5 – A TÊNUE
SOMBRA DO CIÚME
Fim do cap. 4: – Tem razão, minha filha. Bendita hora em que esse rapaz nos descobriu lá em São Paulo.
– Bendita hora, mãe. Ele parece que tem o dom de transformar a vida das pessoas para melhor. Veja o que houve com nós duas e com os avós.
– E com tantos outros lá na firma, em Ribeirão, não é?
– É. Mas olhe, mãe, ele agora conseguiu dormir. Está em paz, enfim.
– Pena que seja por tão pouco tempo, este voo é tão curto...
Dois dias e meio depois
de ter partido, avisando que iria ficar pelo menos duas semanas em Ribeirão
Preto, Celso Teles estava de volta. Só que não vinha sozinho. Com ele duas
belas morenas, muito chiques e elegantes e bastante parecidas entre si,
entraram na sede da Teles Automóveis, de Amarante, SC.
Durante esses três dias
de expediente, Larissa não tinha desgrudado do padrinho. Vinha e voltava com
ele, almoçava com ele, percorria todos os ambientes da firma. Claro, desconcentrando
totalmente os funcionários que já estavam na ativa na grande oficina mecânica e
no almoxarifado de peças.
Em casa havia contado que
precisava muito ajudar o padrinho, que acabara de assumir uma gerência na
grande Revendedora do homem de São Paulo, aquela que ia começar a funcionar na
antiga Concessionária GM dos Andrade. Havia milhares de peças a catalogar no
almoxarifado e na oficina e ela iria auxiliar o padrinho a dar conta dessa
complicação toda, de forma que ele conseguisse produzir a melhor impressão
possível no patrão. Que, por sinal, estava na cidade de Ribeirão Preto, onde
tinha uma Revenda ainda maior do que a de Amarante.
Madame Silvá não viu
problema algum, era apenas um trabalho voluntário e, ainda mais, era para
ajudar Fúlvio Rondelli, que era simplesmente uma unanimidade local, muito
apreciado também pelos pais de Larissa. Já o velho Valdemar mostrou interesse
foi na empresa e no empresário. Um expoente da velha guarda dos negócios,
costumava medir os homens pelo tamanho de suas posses e pela pujança de seus
empreendimentos. Esse tal de paulista parecia um cuiúdo, vai ver tinha até o
saco roxo. Quando o negócio começasse a funcionar, iria lá dar-lhe as boas
vindas e comprar um ou dois carros de luxo, para deixar bem claro quem era o homem
mais rico do lugar.
Com o álibi habilmente
construído e confirmado por Fúlvio, Larissa estava livre para frequentar a
revenda por quanto tempo quisesse, semanas, meses até. Bastava dizer que ainda
havia muito trabalho a fazer e deixar que os pais se acostumassem com sua
presença diária na revenda, de sol a sol. Em sua cabecinha esperta estava a
ideia de dizer que, por ter se mostrado extremamente dedicada e eficiente, o
próprio dono da empresa lhe propusera um emprego, com um respeitável salário.
É claro que aí o velho
Valdemar Silva ia montar num porco e iniciar a segunda Guerra do Contestado. E
Madame Silvá gastaria todo o seu magro estoque de palavras em francês e
galicismos decorados, tendo chilique atrás de chilique. Mas isso era coisa para
o futuro. Agora a coisa estava tranquila, céu de brigadeiro.
Porém, quando viu aquelas
duas mulheres bonitas, finas, elegantes, o céu para Larissa deixou de ser o céu
azul dos brigadeiros. Nuvens inesperadas vieram toldá-lo. Observando-os entrar na
firma, ainda sem ser vista por eles, o anjo correu a pendurar-se no braço do
padrinho e o avisou:
– ELE voltou, padrinho!
Ele voltou! Super depressa. Mas não vem sozinho. Olhe só aquelas duas tipas com
ele ali, todas arreganhadas, rindo e conversando. São íntimas dele, pelo jeito.
Será que é a ex-esposa, será que eles foram, quer dizer, será que ele foi só
pra acabar com o tal divórcio e se reconciliar com ela?
