MILTON MACIEL
11 -
Os ASSAD
Fim
do cap. 10: “ E aí, inevitável, o gesto que ela sempre
repetia: apertou-lhe as duas mãos rapidamente entre as suas e sussurrou: – Deus
lhe pague!
E mais uma vez, saiu correndo, naquela
sua corrida leve, serena, pouco mais que um caminhar rápido, um oscilar
harmônico de ancas e cabelos loiros. Uma gazela em fuga! Um deleite.”
11 – Os ASSAD
As duas espanholitas
escolheram ficar num apart-hotel, coisa que não esperavam encontrar em uma
cidade pequena como Amarante. Era um prédio flamante de novo, inaugurado há
pouquíssimo tempo, iniciativa quase tão visionária quanto a da academia de
Nelson. Mas visão e coragem não faltavam a Sônia Assad, a turca, uma viúva que voltara para Amarante com algumas posses,
após o falecimento do marido Fuad, no interior de São Paulo. Na verdade, a turca
devia ser chamada de alemoa, porque
era filha da família Schmidt, que tivera um entreposto de atendimento a
tropeiros em meados do século vinte, na subida da Serra, mas que viera depois
radicar-se em Amarante para que as crianças não ficassem sem estudos.
Com uma precocidade
insuspeitável e inesperada, tanto na mente como no corpo apetitoso de 15 anos,
Sonia Schmidt perdeu-se pelos campos de macega com um mascate libanês que
aparecia de tempos em tempos na cidade. Certa de que os pais jamais permitiriam
sua relação com um imigrante árabe sem eira nem beira, no começo de sua longa caminhada
pelos chãos sem fim deste Brasil, ela, apaixonadíssima e fogosa, na iminência
de ficar mais uma vez sem a delícia que era aquele homem dentro dela, sabe-se
lá por quanto tempo – e com medo que outra alemãzinha descobrisse isso por sua
vez – não teve dúvida. Propôs-lhe que fugissem juntos.
O árabe ficou apavorado.
Ele tinha mais de 30 anos, a menina apenas quinze. Era chave de cadeia, nesse
país. Mas também ele estava apaixonado por sua coloninha roliça e sensual,
nunca uma mulher lhe exigira tanto na cama e lhe dera tanto em troca. Também
ele não poderia ficar mais sem sua pombinha branca, como a chamava. Então
resolveu correr todos os riscos e os dois fugiram juntos para São Paulo.
Debalde os Schmidt, ao
tomarem conhecimento do acontecido, bradaram aos céus e terras, fizeram
denúncia de rapto à polícia, compraram armas para fazer justiça com as próprias
mãos. Em vão viajaram seus vários irmãos, um de cada vez, para o Sul e para o
Norte, seguindo falsas pistas ou enganosas intuições. Nunca encontraram aquele
árabe alto em quem pudessem descarregar o fogo de sua ira e o fogo de suas
armas, para lavar a honra da família.
Enxovalhada como estava, enxovalhada ficou a honra,
com ela manchada morreram os velhos, sempre maldizendo o mascate e a filha
ingrata. Os anos passando, a fogueira dos ódios foi se consumindo, a geração
mais nova reconheceu-se por fim incapaz de armazenar um totalmente demodado e
inútil ressentimento.
Assim, quando quase
trinta anos depois, aquela senhora roliça e sorridente fez descer do seu
flamante Hyundai Azera um rapaz alto
e loiro, de olhos castanhos e porte atlético, mais uma garota morena, com olhos
verdes e carinha de cigana, Amarante teve o acontecimento do ano: Era Sonia
Schmidt que voltava! Aliás, senhora Sonia Assad, respeitável e próspera viúva
do comerciante brasileiro Fuad Assad, nascido em Beirute, falecido recentemente
em Águas de Lindoia, São Paulo, onde curtia os primeiros anos de uma justa
aposentadoria. Injusta, no entanto, fora a morte, que viera buscá-lo,
intolerante, recusando-lhe o direito ao repouso merecido, após uma longa
jornada que conhecera somente incessante trabalho e mais trabalho.
