LUA OCULTA – 17
MILTON MACIEL
17 - ADOLFO SCHLIKMANN
Fim do cap. 16: "Gládis fez sinal com a cabeça que sim, não queria que a mulher entrasse naquele assunto e fosse ficar contando papagaiadas horas a fio. O marido dela comentou:
– Filha minha e mulher minha não precisam trabalhar fora. Não precisam, nem eu deixo. Vão precisar de três gerações para gastar todo o meu dinheiro, essas dondocas."
Madame Silvá fez que sim, orgulhosa. Gládis
sorriu, gentil. E feliz, porque imaginou que estava dando uma tremenda joelhada
no saco daquele baixinho petulante. Macaco imbecil! Pobre da sua Fofinha,
crescendo nas mãos daquele orangotango e daquela mula! Ah, mas ela ia dar um
jeito nisso, ou não se chamava Gládis de Rios...
Estavam estabelecendo as primeiras negociações,
envolvendo o Mercedes mais caro da empresa, quando viram entrar os Schlikmann.
Gládis sorriu, pensando:
Bem que
esses dois imbecis podiam sair no braço, como aqueles outros idiotas há pouco, lá
fora. Ah,
que pena que ela não podia mais ofertar o mesmo carro para aquele alemão alto e
antipático, só pra ver aqueles dois ascos se pegarem a tapa. Que vomitórios, os
dois!
Aí teve um lampejo e fez sinal para Jennifer,
que estava entrando na loja naquele momento, para que ela atendesse Adolfo
Schlikmann. Lamentou pela colega, mas precisava ver se aconteceria o que estava
imaginando.
Jennifer, a vendedora que chegara horas atrás
de Ribeirão Preto, junto com sua colega Paula, não era loira, nem morena, nem
mulata. Jennifer era NEGRA! Sua pele
brilhava naturalmente, com um preto retinto quase azulado, lindo de se ver. E,
como todas na equipe de Celso Teles, era uma mulher de uma beleza
impressionante. Traços africanos característicos, uma boca carnuda que era puro
rasgo de sensualidade, alta de um porte altivo e elegante, uma bunda
cinematográfica, a maior da equipe. O torneado das pernas era também uma coisa
de cinema. Tudo nela inspirava classe e superioridade natural, sem qualquer
pose ou afetação. Carmen De Rios gostava de chamá-la “minha Rainha Negra”, “Rainha
de Sabá sem Salomäo”, “Deusa da África”.
Até porque, muito mais do que isso, Jennifer
tinha algo que a fazia a favorita total de sua chefe: Jennifer era uma mulher
muito culta. Formada e pós-graduada em Letras, tinha sido antes professora de
inglês em escolas secundárias e depois professora universitária em Ribeirão,
especializada em literatura portuguesa de Portugal e das ex-colônias.
Trabalhava, nas horas vagas, como tradutora e escrevia contos, que esperava
poder publicar um dia, quando achasse que atingira a maturidade que visava.
Mesmo assim, os seus proventos eram muito
limitados. Só soube o que foi ganhar dinheiro de verdade quando, a instâncias e
insistências de Carmen, começou a trabalhar na Teles Automóveis de Ribeirão
Preto, como vendedora.
Em pouco tempo, uma espécie de Miss Simpatia
nata e uma incontestável Rainha Africana, tornou-se, também ela, uma das
campeãs de vendas. Naturalmente, de vez em quando enfrentava problemas com racistas.
Era o que Gládis queria testar agora.
Quando aquela negra alta e elegante foi
atendê-lo, Schlikmann fechou ainda mais a cara, já de normal tão amarrada que
parecia enxovalhada. Era um homem muito alto, com um metro e oitenta e cinco,
magro, com uma face de cera muito enrugada. De idade, andava na casa dos
setenta e cinco anos. O cabelo era curto e ralo, totalmente branco, mantido no
corte escovinha típico dos militares, o que ele nunca tinha sido Por incrível que pudesse parecer, não
precisava usar óculos. Seus olhos azuis acinzentados, frios e penetrantes,
eram, por isso mesmo, a parte mais destacada no todo do seu rosto.
Seu porte mostrava um homem levemente encurvado
para a frente, mas que tinha um passo estugado e rígido. E andava sempre
olhando para a frente e um pouco para cima, o que lhe dava uma aparência de
arrogância que, a bem da verdade, nada tinha de aparente, porque era mais do
que real. Era tido por todos, de uma forma generalizada, como um homem muito
antipático e orgulhoso.
