quinta-feira, 19 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 11    
MILTON MACIEL  

11 -  Os ASSAD
Fim do cap. 10:  “ E aí, inevitável, o gesto que ela sempre repetia: apertou-lhe as duas mãos rapidamente entre as suas e sussurrou: – Deus lhe pague!
E mais uma vez, saiu correndo, naquela sua corrida leve, serena, pouco mais que um caminhar rápido, um oscilar harmônico de ancas e cabelos loiros. Uma gazela em fuga! Um deleite.”

11 – Os ASSAD
As duas espanholitas escolheram ficar num apart-hotel, coisa que não esperavam encontrar em uma cidade pequena como Amarante. Era um prédio flamante de novo, inaugurado há pouquíssimo tempo, iniciativa quase tão visionária quanto a da academia de Nelson. Mas visão e coragem não faltavam a Sônia Assad, a turca, uma viúva que voltara para Amarante com algumas posses, após o falecimento do marido Fuad, no interior de São Paulo. Na verdade, a turca devia ser chamada de alemoa, porque era filha da família Schmidt, que tivera um entreposto de atendimento a tropeiros em meados do século vinte, na subida da Serra, mas que viera depois radicar-se em Amarante para que as crianças não ficassem sem estudos.

Com uma precocidade insuspeitável e inesperada, tanto na mente como no corpo apetitoso de 15 anos, Sonia Schmidt perdeu-se pelos campos de macega com um mascate libanês que aparecia de tempos em tempos na cidade. Certa de que os pais jamais permitiriam sua relação com um imigrante árabe sem eira nem beira, no começo de sua longa caminhada pelos chãos sem fim deste Brasil, ela, apaixonadíssima e fogosa, na iminência de ficar mais uma vez sem a delícia que era aquele homem dentro dela, sabe-se lá por quanto tempo – e com medo que outra alemãzinha descobrisse isso por sua vez – não teve dúvida. Propôs-lhe que fugissem juntos.

O árabe ficou apavorado. Ele tinha mais de 30 anos, a menina apenas quinze. Era chave de cadeia, nesse país. Mas também ele estava apaixonado por sua coloninha roliça e sensual, nunca uma mulher lhe exigira tanto na cama e lhe dera tanto em troca. Também ele não poderia ficar mais sem sua pombinha branca, como a chamava. Então resolveu correr todos os riscos e os dois fugiram juntos para São Paulo.

Debalde os Schmidt, ao tomarem conhecimento do acontecido, bradaram aos céus e terras, fizeram denúncia de rapto à polícia, compraram armas para fazer justiça com as próprias mãos. Em vão viajaram seus vários irmãos, um de cada vez, para o Sul e para o Norte, seguindo falsas pistas ou enganosas intuições. Nunca encontraram aquele árabe alto em quem pudessem descarregar o fogo de sua ira e o fogo de suas armas, para lavar a honra da família.

 Enxovalhada como estava, enxovalhada ficou a honra, com ela manchada morreram os velhos, sempre maldizendo o mascate e a filha ingrata. Os anos passando, a fogueira dos ódios foi se consumindo, a geração mais nova reconheceu-se por fim incapaz de armazenar um totalmente demodado e inútil ressentimento.

Assim, quando quase trinta anos depois, aquela senhora roliça e sorridente fez descer do seu flamante Hyundai Azera um rapaz alto e loiro, de olhos castanhos e porte atlético, mais uma garota morena, com olhos verdes e carinha de cigana, Amarante teve o acontecimento do ano: Era Sonia Schmidt que voltava! Aliás, senhora Sonia Assad, respeitável e próspera viúva do comerciante brasileiro Fuad Assad, nascido em Beirute, falecido recentemente em Águas de Lindoia, São Paulo, onde curtia os primeiros anos de uma justa aposentadoria. Injusta, no entanto, fora a morte, que viera buscá-lo, intolerante, recusando-lhe o direito ao repouso merecido, após uma longa jornada que conhecera somente incessante trabalho e mais trabalho.