– Calma menina. Você já
está vendo coisa demais.
– Não mesmo, Garanto que
uma delas é a mulher dele. Mas qual delas será? Uma parece tão moça, a outra
tem mais a idade dele.
– Ah, vocês, mulheres! Já
sei que você não vai sossegar enquanto não souber tudo. Tá bom, então vamos lá
recebê-los, que é isso, com certeza, que você está querendo.
Larissa correu ao espelho
da coluna e ajeitou rapidamente os cabelos. Para o perspicaz Fúlvio Rondelli,
aquilo queria dizer alguma coisa, fez a leitura, não se lembrava de ver sua
tranquila menina tão agitada assim.
Os dois foram ter com os
recém-chegados, mas Larissa manteve-se primeiro atrás da larga coluna central,
esperando para ver e ouvir tudo.
– Ora, bom dia, quem é
vivo sempre aparece. Então o doutor nos diz que vai ficar duas semanas fora, só
para nos surpreender, só porque foi buscar Miss São Paulo para se exibir para
os catarinas aqui.
Sorridente, Celso Teles apresentou todo mundo:
– Ah, esse italiano
folgado é o Fúlvio de quem eu lhe falei, meninas. É o gerente da Oficina, meu
braço direito aqui dentro. Só que eu sou um cara assimétrico, tenho dois braços
direitos. E este é o meu outro braço direito, Fúlvio: esta é Carmen de Rios,
que vai ser a nossa gerente da Loja. Ela e a filha, esta que você está chamando
de Miss São Paulo, trabalham comigo há quatro anos lá em Ribeirão Preto. E agora
estão mudando para cá, vão trabalhar com a gente aqui. Cuidado com elas, são
campeãs absolutas de vendas, se você bobear um minuto, eles enrolam você e
vendem até sua mãe para você mesmo. E à vista.
Apertos de mão e
simpatias trocadas, de repente Larissa surgiu de trás da coluna, onde tinha se
postado de propósito, para melhor apreciar as forasteiras. Com que, então,
aquelas eram as mulheres de vendas, as campeãs, com uma baita experiência que
ela não tinha! Aliás, ela não tinha experiência de nada, nada, era um zero à
esquerda, uma nulidade. Uma agrônoma que não era agrônoma... Só se ela fosse
buscar um biquíni em casa e fizesse um desfile de Miss para todos ali. Só nisso
ela tinha experiência. E muita, desde criancinha. Mas, mesmo assim, ali estava
uma concorrente de respeito, com cacife para ser uma Miss São Paulo. Que é muito
mais, é lógico, do que uma mera Miss Amarante.
O padrinho não podia
fazer ideia do abalo que produziu em seu anjinho quando, de brincadeira, chamou
a morena mais jovem de Miss São Paulo. Justamente de Miss! Isso desestabilizou
Larissa completamente, de forma que ela surgiu de trás da coluna com o rostinho
um tanto avermelhado e olhando para o chão.
Celso Teles estremeceu!
ELA!
Controlou-se-
imediatamente, mas tarde demais para a antena psíquica da espanholita Gládis.
Que aproximou a boca o mais possível do rosto da mãe, dando-lhe um beijo e
aproveitando a manobra para lhe segredar, muito baixinho:
– É ESSA, mãe! E tem
mais: eu gostei dela.
Celso, boca subitamente
seca e forçando-se a falar com tranquilidade, apresentou as mulheres:
– Esta é a Larissa, nossa
trainee, que eu espero que possa
trabalhar com vocês, a Paula e a Jennifer em vendas aqui. Vou entregar o
treinamento de vendas dela a você, Carmen. Larissa, estas duas são a Carmen e a
filha dela, a Gládis, que trabalham comigo lá em Ribeirão há quatro anos. São
minhas campeãs de vendas.