O orgulho provinha, obviamente, de sua posição
de chefe da família mais importante do lugar, descendente direto dos primeiros
Schlikmann, alemães fundadores da cidade, junto com os italianos da Calábria,
os Piacenzi. Mas estes tinham entrado em declínio e só a estirpe dos alemães
sobrevivera ao duro passar do tempo, tornando-se estes alemães cada vez mais
ricos e poderosos. A curva ascendente da riqueza da família durou até seu pai,
o velho Heinz, o primeiro a perder dinheiro e começar a liquidar patrimônio na
família. Colaborou para isso o alcoolismo. E, também, seu vício de jogo, que o
levava a viajar constantemente para a Europa, em busca dos grandes cassinos, como
o de Monte Carlo, onde perdeu boa parte do patrimônio da família.
Quando o velho Heinz se foi, consequência de
uma bala de 38 que teve por bem guardar dentro de sua própria cabeça, o jovem
Adolfo exultou de felicidade. Estava, a um só tempo, livre daquele maldito
estrupício detestável e passava, instantânea e inesperadamente, a poder dispor
de toda a fortuna restante da família.
Dispor em termos, porque havia aquela idiota da sua irmã Helga, que
fizera a estupidez de engravidar de um brasileiro comum, pobre e sem profissão
definida, um mero vendedor de loja de sapatos; um reles Souza, desses que caem
aos milhares cada vez que se chuta uma árvore no Brasil. E, pior, casado!
Fiel seguidor dos velhos métodos, a que
recorrera muitas vezes no passado, Heinz Schlikmann , quando soube da gravidez da filha, mandou buscar um dos seus
homens de confiança na fazenda de Lages e encomendou-lhe o passamento do
infeliz balconista. Mas, na última hora viu-se obrigado a mudar o alvo das
balas do pistoleiro.
Depois de dar várias surras violentíssimas na
filha grávida, sempre tomando o cuidado de chutar-lhe a barriga diversas vezes,
o alemão compreendeu que não havia jeito de convencer aquela cabeça dura a
abortar a criança, a óbvia solução para o problema. A filha, estúpida e
sentimental, defeito recorrente de todas as mulheres para ele, obstinava-se em
ter o filho. Foi então que Heinz capitulou e resolveu casar a filha com aquele
maldito balconista. Mas como o bastardo já era casado, mandou o pistoleiro
matar a mulher dele e consagrou-o viúvo.
O casamento foi feito às pressas, dois meses
depois apenas, que a barriga da filha não permitia mais delongas. Foi feito na
discreta capelinha da fazenda de Lages, onde a filha e o desgraçado do genro
foram obrigados a ficar pelos próximos dois anos, sem ousar aparecer em
Amarante com aquela criança de má semente, um Souza – semente maldita que o
velho Heinz suspeitava que tivesse um pé na África, nódoa a conspurcar a sangue
ariano puro dos Schlikmann.
Ainda estavam lá quando o velho Heinz, durante
um porre fenomenal, teve a abençoada ideia de acabar com a própria vida. Aberto
o testamento, soube-se que todos os bens haviam ficado para o filho Adolfo, com
exceção da fazenda de Lages, único bem deixado à ingrata da filha mais velha.
Adolfo não se conformou, eram mais de 600 hectares de pasto de primeira
qualidade, com várias centenas de bois na engorda. Valia muito dinheiro e era o
único bem do espólio que tinha liquidez garantida, bastaria um único anúncio e
seria vendida de um dia para o outro.
Por isso, dois meses depois da morte de Heinz
Schlikmann, a desgraça voltou a se abater sobre aquela família infeliz. A
fazenda foi assaltada por um bando de ladrões de gado, em plena madrugada. E os
desalmados, não satisfeitos em sumirem com mais de 150 cabeças de gado gordo,
ainda entraram na casa e promoveram uma chacina, matando a irmã, o cunhado e o sobrinho
de Adolfo Schlikmann, de um ano e meio apenas. E também a velha empregada que
dormia na casa com os patrões.
Foi um dos crimes mais bárbaros cometidos no
município e um dos poucos que ficou sem solução, face à extrema lentidão do
processo investigativo, que parecia contar com toda a má vontade da autoridade
policial local.
