ouvir:

– Ó aí, põe o troco todo na caixinha dos funcionários, tá!

E arrancou Fúlvio Rondelli da cadeira pelo braço, com uma pressa danada.

– Vem no meu carro, italiano, você dirige muito devagar. Vamos tratar de chegar logo no Bicalho. Você vai ter que tomar cerveja choca de novo.

Em quatro minutos Celso estava saltando do Corolla e entrando esbaforido no Bar do Bicalho. E perguntando:

– Cadê o Bentinho?

Apontaram para o mulatinho jovem, encostado em pé a uma das mesas vazias, do lado esquerdo. Celso sentou exatamente ali e pediu ao rapaz:

– Cerveja boa. E bem gelada, por favor.

Só aí Fúlvio Rondelli chegou e sentou também. Enquanto Bentinho ia providenciar a bebida e os copos, ele falou:

– Caramba, doutor, o senhor não perde tempo. Mas por que toda essa pressa?

– Ah, Rondelli, eu sou assim, você vai me conhecer melhor. Quando eu tenho uma ideia, eu fico como que tomado por ela e não sossego enquanto não consigo colocar em prática.

– Então, agora, o senhor tem uma ideia para o Bentinho. E para o Nacional, imagino.

– Na mosca, italianinho! Para o Nacional e para o Bandeirantes também.

Catzo! Mas que coisa pode ser isso?

– Seguinte, vai lá e explica pro Bicalho que eu vou precisar do Bentinho por uma hora. Emergência. E que eu acerto os custos na volta, com o Bicalho.

Rondelli foi, explicou e voltou com o próprio Bicalho, que disse para Bentinho:

– Você vai ficar à disposição destes dois senhores enquanto ele precisarem. Não serve mais ninguém.

– E sai com a gente um pouquinho, também. A gente traz você de volta, é claro.

Dizendo isso, Celso foi empurrando Bentinho para fora e levando-o para o Corolla, junto com Rondelli. Após entrarem, explicou a um mais que assustado Bentinho o que iam fazer:

– Não se assuste, rapaz, não é sequestro com a cumplicidade do seu patrão. A gente só quer lhe mostrar uma coisa, uma coisa que está bem pertinho daqui.

– Você sabe quem é ele, Bentinho?

– É Seu Celso, da firma de automóveis nova, lá onde era a concessionária GM dos Andrade.

– Isso mesmo, rapaz. É Seu Celso Teles, meu patrão. E olhe bem, seja o que for que este maluco do meu chefe esteja pensando fazer, que nem eu mesmo sei bem o que é, pode ter certeza de uma coisa: vai ser muito bom para você.

– E para o Nacional, completou o próprio Celso.

Nesse instante já chegaram ao terreno da rua Tuiuti, que de fato era muito perto do Bar do Bicalho. Rondelli ficou admiradíssimo de ver que, às oito da noite, os homens ainda estavam trabalhando, sob um banho feérico de holofotes acesos.

– Benza Deus, doutor! O pessoal trabalhando até estas horas!

– Vão até às dez, Rondelli. Trabalham das sete da manhã às dez da noite. Tiramos licença na Prefeitura. Afinal, o Nicanor é um cara tão agoniado quanto eu.

Um prédio térreo, que devia ter uns quatrocentos metros quadrados, pela estimativa experiente de Fúlvio Rondelli, já estava praticamente pronto. Já coberto, o pessoal trabalhava intensamente dentro dele, na fase final de acabamento. Todas as janelas já tinham vidros, todas as portas internas já estavam no lugar, um exército de azulejistas trabalhava nas paredes dos banheiros e nos pisos de cerâmica de toda a construção.

Celso não se demorou ali, no entanto, explicando:

– Aqui vai ser a academia inicialmente. E outras coisas mais. Mas não foi por causa disso que eu trouxe vocês aqui. O que eu quero que vejam está lá mais adiante, na parte escura do terreno. Vamos lá.

Ao passarem por dois enormes buracos, ainda ladeados de montes altos de terra, explicou:

– Aqui vão ser as duas piscinas. Logo, logo, ficam prontas também. Mas o que eu quero mostrar é a minha menina dos olhos, a coisa mais importante para mim: Vejam só, não está tão escuro que não possam distinguir. O que lhes parece isso?