Mas, ao menos, tanto
trabalho legou à família uma situação econômica invejável. Sonia, imbuída da
mesma ideia de seguir em repouso, resolveu que era hora de voltar para sua
cidade natal. Pagou um detetive para que fosse a Amarante e levantasse a
situação total de seus irmãos e parentes, uma vez que sabia os pais já de há
muito falecidos.
Com as informações
sólidas obtidas, convertidas suas posses imobiliárias em ações, debêntures,
dólares e ouro, ganhou Amarante de surpresa, trazendo atrás de si uma van de
transportadora, estufada de presentes para todos os parentes, um a um, irmãos,
cunhadas, sobrinhos e até sobrinhos-netos, filhos do irmão mais velho, que já
era avô a essa altura.
Não podia haver maior
concessão garantida de indulto, se a putinha pecadora voltava agora respeitável
e rica senhora e, ainda melhor, livre do miserável raptor que desgraçara a
honra da família no século vinte. Nas benesses dos presentes, aceitos de muito
bom grado, locupletaram-se os antigos ofendidos com os bens gerados pelo
trabalho “daquele árabe imundo”. Mas
tiveram que aceitar, contrariados, que Sonia Schmidt fosse agora Sonia Assad,
nome que orgulhosamente assinava e com o qual estampou a manchete do jornal
local no dia seguinte à sua chegada.
Era o nome que,
orgulhosamente também, aparecia agora, dois anos depois, no topo do edifício de
oito andares, o segundo mais alto da cidade, no imenso letreiro de acrílico e
neon: Beirute Assad Apart-hotéis
O edifício tinha 28
apartamentos, quatro por andar, do primeiro ao sétimo. No oitavo ficava a enorme
cobertura, o novo lar da família Assad. No térreo, a recepção, os escritórios,
restaurante, cozinha, lavanderia, a piscina e as garagens.
Até o momento a ocupação
média dos apartamentos andava pela casa das doze unidades, evidentemente
incapaz de dar lucro a um empreendimento de tal monta. Mas essa conclusão vinha
por terra quando os amarantenses ficavam sabendo, estarrecidos, que o grosso da
força de trabalho era exercido por Sonia e seus dois filhos, Fuad e Samira.
Alternavam-se os três em todas as funções: era atendentes, manobristas,
cozinheiros, garçons e garçonetes, arrumadeiras, faxineiros.
Ante a surpresa das
espanholitas, que escolhiam seu apartamento, uma sorridente Sonia Assad
explicou:
– Não fiz este negócio
para mim, fiz para os meus filhos. Não fiz pensando no agora, mas no futuro,
quando esta cidade, crescendo como qualquer outra, vai ter hóspedes para lotar nossa
casa sempre. Como meus meninos não querem saber de fazer faculdade – no que
estão certos, porque nem meu Fuad, nem eu fizemos – e não estão sendo criados
para serem empregados dos outros, eu os botei no serviço direto, das seis da
manhã às dez da noite, um de nós ficando sempre responsável pela madrugada,
acordado, também nisso nos revezamos. E aí eu dou o exemplo: tudo o que eu
exijo deles, eu faço exatamente igual. Eu fui uma menina pobre, colona da roça.
Depois peguei duro com meu Fuad, só Deus sabe o que nós passamos. Mas
conseguimos construir família e patrimônio. Nem por isso eu virei dondoca, nem
quero criar filha dondoca ou filho playboy.
– Puxa, Dona Sonia, que
exemplo maravilhoso de força e de caráter que esta sua família dá para nós,
para todo mundo desta cidade. Admirável.
– E olhe, mãe, a limpeza
e a ordem deste lugar. Tudo brilha de tão limpo. E tanto Dona Sonia como a moça
e o rapaz são de uma gentileza impressionantes. Estão sempre sorrindo pra
gente.