Pouco depois da perda irreparável dos parentes,
um inconsolável Adolfo apresentou ao advogado inventariante uma via do
testamento do velho Heinz, em que só ele figurava como herdeiro único de todos
os bens, a fazenda de Lages, inclusive. O patriarca, desiludido e magoado com o
comportamento mesquinho da filha, vergonha da família, a deserdava nesse mesmo
documento. Mas, coração de ouro, permitira-lhe ficar morando na fazenda dele,
com dó do netinho, criança inocente que não tinha culpa de nada.
Presente ao ato, para garantir a autenticidade
do documento, o Doutor Alcebíades Moro, dono do tabelionato de Blumenau onde o
testamento fora lavrado (e relavrado em sigilo, no melhor estilo dos velhos caxixes
nordestinos, ao módico custo de mais cem cabeças de gado gordo de Lages).
Assim, tudo esclarecido, legalizado e perfeito,
Adolfo Schlikmann passou nos cobres a malfada fazenda, onde, afirmara antes,
jamais voltaria a botar os pés, face à maldição que ela representava para a
família, face às lembranças dolorosas de sua saudosa irmã.
Com o dinheiro apurado, Adolfo Schlikmann pôde
manter-se muitos anos sem precisar se preocupar com aplicações ou rendimentos
financeiros, área em que, reconhecidamente, não tinha nem competência, nem
sorte. Competência e sorte que continuaram madrastas ao longo da vida do rico
herdeiro, que foi torrando aos pouco os outros imóveis do espólio, ao ponto de
tê-lo, agora, reduzido a duas casas e um único galpão industrial, responsáveis
pela bem mais minguada renda com que podia contar no presente. Esses imóveis
ele não poderia vender – talvez ainda precisasse vender uma das casas – pois
acabaria ficando com uma renda menor do que suas largas despesas.
É claro que trabalhar ele nunca tinha
trabalhado, era uma coisa indigna de um Schlikmann, de um nobre da linhagem dos
fundadores. E ele se horrorizava só em pensar que poderia ter uma empresa, que,
obrigatoriamente, por causa de sua importância, teria que ser muito grande. Ou
seja, teria que ter preocupações infinitas, dor de cabeça atrás de dor de
cabeça, como têm os empresários. Que vida iria ter? A de um Valdemar Silva,
que, para ser o homem mais rico de Amarante, tinha que se esfalfar no trabalho
dia e noite, como ou mais do que o mais ínfimo dos seus peões ou caminhoneiros,
sem tempo para poder gozar a vida, ir à Europa comprar boas roupas, fazer
safáris na África, ir a New York ou passar férias (do que?) no Taiti?
Quando a Rainha Negra se aproximou e o recebeu
com um gentil discurso, o velho Adolfo respondeu incisivamente.
– Boa tarde, senhor. Boa tarde, senhora. Sua
preferência pela Teles Automóveis nos deixa muito satisfeitos e orgulhosos. Eu
sou a atendente Jennifer, uma consultora de vendas especializada, à sua inteira
disposição. Diga o que gostaria de ver e nós faremos até o impossível para satisfazê-lo.
Ríspido e seco, Schlikmann falou:
– Vá chamar sua patroa, prefiro falar direto
com ela.
Mais direto impossível. Mais racista e ofensivo
também. Até mesmo para a experiente e tranquila Jennifer o direto na boca do
estômago pesou, deixou-a sem fala na hora. O velho a chamá-la de empregada
doméstica simplesmente, para colocá-la no seu lugar, segundo o conceito dele.
Humilhava e já colocava as coisas como tinham que ser, estabelecia a hierarquia
e a distância.
Gládis não desgrudara um só instante a sua
atenção da cena ao seu lado, enquanto conversava socialmente amenidades com o
casal Silva. A venda já estava lavrada, assinada e paga, com o Mercedes mais
caro de toda a linha de importados solidamente garantido nas mãos do homem mais
rico de Amarante. Gládis sorriu e pediu licença ao casal por um momento.
Dirigindo-se ao cliente importante de Jennifer,
o mais importante de Amarante, uma espécie de rainha da Inglaterra do lugar,
disse-lhe gentilmente:
– Boa tarde, senhores. Eu sou Gládis de Rios,
subgerente da loja e chefe imediata de nossa Jennifer aqui. Em que poderia
servi-los?
