sexta-feira, 13 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 6 
MILTON MACIEL 

6 -  A DENSA SOMBRA DO CIÚME
Fim do cap. 5: Estava na hora de revelar àquelas pessoas de sua total confiança qual a verdadeira razão de sua vinda para Amarante. O que, em última análise, correspondia a ter que SE revelar, mostrar a elas quem ele tinha sido no passado.

Por enquanto, havia mantido esse passado no mais rigoroso sigilo. Mas algo que aconteceu pouco depois, na Churrascaria do Alemão, acabou antecipando a revelação.

Estavam todos conversando animadamente, enquanto comiam. Larissa parecia muito feliz, muito à vontade, alegre como Celso não tinha visto ainda. Ficava mais bonita, se é que isso era ainda possível, quando ria. A toda hora puxava assunto com Gládis, que a estimulava mais e mais a participar de tudo. Já estavam na sobremesa, quando tudo aconteceu.

De repente entrou um rapaz loiro alto, abraçado por uma morena vistosa. Sentaram-se a uma mesa mais ao fundo e passaram a trocar beijos famintos. Fúlvio voltou-se incontinenti para sua afilhada e enlaçou-a com seu longo braço direito. Ela encostou a cabeça no pescoço do padrinho e deixou-se ficar quieta, imóvel, sem dizer mais palavra.

O italiano, aproveitando que a garota não podia ver, apontou discretamente para a mesa do fundo, onde o casal se devorava, ignorando garçons e seus espetos e articulou boca e lábios, bem abertos, para que Celso entendesse o nome que ele falava sem produzir som:

– Le – on !

O paulista entendeu de imediato: era o tal do ex-noivo ou “sempre noivo”, que ele ainda não conhecia. Fixou o olhar.

O homem era, de fato, muito bonito. Parecia bem alto, um tipo mais para o delgado, cabelos loiros, aparentando menos de 30 anos. Muito bem vestido, com roupas tipo esportivo, certamente de grife. Então aquele era Leon Schlikmann! O noivo perpétuo, o dono do pedaço, ao que parecia. Bastava ver como Larissa tinha ficado: afundada no pescoço do padrinho, muda, evidentemente sofrendo. Sim, Fúlvio tinha razão, estava na cara que o anjinho loiro gostava mesmo do tal “sempre noivo”. Estavam rompidos mais uma vez e, no entanto, ela estava ali transida, abalada, pedindo socorro ao padrinho.
Celso fez com que as espanholitas se aproximassem dele e cochichou-lhes, apontando para o casal aos beijos:

– É o ex-noivo dela. Já estiveram três vezes por casar.

Carmen fez sinal afirmativo coma cabeça, mostrando que entendera.

Gládis fez sinal negativo, balançando a bela cabeleira negra e farta. Não! Algo está errado. Aí tem coisa também... Será que esta menina gosta mesmo desse cara? Ou acha que TEM que gostar? Eu, de minha parte, definitivamente não gostei dele!

Subitamente Fúlvio fez Larissa se endireitar na cadeira e falou:

– Ele está vindo aqui, Larissa. Já nos viu. Levante a cabeça, não dê o gostinho a esse cara.

Larissa enrijeceu-se na cadeira, como se fosse uma boneca de pau. Seus olhos de água-marinha ficaram imóveis nos olhos de Celso e ele entendeu que aquilo era um pedido de socorro. Leon chegou:

– Oi, Larissa. Há quanto tempo, hein. Tudo bom?

– Claro, tudo bem. Gente, este aqui é o Leon, um amigo, que já foi até meu namorado.

– Noivo, ela quer dizer – disse o rapaz, num tom de censura. Nós já fomos noivos três vezes.
Larissa nada disse, apenas corou violentamente.

– E você, tio Fúlvio? Soube que vendeu sua oficina e que está trabalhando para um cara de São Paulo, o que comprou a concessionária dos Andrade.

– Este cara aqui, por acaso: Leon Schlikmann. Celso Teles.

Celso ergueu-se e apertou a mão do rival que não sabia que era rival.

– Prazer, Leon

– O prazer é meu, camarada. Ainda mais que você está cercado de beleza por todos os lados.
Era evidente que cobrava a apresentação das duas morenas apetitosas.

– Carmen de Rios e Gládis de Rios, minhas campeãs de vendas, que importei da minha Revendedora de Ribeirão Preto. Estão de mudança para Amarante, vão trabalhar com a gente agora.

– Hum, muito gosto, senhoritas. Sejam muito bem-vindas. Amarante vai ficar muito mais bonita agora – e esticou um olhar cúpido para o decote de Gládis, que lhe retribui o sorriso, enquanto gritava-lhe em silêncio: Galinha!