– Uma terraplenagem? – arriscou Bentinho – Poxa, que coisa mais lisinha, dava até pra jogar bola aqui. A gente tem que jogar num campinho meio inclinado, onde a bola corre sempre pra um lado, lá na beira do rio.
– São os... os campos de futebol, doutor? – arriscou Rondelli, que já estava informado a respeito deles.

– Isso mesmo, Rondelli. Meus tesouros, minhas joias!

– Poxa, campos de futebol, Seu Celso?! Aqui, em plena Amarante? E, ainda por cima, DOIS ao mesmo tempo?

– Isso mesmo, menino. Dois. E ficam prontos antes do fim do mês.

– O que, doutor?! Mas como?

– Estamos esperando toda a grama para amanhã, se quer saber, italiano. É a única coisa que vem da minha cidade natal, de Indaiatuba. Um tapete verde perfeito, que é só instalar placa por placa. Depois passamos aquele enorme rolo ali, compactamos, molhamos muito todos os dias e esperamos pegar bem. Aí é só pintar, colocar as traves e já podemos inaugurar.

– Poxa, inaugurar ainda este mês? E quem vai jogar?

– Ora, que pergunta, seu Bentinho, quem vai jogar! Francamente! Ora, os nossos melhores times de futebol: O Nacional contra o Bandeirantes.

Bentinho quase tem uma síncope. Não era uma notícia, era uma paulada na cabeça, a mais deliciosa paulada que poderia receber na vida!

–Nós, Doutor Celso? Nós, uns timinhos de várzea de nada? Não vão ser times profissionais de fora daqui. Ou o time dos riquinhos, o do Seu Leon?

– Não mesmo, meu camarada. Vão ser os dois times que merecem mais respeito, os times do povo de Amarante. Vamos marcar já o dia do jogo: dia 31, domingo. Agora você já sabe, pode levar a notícia para os seus camaradas, vão se preparar para o grande dia. Vamos lá, que eu vou deixar você de volta no Bicalho.

– Eu não vou conseguir trabalhar! Ah, não vou! Hoje o movimento é fraco, vou pedir dispensa pro Bicalho. Não vou me aguentar, vou pegar minha moto e vou de casa em casa, de emprego em emprego noturno, vou falar com toda a turma.

E você poderia avisar o pessoal do Bandeirantes também, nesse caso? Não são inimigos?

– Ora, que ideia, a gente é tudo amigo, seu Celso! Meu compadre Dieter é o chefe do Bandeirantes. É o primeiro que eu pensei em avisar.  Primeiro ele vai me xingar de mentiroso e ficar muito brabo comigo. Aí eu boto ele no lombo da moto, trago aqui e ele se derrete. Ele vai cair na choradeira, eu garanto. O alemão se derrete por qualquer coisinha, imagine vendo este preparo para um – não, para dois – campos de futebol. Capaz de o homem ter um treco, porque eu mesmo quase tive.

Três minutinhos depois, Celso desceu no bar do Bicalho, procurou o dono e estendeu-lhe uma nota de cinquenta reais, para compensar o prejuízo com a saída de Bentinho. Mas quando este contou, todo esbaforido, já pedindo licença para ir embora, o que tinha acontecido, Bicalho devolveu a nota para Celso:

– Não senhor, o senhor não precisa pagar nada. Um homem que faz o que o senhor está fazendo por Amarante, não tem que pagar nada. E tem mais: dia 31, domingo, o Bar do Bicalho não abre, vamos todos para o campo ver o jogo. Deus lhe pague, Doutor Celso, por que esta cidade nunca vai poder pagar tal benefício.

E, num gesto inesperado, adiantou-se e abraçou longamente o paulista, batendo-lhe energicamente nas costas:

– Deus lhe pague.

Estava aí! Celso retribui o abraço com a mesma intensidade, pensando: Caramba esse cara me pegou. Vou virar cliente cativo, vou me acostumar com cerveja ruim, ele merece, Ou então dou um jeito nisto tudo aqui, quem sabe. Que sujeito batuta, me ganhou pra sempre hoje.

