MILTON MACIEL
2. O ‘DOUTOR’
O ‘doutor’ do velho
Fúlvio Rondelli não era doutor coisíssima nenhuma. Nem por profissão, à qual a
tradição atribui um doutor sem doutoramento, nem por mestrado e doutorado
efetivos. Aliás, não tinha qualquer curso superior. Mas, sem dúvida, era um
homem de grande sabedoria prática.
Celso Romano Teles estava
com 39 anos e era natural de Indaiatuba, São Paulo. Uma longa história o havia
levado muito cedo, ainda menor de idade, para fora do Brasil, onde havia
trabalhado em vários países e aprendido diversos idiomas. Há sete anos de volta
ao país, soube investir os resultados de seus ganhos no exterior em diversos
negócios e aplicações. Nesse regresso, radicou-se em Sertãozinho, região de
Ribeirão Preto, onde não era conhecido e nem foi reconhecido.
Ali viveu tranquilo,
usufruindo de sua boa situação econômica e acabou casando, três anos depois,
com uma beldade local, uma fogosa morena com quem havia protagonizado fortes
cenas em locais públicos, ainda que algo reservados. Essa Rosana tinha então 29
anos e era fisioterapeuta, com boa clientela e ótima reputação profissional.
Algo aconteceu, no
entanto, sete meses atrás, que acabou levando o casamento a um rápido final.
Dois meses depois, Celso Teles estava chegando com sua mudança em Amarante.
Ali provocou um frisson
nas mulheres e nos homens, neste caso, nos homens de negócios. Explique-se:
Para as mulheres a
chegada de um forasteiro de ótimo aspecto físico, alto, espadaúdo, atlético,
cabelos castanhos ondulados, pilotando um Toyota Corolla do ano foi um
sinalizador que aguçou o apetite de muitas, especialmente ao saberem, dias
depois, que o homem era livre e desimpedido.
Para os homens de
negócio, o interesse surgiu da procura por imóveis para comprar, por parte do
forasteiro recém-chegado. Tudo indicava que ali estava um investidor, um
negociante como eles, que poderia ativar algum segmento do comércio local.
Principalmente quando a cidade soube, estarrecida, que agora pertencia a ele o
grande terreno que havia sido comprado, por um corretor paranaense, para uma
empresa de São Paulo, depois de passar mais de dois meses pesquisando imóveis
por toda Amarante.
A transação havia
incluído também uma boa e moderna casa, em bairro mais afastado do centro. E um
imóvel onde havia funcionado uma revenda Chevrolet na cidade, agora desocupado
– todos os três pertencentes ao espólio do falecido Térsio de Andrade. Os
herdeiros, exultantes, comemoraram o fechamento do negócio, pago inteiramente à
vista, de uma tacada só, tão pronto a documentação foi assinada em cartório,
pelo corretor, que era também procurador do forasteiro.
Aquele sujeito que
chegava mostrou que tinha muita bala na agulha, comentavam todos. E também não
puderam deixar de notar que o camarada devia ser, de fato um tipo de esportista,
porque passaram a vê-lo correr quilômetros e quilômetros pelas ruas de bairro,
todo santo dia, fizesse bom ou mau tempo. Simultaneamente, ele se inscreveu na
única academia digna do nome em Amarante, a Universo
Fitness, de propriedade do professor de educação física Nelson Amaral, um
manezinho de Florianópolis, que estava radicado ali há mais de cinco anos.
Depois de duas semanas da
chegada do homem, mais uma notícia bomba: o paulista havia comprado, à vista
para variar, a oficina de Fúlvio Rondelli, o mecânico mais antigo, mais
competente e mais respeitado da cidade. O italiano não só vendeu a oficina inteira,
de porteira fechada, com todas as existências e equipamentos, como passou a ser
o gerente da oficina mecânica que o homem iria montar, juntando os cacarecos de
Fúlvio e flamantes equipamentos novos, no prédio da antiga concessionária dos Andrade.
Foi só então que souberam
que a concessionária seria reativada. Puxa, pensaram, o homem tinha muito, mas
muito mais bala na agulha do que haviam imaginado! Mas, quando as instalações
começaram a ser ocupadas, souberam que não seria de fato uma concessionária GM,
mas uma loja multimarcas para veículos novos e uma loja para veículos
seminovos. Com que então o homem era negociante de automóveis, quem diria!
A curiosidade sobre ele
era geral. Os mais afoitos – e as muitas mais afoitas – interpelavam-no
diretamente na rua, nos restaurantes, nos bares, na academia. Nelson Amaral
observou, entre satisfeito e boquiaberto, que, de repente, quase uma dúzia de
novas alunas fora se matricular na Fitness,
todas interessadíssimas em malhar no mesmo horário que o paulista bonitão. Um problema para as mais folgadas e
preguiçosas, pois o homem já estava à porta da academia às seis da manhã,
quando Nelson abria a porta. Suado, se movimentando, chegando de uma corrida de
doze quilômetros, ida e volta, entre sua casa e a Universo.