Larissa estendeu a mão
para o cumprimento, o rostinho para o toque habitual do pseudobeijo feminino. Ante aquelas duas
mulheres de um centro grande e desenvolvido, duas profissionais que sabiam tudo
de venda de automóveis, a loirinha se sentiu uma completa tabaroa, uma colona
italiana rosada e robusta, com nada mais do que, como sempre, seu rosto e seu
corpo para lhe dar algum valor. Sentia-se mais insegura do que nunca, tinha vontade
de chorar.
Fez um esforço enorme
para impedir que, de fato, lágrimas lhe viessem aos olhos de água-marinha. Mais
uma coisa que não escapou da antena parabólica da jovem Gládis, que se apressou
em dizer:
– Benza Deus, que menina
mais linda! Se eu sou Miss São Paulo, então esta loirinha é Miss Universo. Olha
só os olhinhos dela, mãe, que coisa mais querida! – sabia que precisava falar
algo que animasse a menina à sua frente, que estava a ponto de ter um troço,
tão emocionada e insegura estava.
Carmen de Rios, se não
tinha a antena privilegiada da filha, sabia entender como ninguém suas
mensagens cifradas. E completou o trabalho dela:
– Que maravilha! Com essa
carinha de anjo e esse corpaço de perdição, pode deixar que me comprometo: em
dois tempos converto essa sua garota em uma vendedora de primeira linha, jefe.
Faço ela lhe arrancar rios de dinheiro de comissão.
Verdade que ela, após
receber a sutil informação de Gládis – E
tem mais: eu gostei dela – também tinha gostado da loirinha.
A tensão de Larissa
aliviou-se instantaneamente, mas isso fez com que ela se traísse: duas lágrimas
indiscretas assomaram ás janelas de água-marinha. Tentando disfarçar, ela
passou rapidamente as costas da mão direita sobre os olhos e falou pela
primeira vez:
– Ai, vocês foram tão
boas comigo, nem sei como agradecer! Confesso que eu fiquei nervosa demais,
quando entendi quem vocês eram. Porque, olhem, eu não sei nada de nada, sou um
zero à esquerda em vendas e...
– Relaxa, filhinha, eu e
a Gládis um dia já fomos zero também. A gente aprende tudo nesta vida, basta
força de vontade e persistência. Como eu disse, pode deixar que a gente
transforma você em supervendedora em dois tempos.
– Ah, isso eu garanto que
ela tem – manifestou-se o padrinho Fúlvio, o anjo protetor – e tem, além dessa
figura linda, muita inteligência. Ela é agrônoma formada.
Gládis, a solidária,
completou:
– Pois então: carinha,
corpão, força de vontade e uma boa cabeça. Que mais a gente vai querer, não é,
mãe?
– É isso mesmo, minha
filha. Temos a melhor matéria prima para trabalhar.
– E ela também tem um
tremendo advogado de defesa, estou vendo – aduziu a sensível Gládis, apontando
para Fúlvio Rondelli.
– Ele é meu padrinho –
apressou-se a dizer o anjo loiro, agora sorridente e tranquila, pendurando-se
no braço do italiano, num gesto automático que costumava fazer desde menininha.
Durante todo esse tempo,
Celso Teles, escondendo os olhos sob os óculos rayban escuros, fitava
encantado sua musa, procurando ser discreto, tanto quanto a emoção lhe
permitia. Para desanuviar sua névoa de temores rediviva, falou:
– Muito bem, meninas.
Vamos fazer o seguinte: o Fúlvio e a Larissa vão levar vocês em uma excursão
geral, para conhecerem todos os departamentos da Revenda. Enquanto isso, eu vou
ver como estão as obras lá no terreno. E aí eu volto na hora do almoço, para
levar vocês quatro para almoçar comigo, vamos na Churrascaria do Alemão, boca
livre, tudo por conta da firma. Aproveitem.
E, perdendo-se em mais um
rápido, mas infinito olhar dentro do faróis de água-marinha, fez meia volta e
foi para o carro.
Bingo!
– pensou a espanholita filha – Se entrega em cada gesto, está caidinho por ela.
Mas também, quem não estaria? Qual homem pode resistir à presença dessa menina?