O velho dragão abriu um sorriso de satisfação
e, vitorioso, usufruindo o prazer de ter pisado na cabeça daquela negra
insolente, metida a sebo, respondeu:
– Eu quero um carro alemão como eu, um
Mercedes, o melhor e mais caro que vocês tiverem por aqui.
– Senhor Schlikmann, nesse caso devo lhe dizer
que temo que o simpático freguês que acabo de atender, o Sr. Valdemar Silva
ali, já tenha feito exatamente essa mesma escolha, no automóvel CLK que acabo
de faturar para ele. Mas ainda temos vários outros veículos Mercedes, todos
zero quilômetro, certamente o senhor poderá encontrar uma outra excelente opção.
O alemão cerrou o cenho, mas depois voltou a
sorrir. Sim, o que poderia esperar, se o troglodita do caminhoneiro chegara
antes dele? Por um lado, até era bom, assim não seria obrigado a gastar tanto
com o carro mais caro da loja, podia economizar ficando com o segundo da tabela
de preços. O modelo e as características não tinham assim tanta importância,
desde que, depois de Valdemar Silva, ninguém pudesse desfilar com um carro tão
caro quanto ele em Amarante. Existia, na prática, uma espécie de acordo tácito
na cidade, quando se tratava de avaliar os seus dois homens mais importantes:
Silva era o mais rico, Schlikmann o mais nobre. Silva era um macaco nanico e
sem classe, um reles caminhoneiro que subira às custas de muito trambique e
tenebrosas transações. Schlikmann era um ariano puro e altíssimo, que já
nascera por cima. Silva era um ignorante. Schlikmann também: apesar de toda a
pose, também não tivera estudo algum. Só que o macaco baixinho era um tigre nos
negócios, sabia ganhar dinheiro como ninguém. O ariano comprido era um ogro
nesse campo: sabia perder dinheiro como poucos, levava décadas demonstrando
isso.
Gládis, a subgerente, saboreou então a vitória
que sua intuição prodigiosa lhe fizera antever:
– Nesse caso, o senhor teve muita sorte, porque
foi atendido de imediato justo por nossa única especialista em Mercedes na
empresa. A Jennifer tem vários cursos e estágios de especialização. Aproveite o
privilégio, ela irá orientá-lo sobre todas as características técnicas e
mercadológicas dos cinco modelos que temos hoje em desembarque. Com licença.
E afastou-se, voltando a conversar com o senhor
Silva e Madame Silvá, a francesa, colocando-os a par da mais nova vitória do
baixinho sobre o compridão. E deixando este entregue irremediavelmente às mãos
da Rainha de Sabá.
Schlikmann falou, contrariado, para a esposa,
em alemão, para não ser atendido por aquela doméstica, aquela empregadosa metida a grande coisa:
– "Werde ich von dieser Schwarzen bedient
werden?
Jennifer sorriu satisfeita, entendendo agora
toda a extensão da armadilha preparada por Gládis para o imbecil. Ela havia
entendido perfeitamente o que ele dissera à esposa: Eu vou ter que ser atendido por essa negra?
Ah, ia ter sim! E como...
A bela negra deu alguns passos até sua mesa,
abriu uma gaveta e retirou uma coleção de folhetos promocionais e catálogos
técnicos, todos em inglês. Colocou-os sobre a ampla mesa à frente deles e
respondeu ao homem, com um semblante iluminado, sorridente e sereno. Respondeu em
ALEMÃO perfeito, escorreito, sem sotaque:
– Receio que, para poder adquirir um Mercedes
zero em nossa empresa, o senhor terá que se submeter ao incômodo de ser
atendido por mim pessoalmente. Acontece que eu sou a única especialista em
Mercedes aqui, com dois estágios de seis meses cada um na própria fábrica, em
Bremen e em Stuttgart, na Alemanha. De qualquer forma vai lhe compensar o
extremo sacrifício, porque eu vou, como lhe disse, fazer até o impossível para
ajudá-lo a fechar o melhor negócio. No caso, a melhor escolha.