– Bem, foi muito bom conhecer vocês. Mas eu estou com uma amiga e me lembrei que ela deve estar morrendo de fome. Preciso ir, com licença. Tchau, Larissa, tchau tio Fúlvio. Até breve, gente.

E saiu com seu passo gingado e seu porte altivo de vencedor, em busca da tal amiga faminta. Faminta do que, mesmo?

Tio Fúlvio – realmente o italiano era uma unanimidade em Amarante, também o delfim dos Schlikmann crescera aprendendo a gostar dele – conversou alguma coisa em voz baixa com Larissa, levantou-se, ajudou-a a erguer-se da cadeira e falou aos demais:

– Olhem, eu vou levar minha afilhada em casa e já vou para a firma em seguida. Ela está com muita dor de cabeça...

– Sim, estou. Mas assim que eu melhorar, tomar um remédio, eu vou para a empresa também, podem ter certeza. Me desculpem.

Saiu com o padrinho e, ao passar pela coluna espelhada, os outros companheiros ainda à mesa puderam ver claramente que ela começava a chorar.

– Pobrezinha – murmurou Gládis. Está tão confusa..,

– Bem, ela gosta mesmo do cara, dá pra ver.

– Não. Ela NÃO gosta do sujeitinho, dá pra sentir! Por isso é que ela vive nessa confusão, tanto que já foi noiva do pilantra três vezes. Aposto que foi sempre ela que rompeu, não foi?

– Bem, o Fúlvio me disse que foi.

– Taí, só não vê quem não quer.

– Só não vê quem não é uma bruxinha como esta minha filha, Celso. Mas se ela diz... E por que você chama o rapaz de sujeitinho, de pilantra? Parece que não gostou dele, filha.

– Sujeitinho vaidoso. Pilantra. Petulante. Galinha. Riquinho, filhinho de papai. Não, não gostei mesmo. Aliás, detestei!

– Puxa, Gládis, você não tem papas na língua. Mas como você sabe que ele é filhinho de papai rico?

– Ora, sabendo, Celso. Como tudo que eu apanho no ar. E ele, por acaso, não é?

– É, sim, espanholita. Você acertou, pra variar. É o filho único da família mais tradicional daqui, os fundadores de Amarante, os Schlikmann.

– Ouro recheado de merda!

– Filha!
– E olha que é só uma casquinha de nada de ouro...

Todos os três caíram na gargalhada. Essa espanholita!

Duas horas depois, Fúlvio Rondelli conseguiu o que queria: ficou a sós com Carmen e Gládis, numa confortável sala da diretoria. Para ele ficara evidente que a menina mais nova, a filha, tinha como que adotado o seu anjinho loiro. Poderia contar com ela como protetora de sua menina, embora, paradoxalmente, elas devessem ser da mesma idade, isso se a moça paulista não fosse ainda mais nova que Larissa. Mas, sem dúvida, pelo que observara e ouvira, essa garota tinha uma sensibilidade para as coisas que estava muito além do normal. E, se ela tinha gostado de sua afilhada, então este era o melhor sinal possível para o italiano. Mas precisava ganhar a boa vontade da mãe, também, uma vez que era Carmen De rios que seria a chefe de Larissa. E sua treinadora principal. Assim que se viu em condições, ele começou:

– Olhem, eu quis vir aqui falar com vocês em particular, para lhes dar mais informações sobre a minha afilhada. Sabem, eu sou vizinho de casa dela e praticamente cuido dela desde que a garotinha tinha só seis anos. Eu vi essa criança crescendo, acompanhei todas as maldades que fizeram com ela e todo o sofrimento que ela vem passando desde então.

– E ela é vítima de sua própria beleza, não é, Fúlvio? – afirmou Gládis, confiante.

– Ela é vítima de sua própria mãe! E, sim, por causa da beleza extrema com que nasceu. A mãe, que foi uma mulher muito bonita também, mas não teve qualquer estudo, colocou como seu maior propósito de vida fazer com que sua filha belíssima fosse Miss Brasil e Miss Universo.

– Deus do céu! Que horror! – clamou Carmen De Rios – pobre garota!

– Pois é, desde bebezinha a mãe a colocou em tudo quanto foi concurso de beleza, que ela sempre ganhou. O tempo todo era só exercícios, massagens, cremes, cosméticos, ballet, cabelos, roupas, lojas, costureiros, o diabo a quatro. Essa menina não teve infância, moças. O tempo todo foi criada para ser uma boneca de luxo, que os outros deviam admirar. O que, simplesmente, satisfazia a enorme vaidade da mãe. No fundo, a mãe é que queria ter sido uma Miss.

– E a Larissa foi Miss de alguma coisa? – perguntou Gládis.