Naquele horário só mais
três homens se exercitavam, com frequência irregular, de modo que o dono da
academia ficava observando, divertido, aquele bando de fêmeas a exsudar
hormônios para cima do paulista. Todas puxavam assunto com ele, crivavam-no de
perguntas de ordem pessoal, tagarelavam entre si, sem parar, como caturritas. O
homem a todas respondia com bons modos, mas de forma sintética, lacônica muitas
vezes.
Ficava evidente que ele
não apreciava ser perturbado durante sua sequência de exercícios, deixando a
maior parte do papo para o momento em que, saindo do salão, dirigia-se direto
ao chuveiro, saindo, logo após, rapidamente, para o estacionamento, onde havia
deixado seu carro antes de empreender sua corrida matinal academia-casa-academia.
Naquela manhã, enquanto
corria, Celso Teles ia rememorando uma a uma todas as palavras de Fúlvio
Rondelli na noite anterior, no Bar do Bicalho.
Com que então a beldade
loira tinha sido Miss Amarante! Bem, equipamento para isso ela tinha de sobra. Poderia
de fato ter sido Miss Santa Catarina; Miss brasil, provavelmente. De fato, em
sua memória de cidadão do mundo, Celso não se lembrava de ter visto uma mulher
tão impressionantemente bonita como aquela.
Quando, dois dias após
chegar a Amarante, recebeu o choque de ver Larissa pela primeira vez, tratou de
disfarçar e perguntar quem era aquela loiraça fantástica, aquela potranca de
pernas e ancas douradas e perfeitas. Isso sem falar que o espetáculo, visto por
trás, era tão chocante como o que se via pela frente.
Com natural curiosidade,
manobrou para saber se e moça era solteira ou casada. Foi quando, no
restaurante, alguém lhe disse que ela era “sempre
noiva” de um tal de Leon, um sujeito riquinho, uma espécie de playboy da
cidade.
Prático, Celso tratou de
se desinteressar pela menina de imediato. Ele estava ali para reconstruir sua
vida, depois do episódio de Sertãozinho. Estava ali como homem de negócios,
como dono de uma grande empresa de venda de veículos novos e seminovos. E,
principalmente, atrás da realização de seu grande sonho, para o que havia
comprado o grande terreno de mais de três quarteirões.
Não estava ali para se
complicar com mulher alguma. Se quisesse, na academia havia uma boa meia dúzia
de potrancas que mais pareciam éguas no cio, talvez aproveitasse a ocasião com
alguma delas, quem sabe. Mas desde que isso não representasse comprometer-se
com nenhuma. Acima de tudo queria desfrutar de sua total liberdade, há pouco
reconquistada com o divórcio de Rosana.
E, muito menos, estava
disposto a investir em uma furada, atacar a mulher mais bonita do lugar, noiva
de um sujeitinho rico e, segundo diziam, também um sujeito belo demais. Dali em
diante impôs-se olhar o mínimo possível para a deusa loira, nos episódios quase
diários de encontrá-la pela parte mais central da cidade, onde estava
instalando sua revenda, a Teles
Automóveis.
Mas, nesta manhã,
enquanto tentava curtir as árvores, sebes e jardins em flor e procurava se
concentrar no sempre presente canto de centenas de pássaros ao longo de seu
trajeto, sua atenção e sua concentração eram constantemente perturbadas pela
visão do rosto e do corpo da moça loira. E pelas palavras de Fúlvio Rondelli,
que a chamara de “meu anjinho”.
Hum, ”tão linda que só
espalha sofrimento”, tendo “o destino da
Lua, que a todos encanta e não é de ninguém”... aquilo provavelmente estava
mais para uma diabinha sensual do que para um anjinho loiro. É fria, meu camarada, cai fora! –
repetia para si mesmo. Ajudava-o pensar que a loira não manifestara jamais
interesse algum nele, passava por ele como se ele fosse transparente.
Geralmente ia acompanhada de outras pessoas, amigas provavelmente, e nunca
deixava de olhar para sua turma quando passavam por ele. Muito embora quase
todas as outras se voltassem e algumas até o cumprimentassem ostensivamente,
mesmo sem conhecê-lo.
Mas a loira linda
ignorava-o completamente. Atribuiu isso ao fato de ela ser “sempre noiva” do
tal playboy bonito e rico, fosse qual fosse o significado de “sempre noiva”.
Além do que, ele o reconhecia, podia ser interessante para muitas mulheres, mas
estava muito longe de ser um bonitão indiscutível, um galã de novela. Talvez o
tal noivo fosse.
Mas agora estava sob o
impacto das palavras de Fúlvio Rondelli. O tal de anjinho loiro era gente boa,
de conteúdo, tinha sido Miss e nem se importava com isso, tinha cursado
Agronomia e concluído o curso. Logo, estava bem longe do estereótipo da loira
burra. E, o mais importante do que recordava, ela estava, mais uma vez, rompida
com o tal noivo. Como poderia fazer, para se livrar dessas lembranças, agora
francamente aflitivas para ele?