A essa altura também a
espanholita mãe tinha certeza que o que Gládis intuíra era plena realidade. O
jefe estava mesmo abalado por aquela loirinha querida. E tratou de obter mais
informações, enquanto os quatro caminhavam pelas esplêndidas e modernas
instalações da antiga concessionária GM:
– Larissa, você foi um
achado e tanto para o Celso. Me diga como foi que ele encontrou e convidou
você?
– Ah, aí é que está. Não
foi ele que me encontrou, fui eu que fui importuná-lo na academia, fui atrás
dele na maior cara-de-pau, para lhe pedir um emprego. Eu nunca tinha falado com
ele. Mas pedi o emprego assim mesmo, para mim servia qualquer coisa, até
servir cafezinho, contanto que fosse um trabalho diário.
– Menina! Você é uma
garota decidida e valente, hein!
Larissa baixou os olhos,
enquanto sacudia a cabeça lentamente para os lados:
– Não sou, não, Dona
Carmen – sua carinha agora demonstrava tristeza – Eu sou covarde e indecisa,
muito insegura, fui morrendo de medo dele. Não sei de onde eu fui tirar coragem
para pedir o tal emprego.
– Anote aí, mãe, mais uma
qualidade dessa moça: sinceridade!
– Bem, pra começar você
vai parar imediatamente de me chamar de Dona Carmen, de senhora, essas coisas.
Eu sou mais velha que você, mas não sirvo para sua avó. Nós, agora, somos
colegas. Colegas, entendeu?
Larissa corou fortemente
e baixou os olhos para o chão:
– Sim, senhora.
Gládis caiu na risada:
– Se você chamar Carmen
De Rios de senhora de novo, ela entope essa sua boquinha linda com uma
castanhola, garota.
– Sim, é ... desculpe. A
senhora é você. Você...
Fúlvio, o grande conhecedor
do gênero humano, que as observava em silêncio, já tinha feito o exame de
raio-X das duas paulistas: Gente de
respeito, profissionais do mais alto nível, esse Celso é que nem um
mergulhador, que encontra pérolas preciosas em ostras no fundo do mar. E elas
não tiveram nem um pouquinho de inveja da Larissa, uma raridade. Pelo
contrário, manifestaram a maior boa vontade e um tremendo olho clínico
profissional, elas estão de fato apostando no meu anjinho loiro. Só que eu
preciso ajudar, preciso me reunir com elas o mais rápido que eu puder, sem a
Larissa, para dar a ficha completa da minha afilhada. Elas precisam tomar
conhecimento dos problemas que esta menina enfrenta desde criança. E de como
ela se magoa e se retrai com facilidade. Preciso, sim...
Passaram o resto da manhã
apresentado toda os recintos para as paulistas. Carmen já esquematizando na
mente como iria dispor os automóveis zero no grande salão e como disporia
também o mobiliário que iria solicitar a Celso.
Gládis estendeu, o tempo
todo, seu olho clínico não para as coisas da empresa, mas para a moça loira eu
lado. Quanto mais olhava para ela, mais gostava do que via. E mais sentia a
enorme aflição que, de tempos em tempos, acometia a garota. Está com medo, isso ela já nos falou. Mas
tem um outro medo, mais básico, mais no fundo, não consigo perceber direito.
Mas tem. O que essa garota precisa é de uma amiga! Duvido que ela tenha uma
única sequer nesta cidade. É bonita demais para isso. Eu a sinto como uma
ratinha assustada, debaixo de holofotes, tentando se defender e tendo que
agradar todo mundo. Que coisa! No fundo está sozinha, é uma solitária. Por isso
se pendura no casaco do padrinho como se agarrasse uma corda de salvação. Ele,
de fato, deve ser a única pessoa em quem ela confia. Como será a família dela?
Pouco depois chegou
Celso, exultante com o andamento de suas obras no grande terreno. Agora elas
começariam a tomar sua forma definitiva, então estava na hora de revelar àquelas
pessoas de sua total confiança qual a verdadeira razão de sua vinda para
Amarante. O que, em última análise, correspondia a ter que SE revelar, mostrar
a elas quem ele tinha sido no passado.
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