– Ah, mocinha, isso tudo
é treinamento. Eles e eu fizemos
todos os cursos de hotelaria e culinária que havia no SESC, no SENAC e em
escolas particulares. Enquanto os pedreiros estavam erguendo o prédio aqui em
Amarante, a gente estava se matando de estudar lá em Florianópolis, passávamos
cinco dias da semana por lá. E como valeu a pena!
– Pois eu sei de um homem
que vai adorar conhecer vocês: nosso patrão, o dono da revenda nova de
automóveis – falou Carmen.
– Ah, o Seu Celso, eu
sei, já ouvi falar muito dele, e já o vi assim, ocasionalmente. Mas por quê?
– Porque ele adora gente
assim como vocês, que trabalham de verdade e parece que estão sempre de bem com
a vida – respondeu Gládis.
As espanholitas chegaram
entusiasmadas na Revenda, ainda de manhã, pouco depois das dez horas. Foram
direto ao jefe:
– Já encontramos, jefito! O primeiro lugar a que o Paulo
Cesar nos levou. Não precisa procurar mais nada, aquilo lá é perfeito. Um apart-hotel
em plena Amarante, imagine só – o entusiasmo de Gládis era contagiante.
– Hum, já ouvi falar. Sei
até onde fica, mas...
– E não vai sair assim
tão caro, Celso. Melhor do que eu esperava. Ainda mais para a qualidade das instalações
e, principalmente, para a qualidade das pessoas que tocam o negócio. Você
precisa ver, jefe, precisa conhecer
essa família!
– Opa, se até você está
assim tão entusiasmada, Carmen, a coisa deve ser boa mesmo. Porque a Gládis, a
gente sabe, pega fogo por qualquer coisinha...
– Ai, jefito, não é tanto assim. Mas você precisa ir lá e ver a Dona Sonia
e os filhos dela, um casal, em ação. São gente da minha idade os dois. E a mãe
deles regula com a minha, é super moça ainda.
Carmen sorriu satisfeita.
Essa sua menina fofa!
Depois de alguns minutos
conversando com as animadas espanholitas, cujo entusiasmo foi reforçado pela
opinião de Paulo César, o corretor, Celso concluiu:
– Pois então, magnífico.
Vocês ficam com um apartamento para as duas, como escolheram. Ou podem ficar cada
uma com um, vocês é que sabem.
– Que é isso, jefito? Para nós um único apartamento
está mais do que bom. Eles têm dois quartos.
– Além do que, para
alguém poder arrancar esta minha menina de junto de mim, vai ter que ser um
macho muito bom de cama.
– Mamita! O que o Celso não vai pensar?
– Hum, nada que ele já
não saiba...
Gládis riu satisfeita.
Essa sua mamita! Estava certa,
conhecia muito bem o vulcão que ardia sempre dentro de sua menina. E o Celso
também... Afinal, também ele tinha se queimado naquela labareda uma vez.
Foi ele quem falou:
– Bom, bom, então vocês ficam com um. E a Paula
com outro, a Jennifer com outro, assim que as duas chegarem, E o Lucas, o
contador, que insiste em dormir naquele sofá da firma, porque diz que tem
montanhas de trabalho noturno a fazer por enquanto, pode ficar com outro. São
mais três, portanto. Então ocupamos de cara quatro apartamentos.
– Um acréscimo de mais de
30% no faturamento dos nossos amigos Assad. Vão adorar o jefito! – E Gládis, definido esse assunto, perguntou:
– Cadê a fofinha?
Celso abriu o sorriso
beatifico, que traia o que sentia ao pensar em certo alguém:
– A Larissa? – quem mais poderia ser a fofinha, Celso Teles,
ora bolas! – Está lá na oficina, ajudando o padrinho dela, é claro.
– Vou lá – e Gládis saiu
no seu passo rápido, rumo às oficinas.
Carmen pensou, divertida:
As duas juntas na oficina! Coitados dos caras, é hoje que remontam os carros
todos errados...