Decidiu que era o momento
exato de investir numa das potrancas da academia. Talvez a Célia, que além de
ser uma das mais vistosas, parecia mais ajuizada e menos tagarela. Sim, que
fosse ela! Nesta manhã ele se mostraria mais afável com ela, possivelmente a
convidaria para tomarem café juntos. Era evidente que ela iria aceitar e que as
outras ficariam enfurecidas.
Pobre
Nelson! – pensou – vai
ver, as outras malucas cancelam a matrícula na academia dele. OK, vai ser bom,
vou ter tranquilidade enfim para me concentrar nas séries. O Nelson é um bom
sujeito, um preparador competente, merecia ter um movimento maior naquela
academia. Com certeza a vida financeira dele não deve ser muito folgada. Mas,
pensando bem, isso até que ajuda no meu plano para a academia dele. Pena que
ainda é cedo demais para entrar no assunto com ele.
Quando estacou de sua
corrida à porta que o Nelson acabara de abrir, foi que viu a cara de poucos
amigos das seis moças que já estavam presentes também.
Ué
–
imaginou – será que elas adivinharam que
hoje eu vou escolher uma delas? Por sinal que Célia ainda não havia
chegado.
Mas, olhando com mais
atenção, viu que os olhares de hostilidade das moças se dirigiam para alguém
que já havia entrado antes delas. De costas, esse alguém tinha um porte físico
de tirar o fôlego. De costas, como seria também de frente, esse alguém era inconfundível:
É
ELA!
– sobressaltou-se o paulista – Como pode?
É ela. O que ela está fazendo aqui? Claro que não é por minha causa, ela sabe
que é uma rainha, uma princesa. E que, perto dela, se eu não estou para sapo,
estou para algo pouco melhor do que isso. Depois preciso conversar com jeito
com o Nelson, arrancar a informação dele, sem que ele perceba como eu estou balançado
agora.
As moças entraram,
olhando com evidente má vontade para o anjo loiro, um caso covarde de concorrência
desleal! Para elas, a mais temível concorrente resolvera invadir o campo de
batalha e, com absoluta certeza, a vitória seria dela.
Celso Teles deixou-se
ficar por mais um tempo lá fora. Precisava se acalmar, pôr a cabeça no lugar. Ia
entrar, dar de cara com Miss Universo Paralelo, ia ter que conversar com ela,
como fazia com as outras. Precisava se preparar para disfarçar, para não deixar
que nem ela, nem as outras, percebessem a sua perturbação.
Cara,
você vai fazer quarenta anos, se segura, animal! Tá parecendo adolescente. Fica
frio. Desconversa...
Entrou na academia,
dirigiu-se ao salão... e a primeira pessoa à sua frente não foi outra senão
ela!
– Bom dia – cumprimentou rindo
amável, tratando de manter o tom mais calmo possível em sua voz. Mas a resposta
da moça foi arrasadora:
– Bom dia – foi só o que
disse a garota. Tudo simples, normal coloquial, voz tranquila, algo musical talvez.
Mas os OLHOS!
Ah, havia os olhos! Celso
nunca os tinha visto assim tão de perto. Desconcentrou-se, esqueceu-se da fleuma,
da pose estudada, da calma pré-fabricada. Olhos azuis de água marinha, claros
demais para serem verdade. Toda aquela criatura era demais para ser verdade.
Como disfarçar agora?
Num gesto de desespero,
atirou-se sobre a primeira barra de halteres a seu alcance e, virando-se de
costas, tratou de improvisar uma série com eles. Todo o suor que já havia
secado em seu corpo reapareceu inexplicavelmente, porque nem começara a fazer
força ainda.
Concentrou-se como pôde
na série de exercícios, rogando mentalmente que Nelson aparecesse ali e puxasse
conversa com ele. Mas não, o raio do preparador estava conversando exatamente
com o anjo loiro.
Cretino,
já vai tocando o cavalo em cima! Não adianta, os homens são todos iguais!
Depois surpreendeu-se- com
seu pensamento cretino e caiu na risada: cretino era ele, estava com ciúmes do
professor com a loirinha! Cretino, debiloide,
retardado! Ora o Nelson estava fazendo o que qualquer outro homem faria,
ele mesmo, Celso, inclusive, se não estivesse estranhamente perturbado e
paralisado.
Conseguiu, por fim, se
acalmar, executou toda a sua série, despediu-se das moças todas, de Célia, que
já havia chegado, do anjo loiro inclusive, mas sem ousar olhar de novo dentro
dos olhos azuis de água-marinha. Foi para
o chuveiro, deixou a água fria, pensou que esfriaria a cabeça assim.
Quando chegou ao estacionamento, havia alguém encostado em seu carro.
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