segunda-feira, 30 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 18   
MILTON MACIEL  

18 - SEGREDOS DE LARISSA E LEON 
Fim do cap. 16: "Adolfo Schlikmann Afastou-se rapidamente rumo ao estacionamento. Sua úlcera mordia-o impiedosamente por dentro. Mas não se dobrou nem gemeu até estar sentado dentro do carro. Nunca iria dar esse gosto àquela gentinha! Por hoje já tivera o suficiente. Maldita negra! E não podia esquecer o olhar de gozação daquela outra moça, aquela sim, branca e bonita, que era a subgerente. Por que ela o havia olhado assim antes, muito antes que aquela humilhação toda tivesse acontecido com ele?"

Com a saída de Adolfo, seguido imediatamente pela esposa Marion, sobrou para Leon escolher o automóvel novo do pai. Coerente com o que afirmara de público, ele pediu que Jennifer fizesse a escolha tecnicamente, sem considerar preços, Não precisava ser o mais caro, como sabia que o pai preferiria. Mas que fosse o melhor, segundo o discernimento abalizado de uma especialista.

Feliz da vida, Jennifer concluiu toda a tramitação. Começava bem naquela cidade: uma vitória de gala sobre um racista nojento e uma polpuda comissão logo no primeiro dia. Leon assinou os papeis e o cheque para o pagamento à vista.

De repente, uma surpresa:

– Parabéns, Leonzinho, estou orgulhosa de você – era Larissa que se abaixava sobre a cadeira e dava-lhe um beijo na face.

Se tivesse úlcera como o velho Adolfo, Celso Teles teria se dobrado como um contorcionista e dado um urro de leão nessa hora. Mas o leão vencedor era outro, era o Schlikmann.

– Oi, Larissa. Obrigado. Parabéns pelo carro? Não vale, porque esse é para o velho. Eu vou seguir com o meu Porsche usado, está mais do que bom.

– Não, seu bobo. Parabéns pela atitude! Pela maturidade, ao dizer que quem devia escolher o carro era a Jennifer. E também pelas coisas bonitas que você disse para ela. Eu adorei.

– Olha, pois eu adorei também. Adorei a moça, meu bem! Você me conhece, sabe como eu sou... Mas essa aí me deixou de queixo caído. Que cabeça! Que rosto,,, que...

Que bunda, seu tarado! – sussurrou, bem baixinho, uma sorridente Larissa, iniciando um diálogo em murmúrios – Ela é linda mesmo. Eu também acho. Mas o que eu gostei de ver, o melhor de tudo, foi como você enfrentou o seu pai com aquela frase. O velho ficou mais branco do que nunca, depois avermelhou de pura raiva.

– Ah, sim. E raiva pra ele quer dizer dor na úlcera, na mesma hora. É que o diabo do velho não demonstra, mais vai passar horas a fio, agora, abaixo de remédio. E vai me encher o saco amanhã. Hoje eu dou um jeito de voltar tarde para casa, só pro coroa não pegar no meu pé, o desgraçado dorme com as galinhas. Mas, em compensação, acorda com os galos e começa a encher todo mundo antes do café.

– E você? Se acertou com a Lúcia, a menina da churrascaria?

– Não, já estou em outra. Você me conhece...

– É, Leonzinho, você é único. Se não existisse, precisava ser inventado. Ainda bem, pra mim, que você existe na minha vida, desde que a gente era uns catatauzinhos.

– Pois é, eu já ando com saudade das nossas zoadas. Porque a gente não marca e sai pra fazer um amorzinho legal, sem ter mais que fazer essa coisa careta de reatar noivado, como os velhos estão sempre exigindo? Lá em casa já está um horror outra vez!

– Na minha casa também. Você não imagina a pressão do meu pai. Está insuportável. Eles falam que nós somos loucos, mas eles é que são os malucos, Leon. Botaram na cabeça que nós dois temos que casar de qualquer jeito, desde que a gente é criancinha. Só nunca se importaram com a vontade da gente.

– É, é como se a gente não contasse, fosse transparente, dois abobados, dois marionetes que eles puxam pelas cordas para onde querem. E olha que quase conseguiram fazer a gente casar, da última vez. Eu já tinha entregado os pontos, ia casar e depois pedia o divórcio. Pelo menos sossegava um pouco a ladainha e a encheção de saco de todos os dias, não acha? Mas ainda bem que você sempre foi firme, sempre deu um jeito de cortar o barato deles na hora mais perigosa.

– Mas você ajudava também, com as suas galinhagens, não é?