No dia seguinte, como fazia sempre, Celso correu seus doze quilômetros e entrou pontualmente na academia do Nelson às 6 da manhã. Ele era o único cliente. Passando pelo professor, passou-lhe também a mão na bunda e cumprimentou:

– Bom dia, como vai a minha Demi Moore? Já foi procurar o contador?

– Ô cara, se fui, enchi o saco do sujeitinho, fiz ele trabalhar de noite até quase meia-noite, aqui comigo, prometi uma nota preta. Acho que está tudo aqui, ó.

– Legal, depois do banho eu pego e levo. Apareça lá de tarde, para pegar o seu cheque executivo, deve estar tudo certo, o meu contador, que já está aqui em Amarante, vai arredondar tudo e redigir o documento de compra e venda. Aí você assina e vai depositar a sua grana.

– Mas já hoje?! Cacete, isso pode ser tão rápido assim?

– Claro, cara. Ou a gente quer ou não quer. Se quer, tem que ser na hora, perder tempo com mais burocracia é estupidez.

– Caramba. Celso. Ontem eu estava na merda, amanhã posso estar com uma conta bancária gorda como nunca tive na vida. Aí quito e vendo o carro e vou ficar com uns cento e quinze livres, disponíveis pra viver em Miami na boa, por um ano. No seu apartamento, ainda por cima...

– Mais, não é? Se você for frugal assim como diz, ainda vai levar a maior parte do seu salário junto.

– Meu salário? Que salário?

– Ora, cara, você não vai trabalhar dois meses para mim? Não vai ser meu funcionário?

– Sim, vou trabalhar os dois meses, com toda certeza. Mas eu pensei que esse trabalho já estava incluído nos cem mil.

– Que é isso, camarada, tá me estranhando? Desde quando eu sou de explorar o trabalho dos outros? Você vai ganhar seis mil por mês, salário de gerente de negócio pequeno.

– Puta que pariu! Mais seis mil por mês, cada mês?!

– Claro, com todos os direitos e encargos trabalhistas. A propósito, você tem carteira de trabalho? Na Teles, ninguém trabalha sem registro.

– Não tenho, nunca tive, sempre trabalhei por conta...
– Não tem problema, a gente tira uma para você. E depois da rescisão, você faz o que quiser com ela.

– Jogo essa merda na lata do lixo, nunca vou ser empregado nesta vida.

– Taí uma posição que eu respeito. É só você tratar de aprender a projetar e administrar um negócio próprio mais bem do que este aqui e você está pronto para ser empreendedor. Empregador e não empregado. E agora vamos pra nossa série.

Após o trabalho puxado, Celso tomou seu banho e saiu levando os papéis do contador de Nelson. Mas não dirigiu para a firma. Foi direto para beira do rio e procurou informar-se onde ficava o campinho dos times de várzea. Encontrou com facilidade, entrou com o Toyota nele e conferiu o tremendo declive que ele tinha. Pô, coitados dos caras, como é que vão conseguir formar um time bom jogando nesta joça de campo?

Eram só sete horas. Abriu o porta-malas e tirou dele um par de chuteiras e uma bola bem inflada. Soltou–a no chão e observou-a correr em direção ao rio, lentamente primeiro, depois acelerando adoidada. E decidiu:

Vou mandar terraplenar esta merda! Tenho que pensar também no resto da molecada, nos que não têm times organizados. Foi da várzea que eu vim, foi em campinhos assim ou piores, de areião ou barro brabo, que eu passei a maior parte da minha infância. É à várzea que eu devo o que conquistei na vida, foi o meu começo, eu não teria sido nada sem ela. Amanhã mesmo ligo para o Paulo César, da imobiliária, e vejo quem é dono deste terreno. Talvez seja até da Prefeitura. Além da área de reserva legal, das margens, tenho que ver de quantos metros é neste lugar.

Então buscou a bola que corria e começou a se divertir com ela: embaixadas, passes, cabeceios, corridas atrás de lançamentos que ele mesmo fazia... Que delícia! De repente se sentia com 12 anos, tanta coisa deliciosa lhe voltava à memória. Ás oito horas buscou o celular no carro e ligou para Fúlvio:


CONTINUA

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