– Sim, aos 18 anos foi Miss Amarante. Na hora da decisão, quem chorou escandalosamente foi a mãe. A filha ficou com uma expressão aparvalhada. Dias depois, quando a encontrei, aí, sim, ela chorou muito, me dizendo que não queria ter sido escolhida. Foi quando me disse que o sonho da vida dela era estudar agronomia e trabalhar com plantação e criação. Mas agora estava condenada a seguir de concurso em concurso, pois a mãe já a inscrevera, automaticamente, no Miss Santa Catarina, o degrau seguinte.

– Concurso que ela ganhou, evidentemente...

– Não ganhou, não, Carmen.

– O que?! Mas então tinha outra ainda mais linda do que ela? Ah, não acredito, só pode ter sido marmelada.

– Não, moça, ela acabou não concorrendo. Um acordo entre a família dela e a família Schlikmann encerrou a carreira da menina. Eles decidiram que ela e o Leon, que vocês conheceram hoje, deviam casar. Eles andaram de namoricos, desde crianças, sem maiores consequências, mas os mais velhos selaram um pacto.

– Um pacto?

– Sim, moça. O velho Valdemar, o homem mais rico de Amarante, pai dela, de olho no sobrenome ilustre dos Schlikmann. O velho Schlikmann, que não é mais muito rico, mas é o chefe do clã mais ilustre da cidade, de olho na fortuna do Valdemar. Fizeram um pacto para unir, através do casamento, a maior tradição com a maior fortuna de Amarante.

– E a mãe, aquela louca?

– Foi obrigada a aceitar, moça. E também viu a conveniência da coisa.

– E a menina? Ficou muito chateada de ter que sair do concurso?

– Que nada, Carmen! Ficou muito, mas muito feliz. Tudo o que ela mais queria era se livrar da tirania dos concursos, da tirania da mãe. E aí viu que teria a oportunidade de estudar agronomia, o seu grande sonho, o que de fato aconteceu.

– E o noivado? – quis saber Gládis.

– Fizeram uma festa de arromba, daí algum tempo e consolidaram o plano do casamento.

– Que não aconteceu até hoje. E porque ela não quis.

– Isso mesmo, moça. Acontece que o Leon é muito galinha. Também, com aquela pinta de galã e o nome da família, todo mundo pensando que eles são podres de ricos... Então, cada vez que o casamento se aproximava, a Larissa aprontava uma cena, armada com testemunhos de outras mulheres, que viviam denunciando as estripulias do noivo para ela. E, com isso, ela se livrava de ter que casar e conseguia seguir seus estudos de agronomia. Fez isso três vezes e, nessa brincadeira, passaram-se cinco anos.

– E ela não namorou outro?

– Não, Carmen. Nunca quis saber de mais ninguém. De tempos em tempos o Leon voltava à carga. Então a família dela pressionava a menina até à exaustão e ela acabava se rendendo. Mas com a certeza que o Leon ia aprontar sempre e que ela podia romper outra vez, como aconteceu agora, coisa de uns seis meses atrás.

– Hum está durando... Mas, pelo jeito que ela ficou hoje, vendo o rapaz atracado com aquela morena, dá pra ver que ela ainda gosta dele.

– Pois é, Carmen. Eu também acho que ela fica dividida: que gosta e que não gosta, as duas coisas ao mesmo tempo. Se gostasse mesmo, sem dúvida alguma, teria casado com ele. Se não gostasse, não teria aceitado os reatamentos de compromisso. É uma coisa muito esquisita...

– Pois vocês estão errados, redondamente enganados. Ela NÃO gosta dele!

– Ah, é, filha? Mas então porque ela ficou daquele jeito, acabada, saiu chorando pra casa?

– Ora, mãe, porque ela não gosta, mas não sabe que não gosta. Pior, ela, ainda por cima, acha que é obrigada a gostar!

– Coisa mais estranha, moça. Mas, sabe, eu acho que você tem razão. É a primeira vez que sou levado a pensar dessa maneira. Isso faz todo sentido mesmo. Puxa, mocinha, você é um fenômeno, consegue ver num instante coisas que eu, burro velho que me dedico a proteger essa menina há quase vinte anos, não  fui capaz de ver. Sim, só pode ser isso!

– É isso, Fúlvio. É exatamente isso!

– Bem, homem, se essa aí diz, quem sou eu para discordar. Deve ser isso mesmo.

– Pois vocês podem deixar a Larissa comigo. Você, mãe, treina a menina para ser uma campeã como você, como nós; assim ela vai aprender a se valorizar, se respeitar como profissional. E eu vou cuidar da outra parte, vou resgatar o amor próprio dessa garota, vou fazer ela se encontrar consigo mesma.

– E como você vai fazer isso, filha?