– Claro. Ajudava por que eu sou galinha e galinhava por que eu sabia que, entre nós, esse papo de compromisso, de noivado, era só da boca pra fora, era só um jeito da gente ludibriar os coroas. E, claro, de a gente poder transar à vontade, na boa, como a gente sempre fez, desde que você era molequinha.

– Ah, essa era a parte melhor, seu bobo. Muito legal. Também sinto falta. Acho que qualquer dia desses eu dou um alô e a gente dá uma voltinha discreta. Tem que ser uma rapidinha, muito escondida, senão esse povo todo já vem com a novela do “reataram o noivado, vão casar enfim”.

– Tá bom, vou esperar. Não esquece. E agora me diz, de onde é que saiu essa delícia africana?

Encerraram o diálogo de sussurros e Larissa não teve tempo de responder nada sobre Jennifer, porque padrinho Fúlvio fazia sinal para que ela fosse até ele.

Quando Larissa se aproximou, ele disse:

– Aproveitou para fazer o pedido pro Leon?

– Ué, que pedido? Ah, sim, é mesmo, o negócio do futebol! Obrigada padrinho, vou voltar e falar com ele agorinha mesmo. 

E o fez:

– Leonzinho, aquele seu timinho de futebol ainda joga alguma coisa? Topa um desafio de jogar por cinco mil reais?

E, antes que Leon perguntasse o que era aquilo, explicou rapidamente tudo o que ouvira de Celso Teles no domingo.

– Irado! O cara vai patrocinar um torneio num campo que ele vai inaugurar em Amarante! Que demais, gata! Você acha que a gente deve ir? Quer que eu vá com o time?

– Claro, seu bobo. Quero sim. Isto é, se você não estiver com medo de perder para os meninos dos times da várzea...

– Até parece! Então tá bom, pode dizer que a gente vai, eu garanto. Vou convocar o pessoal para treinar já amanhã no campinho do clube. Se bem que, pra ganhar do Bandeirantes e do Nacional, não precisa treino nenhum. Vamos tomar o dinheiro do homem na maior moleza. Vai ser divertido. Vamos sim, pode garantir. E você vai ser a baliza da nossa torcida, OK?

– Seu bobo! Tá, vou torcer por vocês. E vou falar pro padrinho, ele vai ficar feliz. Tchau.

Assim, naquele momento, com o comprometimento do dono do time, ficou selada a participação do Delfim Futebol Clube no inédito torneio da Teles Academia.

Que, por sinal, acabava de ser inaugurada, com os bons equipamentos e a indispensável presença do professor Nelson. A notícia correu como rastilho de pólvora pela cidade, sem necessidade sequer de um anúncio de jornal.

É que a grande, a tantalizante novidade que corria na frente era a existência, em breves dias, de DOIS campos de futebol em Amarante, que jamais tivera um único campo decente. Na esteira dessa grande novidade, corria a de que os campos pertenciam à nova academia da cidade, propriedade do mesmo empreendedor paulista, dono da maior loja de automóveis de Amarante. Então, se era do homem, daquele sujeito rico e com muita bala na agulha, só podia ser uma academia de rachar o cano! Imagine-se a surpresa – e satisfação – quando souberam que o paulista tinha comprado a academia do Nelson, mudando-a para o novo endereço da rua Tuiuti num único fim-de-semana! E que o próprio ex-dono continuava responsável pela parte técnica do negócio.

Isso suscitou uma nova onda de interesse pela atividade e um grande número de curiosos procurou a nova academia. A maior parte acabou se inscrevendo como aluno. Muitos antigos alunos retornaram e até mesmo as Celsetes de semanas atrás acabaram voltando quase todas.

Nelson sacudia a cabeça, aparvalhado. De repente, já na primeira semana, ele estava com mais do que o dobro de alunos que tinha quando do fechamento de sua anêmica academia. Tivesse esse número de alunos sempre e teria se dado bem em Amarante. Mas agradecia aos céus: Graças a Deus não tinha tido e isso lhe proporcionara a maravilhosa venda do negócio e a breve feliz mudança para Miami, expectativa que empolgava cada momento de sua nova vida.

Outra enorme novidade, esta já levada às páginas do jornal local, foi a bomba da semana também: A inauguração dos campos de futebol se daria no domingo 31, com um torneio triangular entre os três times oficiais de Amarante. E os campos eram dois por uma razão que deixou todos de queixo caído: o primeiro, o que seria usado no domingo para o torneio, seria o campo de futebol masculino. O outro, igualmente pronto, destinava-se ao futebol feminino! Então a cidade ficou sabendo que a Teles Academia seria também uma escola de futebol para meninos e meninas, “dos 4 aos 80 anos”.