Aquela sua filha era, de
fato, um pedaço de mau caminho. Corpo de violão, não tinha a beleza diáfana,
angelical de Larissa. Não, nela tudo chamava ao pecado, era uma fêmea completa,
o sex appeal na sua máxima expressão.
Plenamente consciente disso, adorava provocar os homens e deixá-los em cima dos
cascos. Enlouquecê-los. E aí, coitados dos sujeitos, ela tinha um domínio total
sobre eles, em todas as situações. Quando tinha dezessete anos, um maluco até o
suicídio tinha tentado por causa dela. Mas, por outro lado, era uma alma de uma
generosidade insuperável, uma espécie de Celso Teles de bunda empinada. E, não
bastasse isso, tinha também aquela sensibilidade, aquela paranormalidade
legítima, um grau de intuição tão exacerbado que funcionava, espontaneamente,
como se fosse uma autêntica vidência. Deus lhe dera só uma filha, mas
caprichara um bocado na receita!
Celso levou Paulo César
para uma conversa no escritório e foi logo tocando no assunto da propriedade do
terreno da várzea. O corretor falou então:
– Pois sabe, Celso, nem
eu, que lido com imóveis aqui há mais de vinte anos, tenho certeza disso. Mas
pode deixar que eu vou começar hoje mesmo uma investigação a fundo. Está a fim
de comprar aquilo é? Vai expandir praqueles lados?
– Não, Paulo, só compro
se for área privada, mas para preservá-la. Mas se for área pública, então a
gente tenta conseguir um comodato, como já fiz em outras cidades. E não, não
vou construir nada lá. Só quero é terraplenar, deixar totalmente nivelado,
fazer proteção contra a subida do rio e depois gramar decentemente. Quero
deixar aquela área perfeita para a molecada e os times de várzea jogarem à
vontade.
– Olha só, que estranho...
Mas isso vai custar uma bela duma grana, homem. Não tem como lhe dar retorno.
– Paulo, o retorno não é medido
só em dinheiro. Vai me dar um grande retorno sim, vai me ajudar a pagar uma
grande dívida de infância que eu tenho. Outra hora eu explico melhor pra você.
Mas agora pode ir, comece sua investigação já, não temos tempo a perder.
– Tá certo, vamos lá.
Pode deixar comigo. Ligo assim que tiver novidades. Bom dia.
– Bom dia, Paulo. E muito
obrigado pelo apoio às minhas meninas. Pode mandar a conta do serviço pro Lucas,
por favor.
Paulo César saiu feliz da
vida. Sujeito batuta, aquele paulista! Dinheirinho mais fácil de ganhar,
impossível. Só duas horas de trabalho! Nunca imaginou que as gostosas fossem se
interessar assim, de cara, pelo apart-hotel de Sonia Assad. Na verdade, tinha
levado as duas lá primeiro, apenas para ter pretexto de ver por um bom tempo
aquela tesãozinha da filha da Sônia, a ciganinha que o deixava todo ouriçado, que
dava corda nele. E a sacana sabia que ele era casado... Ah, mas ele ia cevar
com calma aquela novilhazinha, com muita calma, muita calma para não espantar,
até o dia de poder degustar o prato principal.
No carro, imaginando o
prato principal surgindo radioso, pretinho, do meio das coxas da menina, teve
uma ereção tão violenta que foi obrigado a ficar fazendo um tempo dentro do
veículo, até poder descer sem dar vexame. Ah, Samira, Samira!...
Entrou no seu escritório,
mas não se aguentou. Foi para o banheiro e mandou sua mão direita dar o alívio
imediato que os bagos exigiam. Samira! Ai, Samira! Ai, Samira!... Samiraaaaah!...
Depois caprichou no uso
do sabonete líquido por tudo, na mão esquerda também – Senão hoje ela engravida – pensou divertido.
E, sentindo um alívio, uma
paz beatífica, sentou-se na poltrona executiva e ligou para casa:
– Alô, meu bem. Tudo
certo aí com vocês? Precisa de algo do supermercado? Não? Então tá, até o
almoço. Beijinho, te amo, fofa.
CONTINUA
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