Mas, ao menos, tanto trabalho legou à família uma situação econômica invejável. Sonia, imbuída da mesma ideia de seguir em repouso, resolveu que era hora de voltar para sua cidade natal. Pagou um detetive para que fosse a Amarante e levantasse a situação total de seus irmãos e parentes, uma vez que sabia os pais já de há muito falecidos.

Com as informações sólidas obtidas, convertidas suas posses imobiliárias em ações, debêntures, dólares e ouro, ganhou Amarante de surpresa, trazendo atrás de si uma van de transportadora, estufada de presentes para todos os parentes, um a um, irmãos, cunhadas, sobrinhos e até sobrinhos-netos, filhos do irmão mais velho, que já era avô a essa altura.

Não podia haver maior concessão garantida de indulto, se a putinha pecadora voltava agora respeitável e rica senhora e, ainda melhor, livre do miserável raptor que desgraçara a honra da família no século vinte. Nas benesses dos presentes, aceitos de muito bom grado, locupletaram-se os antigos ofendidos com os bens gerados pelo trabalho “daquele árabe imundo”. Mas tiveram que aceitar, contrariados, que Sonia Schmidt fosse agora Sonia Assad, nome que orgulhosamente assinava e com o qual estampou a manchete do jornal local no dia seguinte à sua chegada.

Era o nome que, orgulhosamente também, aparecia agora, dois anos depois, no topo do edifício de oito andares, o segundo mais alto da cidade, no imenso letreiro de acrílico e neon: Beirute Assad Apart-hotéis

O edifício tinha 28 apartamentos, quatro por andar, do primeiro ao sétimo. No oitavo ficava a enorme cobertura, o novo lar da família Assad. No térreo, a recepção, os escritórios, restaurante, cozinha, lavanderia, a piscina e as garagens.

Até o momento a ocupação média dos apartamentos andava pela casa das doze unidades, evidentemente incapaz de dar lucro a um empreendimento de tal monta. Mas essa conclusão vinha por terra quando os amarantenses ficavam sabendo, estarrecidos, que o grosso da força de trabalho era exercido por Sonia e seus dois filhos, Fuad e Samira. Alternavam-se os três em todas as funções: era atendentes, manobristas, cozinheiros, garçons e garçonetes, arrumadeiras, faxineiros.

Ante a surpresa das espanholitas, que escolhiam seu apartamento, uma sorridente Sonia Assad explicou:

– Não fiz este negócio para mim, fiz para os meus filhos. Não fiz pensando no agora, mas no futuro, quando esta cidade, crescendo como qualquer outra, vai ter hóspedes para lotar nossa casa sempre. Como meus meninos não querem saber de fazer faculdade – no que estão certos, porque nem meu Fuad, nem eu fizemos – e não estão sendo criados para serem empregados dos outros, eu os botei no serviço direto, das seis da manhã às dez da noite, um de nós ficando sempre responsável pela madrugada, acordado, também nisso nos revezamos. E aí eu dou o exemplo: tudo o que eu exijo deles, eu faço exatamente igual. Eu fui uma menina pobre, colona da roça. Depois peguei duro com meu Fuad, só Deus sabe o que nós passamos. Mas conseguimos construir família e patrimônio. Nem por isso eu virei dondoca, nem quero criar filha dondoca ou filho playboy.

– Puxa, Dona Sonia, que exemplo maravilhoso de força e de caráter que esta sua família dá para nós, para todo mundo desta cidade. Admirável.

– E olhe, mãe, a limpeza e a ordem deste lugar. Tudo brilha de tão limpo. E tanto Dona Sonia como a moça e o rapaz são de uma gentileza impressionantes. Estão sempre sorrindo pra gente.