– Vou ser AMIGA dela, mãe. Amiga de verdade, como aposto que ela nunca teve. O resto eu vejo depois.

– Deus abençoe você, minha cabecinha de ouro, coração de ouro! Você não imagina como a minha menina precisa disso. De fato, ela nunca teve uma amiga em quem pudesse confiar. Nunca! E só porque...

– Ora, Fúlvio, porque teve a audácia de ser a mulher mais bonita que todas as outras mulheres conhecem.

– Isso mesmo. Isso mesmo. Pois, para a minha menininha, desde sempre, a beleza fora do comum foi muito mais um problema do que uma bênção. A começar por todos os estragos que a doida da mãe dela provocou. Mas eu estou feliz demais, meninas, com a chegada de vocês e com tudo o que aconteceu hoje. Bendita hora em que o Leon apareceu na churrascaria!

– É, Fúlvio, foi muito bom mesmo – completou Carmen De Rios. Depois perguntou:

– Mas onde anda o Celso, que desapareceu e não volta mais?

Gládis fez um gesto imperceptível para Fúlvio Rondelli: esfregou a palma da mão esquerda, em concha, no cotovelo direito. E fez uma carinha de dor.

Suficiente para esperta Carmen entender que a filha lhe passava uma mensagem claríssima: Foi tratar da sua dor de cotovelo, mãe. Está com ciúmes, por causa do Leon e da reação da Larissa.

Enquanto observavam Fúlvio partir para a sua oficina, as duas ainda comentaram:

– É isso mesmo, filha, o coitado do Celso deve ter ficado arrasado quando viu o Leon, bem mais moço, mais bonito e mais metido a besta do que ele. E, ainda mais, quando viu que a Larissa deu aquela demonstração de ciúme e dor de cotovelo também.

– Pois é, mãe. Mas veja só: foi o ciúme mais besta, mais fora de lugar que eu já vi. Mas pelo menos, serve para você ver como eu estava certa, como o Celso está totalmente caído pela sua Miss Amarante

Não, Celso não estava só caído. Estava na lona, estava arrasado! Embora tivesse ouvido Gládis garantir que sua musa não gostava do “sempre noivo” de verdade, o que os seus olhos tinham visto gritavam outra coisa bem diferente para os seus ciúmes. Deixou todo mundo na empresa, para que conversassem e se conhecessem melhor, e foi para casa. Precisava de solidão e de um lugar para botar os pensamentos, isto é, os sentimentos, em ordem.

Naquele exato momento, em sua casa, outra pessoa tentava também colocar em ordem seus sentimentos em tumulto. O mesmo velho tumulto de outras vezes... Até onde ela gostava ou não gostava de Leon Schlikmann? Por que razão tivera aquela reação tão desproporcional e inconveniente, na frente de suas novas colegas e, principalmente, de Celso Teles? O que não estaria ele pensando dela agora? Uma fraca, uma patricinha chiliquenta, uma debiloide que nunca chegaria a ser nem uma sombra, uma partícula de uma das De Rios!  

Não lhe tiraria a razão se ele, delicadamente, mandasse Carmen dispensá-la, cortando-lhe a oportunidade de trabalhar na Teles. Remoeu-se, chorou na cama por quase uma hora, depois tomou um banho, arrumou-se e dirigiu de volta à empresa. O tempo todo só pensava em Celso, como ele reagiria. Precisava encontrá-lo, explicar-lhe quem era o Leon e, principalmente, pedir perdão pelo seu papelão na churrascaria. Iria suplicar-lhe que tivesse paciência com ela, que não a despedisse logo.

Mas por que ele aceitaria suas súplicas? Quem era ela para pedir que o chefe fosse assim tão paciente e compreensivo?

Chegou à firma às quatro da tarde, os olhos visivelmente vermelhos de chorar, mesmo sob o disfarce dos óculos de sol. Entrou e correu para o lugar onde viu Gládis ajeitando uma estátua de aço inox.

– Ele vai me mandar embora, não vai? Ele vai, não é? Depois do fiasco que eu fiz na churrascaria...

Gládis pegou-a delicadamente pela mão e conduziu-a ao amplo sofá da recepção, sentando-se com ela. Continuou segurando sua mão.

– Não vai mandar coisíssima nenhuma, sua boba. Você não conhece o Celso ainda. Ele é a criatura mais humana e generosa que eu conheço na face da Terra. E eu sei que ele gosta de você, que está torcendo pelo seu sucesso. Não pense bobagens, ele não vai mandar você embora.

E pensou: Não vai mandar você embora nem hoje, nem nunca, menina. Queira Deus que você tire essa sorte grande e venha a gostar do Celso como ele merece, como ele precisa. Mas isso nem eu posso vislumbrar, o seu coração é que vai ter que dizer.

CONTINUA...

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