E estendeu-lhe o primeiro folheto, com fotos e
gráficos coloridos deslumbrantes, em um primoroso caderno de oito páginas. Para
Schlikmann, totalmente inútil, tudo escrito naquela maldita língua dos
bastardos ingleses! E a jovem especialista começou a discorrer com
impressionante conhecimento sobre os detalhes técnicos do motor, sua evolução
ao longo dos últimos seis anos, os estágios da fabricação do mesmo, os
exaustivos testes de qualidade, para deixá-los adequados à ultra rígida norma
alemã. Depois passou a discorrer sobre os diversos tipos de câmbios automáticos
e por que razão cada um deles era usado em determinado modelo e, não, em outro.
Fez isso para cada um dos automóveis Mercedes
que tinham em estoque, o que custou ao alemão – que, afinal, não era alemão
coisíssima nenhuma, mas somente e no máximo neto de alemães – uma aula de mais
de 20 minutos, em que ele ouvia, arregalava os olhos, fazia um esforço imenso
para entender aquele alemão tão perfeito, pois o dele era de colono. E, nas
poucas vezes em que ousou falar, o fez em português, pois se sentia inseguro
com a pronúncia de certas palavras em alemão, além de ter um vocabulário muito
restrito, pouco mais do que o coloquial.
Indiferente a isso, toda vez que Schlikmann
dizia algo em português, numa evidente tentativa desesperada de fazer aquela
negra do demônio parar de falar em alemão, era neste idioma que ela respondia e
continuava sua dissertação técnica. Por fim, dando-se por satisfeita, Jennifer
pediu, finalmente em português, que o cliente fizesse enfim a sua escolha
soberana. A esta altura, o homem já estava todo confuso com tanto dado técnico,
tanta performance econômica, tanta tabela de desvalorização e depreciação, que
nem sabia mais o que queria. Resolveu passar o abacaxi para a esposa:
– Marion pode escolher, mulher tem instinto
para essas coisas, acaba escolhendo bem sem saber por que – Sabia que estava
dizendo uma grande besteira, mas o que fazer...
– Então eu quero o azulzinho. É a minha cor, é
o mais bonito – numa demonstração perfeita do tal “instinto para essas coisas”.
Mas ambos, nesse momento, foram interrompidos
por uma voz muito familiar:
– Ora, por que vocês não deixam a moça
escolher? Ela acabou de mostrar que entende de Mercedes mais do que o senhor,
do que eu e do que todos os homens de Amarante juntos, nunca vi uma coisa assim.
Moça, você é um prodígio! Qual é o seu nome?
– Jennifer Oliveira, para servi-lo, senhor.
– Muito prazer, senhorita. Eu sou Leon
Schlikmann. É uma honra conhecer uma mulher tão inteligente. E, como se não
bastasse, tão bonita.
– Encantada, senhor. Muito obrigada. É da
família do senhor Adolfo?
– É nosso filho, falou a surpresa e contrariada
Marion, ao ver que Leon estivera assistindo possivelmente a maior parte da
demonstração de conhecimento e perícia daquela africana surpreendente.
Contrariada por ver que um herdeiro dos Schlikmann, a nata da sociedade de
Amarante, tinha acabado de chamar uma negra de bonita!
Só então o velho Adolfo Schlikmann percebeu que
ele estava no centro de um amplo círculo de pessoas: os Silva – o tampinha, a
madame e a filha – um monte de gente, o próprio paulista dono da loja, um
japonês baixinho e gordão, e, o pior de tudo, seu próprio filho, que tinha
acabado de falar aquela barbaridade. Pelo jeito o pessoal foi passando por ali
e parando, ao ver aquela negra alta falando um alemão muito melhor que o dele,
por tanto tempo, e mostrando entender aquele despropósito de automóveis.
Humilhação maior do que aquela não poderia
ter-lhe acontecido nessa cidade. Imediatamente deu meia volta, dizendo:
– Bom. Você escolhe então. Você ou sua mãe,
tanto faz. Desde que eu troque meu carro hoje, está tudo certo. Você pode dar
um cheque seu, que eu faço a transferência depois.
Afastou-se rapidamente rumo ao
estacionamento. Sua úlcera mordia-o impiedosamente por dentro. Mas não se
dobrou nem gemeu até estar sentado dentro do carro. Nunca iria dar esse gosto
àquela gentinha! Por hoje já tivera o suficiente. Maldita negra! E não podia
esquecer o olhar de gozação daquela outra moça, aquela sim, branca e bonita,
que era a subgerente. Por que ela o havia olhado assim antes, muito antes que aquela humilhação toda tivesse acontecido com ele?
CONTINUA...