– Ah, mocinha, isso tudo é treinamento. Eles e eu fizemos todos os cursos de hotelaria e culinária que havia no SESC, no SENAC e em escolas particulares. Enquanto os pedreiros estavam erguendo o prédio aqui em Amarante, a gente estava se matando de estudar lá em Florianópolis, passávamos cinco dias da semana por lá. E como valeu a pena!

– Pois eu sei de um homem que vai adorar conhecer vocês: nosso patrão, o dono da revenda nova de automóveis – falou Carmen.

– Ah, o Seu Celso, eu sei, já ouvi falar muito dele, e já o vi assim, ocasionalmente. Mas por quê?

– Porque ele adora gente assim como vocês, que trabalham de verdade e parece que estão sempre de bem com a vida – respondeu Gládis.

As espanholitas chegaram entusiasmadas na Revenda, ainda de manhã, pouco depois das dez horas. Foram direto ao jefe:

– Já encontramos, jefito! O primeiro lugar a que o Paulo Cesar nos levou. Não precisa procurar mais nada, aquilo lá é perfeito. Um apart-hotel em plena Amarante, imagine só – o entusiasmo de Gládis era contagiante.

– Hum, já ouvi falar. Sei até onde fica, mas...

– E não vai sair assim tão caro, Celso. Melhor do que eu esperava. Ainda mais para a qualidade das instalações e, principalmente, para a qualidade das pessoas que tocam o negócio. Você precisa ver, jefe, precisa conhecer essa família!

– Opa, se até você está assim tão entusiasmada, Carmen, a coisa deve ser boa mesmo. Porque a Gládis, a gente sabe, pega fogo por qualquer coisinha...

– Ai, jefito, não é tanto assim. Mas você precisa ir lá e ver a Dona Sonia e os filhos dela, um casal, em ação. São gente da minha idade os dois. E a mãe deles regula com a minha, é super moça ainda.

Carmen sorriu satisfeita. Essa sua menina fofa!

Depois de alguns minutos conversando com as animadas espanholitas, cujo entusiasmo foi reforçado pela opinião de Paulo César, o corretor, Celso concluiu:

– Pois então, magnífico. Vocês ficam com um apartamento para as duas, como escolheram. Ou podem ficar cada uma com um, vocês é que sabem.

– Que é isso, jefito? Para nós um único apartamento está mais do que bom. Eles têm dois quartos.

– Além do que, para alguém poder arrancar esta minha menina de junto de mim, vai ter que ser um macho muito bom de cama.

Mamita! O que o Celso não vai pensar?

– Hum, nada que ele já não saiba...

Gládis riu satisfeita. Essa sua mamita! Estava certa, conhecia muito bem o vulcão que ardia sempre dentro de sua menina. E o Celso também... Afinal, também ele tinha se queimado naquela labareda uma vez.

Foi ele quem falou:

–  Bom, bom, então vocês ficam com um. E a Paula com outro, a Jennifer com outro, assim que as duas chegarem, E o Lucas, o contador, que insiste em dormir naquele sofá da firma, porque diz que tem montanhas de trabalho noturno a fazer por enquanto, pode ficar com outro. São mais três, portanto. Então ocupamos de cara quatro apartamentos.

– Um acréscimo de mais de 30% no faturamento dos nossos amigos Assad. Vão adorar o jefito! – E Gládis, definido esse assunto, perguntou:

– Cadê a fofinha?

Celso abriu o sorriso beatifico, que traia o que sentia ao pensar em certo alguém:

– A Larissa? – quem mais poderia ser a fofinha, Celso Teles, ora bolas! – Está lá na oficina, ajudando o padrinho dela, é claro.

– Vou lá – e Gládis saiu no seu passo rápido, rumo às oficinas.

Carmen pensou, divertida: As duas juntas na oficina! Coitados dos caras, é hoje que remontam os carros todos errados...

Aquela sua filha era, de fato, um pedaço de mau caminho. Corpo de violão, não tinha a beleza diáfana, angelical de Larissa. Não, nela tudo chamava ao pecado, era uma fêmea completa, o sex appeal na sua máxima expressão. Plenamente consciente disso, adorava provocar os homens e deixá-los em cima dos cascos. Enlouquecê-los. E aí, coitados dos sujeitos, ela tinha um domínio total sobre eles, em todas as situações. Quando tinha dezessete anos, um maluco até o suicídio tinha tentado por causa dela. Mas, por outro lado, era uma alma de uma generosidade insuperável, uma espécie de Celso Teles de bunda empinada. E, não bastasse isso, tinha também aquela sensibilidade, aquela paranormalidade legítima, um grau de intuição tão exacerbado que funcionava, espontaneamente, como se fosse uma autêntica vidência. Deus lhe dera só uma filha, mas caprichara um bocado na receita!

Celso levou Paulo César para uma conversa no escritório e foi logo tocando no assunto da propriedade do terreno da várzea. O corretor falou então:

– Pois sabe, Celso, nem eu, que lido com imóveis aqui há mais de vinte anos, tenho certeza disso. Mas pode deixar que eu vou começar hoje mesmo uma investigação a fundo. Está a fim de comprar aquilo é? Vai expandir praqueles lados?

– Não, Paulo, só compro se for área privada, mas para preservá-la. Mas se for área pública, então a gente tenta conseguir um comodato, como já fiz em outras cidades. E não, não vou construir nada lá. Só quero é terraplenar, deixar totalmente nivelado, fazer proteção contra a subida do rio e depois gramar decentemente. Quero deixar aquela área perfeita para a molecada e os times de várzea jogarem à vontade.

– Olha só, que estranho... Mas isso vai custar uma bela duma grana, homem. Não tem como lhe dar retorno.

– Paulo, o retorno não é medido só em dinheiro. Vai me dar um grande retorno sim, vai me ajudar a pagar uma grande dívida de infância que eu tenho. Outra hora eu explico melhor pra você. Mas agora pode ir, comece sua investigação já, não temos tempo a perder.

– Tá certo, vamos lá. Pode deixar comigo. Ligo assim que tiver novidades. Bom dia.

– Bom dia, Paulo. E muito obrigado pelo apoio às minhas meninas. Pode mandar a conta do serviço pro Lucas, por favor.

Paulo César saiu feliz da vida. Sujeito batuta, aquele paulista! Dinheirinho mais fácil de ganhar, impossível. Só duas horas de trabalho! Nunca imaginou que as gostosas fossem se interessar assim, de cara, pelo apart-hotel de Sonia Assad. Na verdade, tinha levado as duas lá primeiro, apenas para ter pretexto de ver por um bom tempo aquela tesãozinha da filha da Sônia, a ciganinha que o deixava todo ouriçado, que dava corda nele. E a sacana sabia que ele era casado... Ah, mas ele ia cevar com calma aquela novilhazinha, com muita calma, muita calma para não espantar, até o dia de poder degustar o prato principal.

No carro, imaginando o prato principal surgindo radioso, pretinho, do meio das coxas da menina, teve uma ereção tão violenta que foi obrigado a ficar fazendo um tempo dentro do veículo, até poder descer sem dar vexame. Ah, Samira, Samira!...

Entrou no seu escritório, mas não se aguentou. Foi para o banheiro e mandou sua mão direita dar o alívio imediato que os bagos exigiam. Samira! Ai, Samira! Ai, Samira!... Samiraaaaah!...

Depois caprichou no uso do sabonete líquido por tudo, na mão esquerda também – Senão hoje ela engravida – pensou divertido.

E, sentindo um alívio, uma paz beatífica, sentou-se na poltrona executiva e ligou para casa:

– Alô, meu bem. Tudo certo aí com vocês? Precisa de algo do supermercado? Não? Então tá, até o almoço. Beijinho, te amo, fofa.


CONTINUA

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