Mas isso não era tudo e a novidade mais explosiva foi reservada para depois do fim do torneio, quando Celso faria seu novo e inacreditável anúncio.

CONTINUA

sábado, 28 de novembro de 2015



LUA  OCULTA – 17   
MILTON MACIEL  

17 - ADOLFO SCHLIKMANN
Fim do cap. 16: "Gládis fez sinal com a cabeça que sim, não queria que a mulher entrasse naquele assunto e fosse ficar contando papagaiadas horas a fio. O marido dela comentou:

– Filha minha e mulher minha não precisam trabalhar fora. Não precisam, nem eu deixo. Vão precisar de três gerações para gastar todo o meu dinheiro, essas dondocas."


Madame Silvá fez que sim, orgulhosa. Gládis sorriu, gentil. E feliz, porque imaginou que estava dando uma tremenda joelhada no saco daquele baixinho petulante. Macaco imbecil! Pobre da sua Fofinha, crescendo nas mãos daquele orangotango e daquela mula! Ah, mas ela ia dar um jeito nisso, ou não se chamava Gládis de Rios...

Estavam estabelecendo as primeiras negociações, envolvendo o Mercedes mais caro da empresa, quando viram entrar os Schlikmann. Gládis sorriu, pensando:

Bem que esses dois imbecis podiam sair no braço, como aqueles outros idiotas há pouco, lá fora. Ah, que pena que ela não podia mais ofertar o mesmo carro para aquele alemão alto e antipático, só pra ver aqueles dois ascos se pegarem a tapa. Que vomitórios, os dois!

Aí teve um lampejo e fez sinal para Jennifer, que estava entrando na loja naquele momento, para que ela atendesse Adolfo Schlikmann. Lamentou pela colega, mas precisava ver se aconteceria o que estava imaginando.

Jennifer, a vendedora que chegara horas atrás de Ribeirão Preto, junto com sua colega Paula, não era loira, nem morena, nem mulata. Jennifer era  NEGRA! Sua pele brilhava naturalmente, com um preto retinto quase azulado, lindo de se ver. E, como todas na equipe de Celso Teles, era uma mulher de uma beleza impressionante. Traços africanos característicos, uma boca carnuda que era puro rasgo de sensualidade, alta de um porte altivo e elegante, uma bunda cinematográfica, a maior da equipe. O torneado das pernas era também uma coisa de cinema. Tudo nela inspirava classe e superioridade natural, sem qualquer pose ou afetação. Carmen De Rios gostava de chamá-la “minha Rainha Negra”, “Rainha de Sabá sem Salomäo”, “Deusa da África”.

Até porque, muito mais do que isso, Jennifer tinha algo que a fazia a favorita total de sua chefe: Jennifer era uma mulher muito culta. Formada e pós-graduada em Letras, tinha sido antes professora de inglês em escolas secundárias e depois professora universitária em Ribeirão, especializada em literatura portuguesa de Portugal e das ex-colônias. Trabalhava, nas horas vagas, como tradutora e escrevia contos, que esperava poder publicar um dia, quando achasse que atingira a maturidade que visava.

Mesmo assim, os seus proventos eram muito limitados. Só soube o que foi ganhar dinheiro de verdade quando, a instâncias e insistências de Carmen, começou a trabalhar na Teles Automóveis de Ribeirão Preto, como vendedora.

Em pouco tempo, uma espécie de Miss Simpatia nata e uma incontestável Rainha Africana, tornou-se, também ela, uma das campeãs de vendas. Naturalmente, de vez em quando enfrentava problemas com racistas. Era o que Gládis queria testar agora.

Quando aquela negra alta e elegante foi atendê-lo, Schlikmann fechou ainda mais a cara, já de normal tão amarrada que parecia enxovalhada. Era um homem muito alto, com um metro e oitenta e cinco, magro, com uma face de cera muito enrugada. De idade, andava na casa dos setenta e cinco anos. O cabelo era curto e ralo, totalmente branco, mantido no corte escovinha típico dos militares, o que ele nunca tinha sido Por incrível que pudesse parecer, não precisava usar óculos. Seus olhos azuis acinzentados, frios e penetrantes, eram, por isso mesmo, a parte mais destacada no todo do seu rosto.

Seu porte mostrava um homem levemente encurvado para a frente, mas que tinha um passo estugado e rígido. E andava sempre olhando para a frente e um pouco para cima, o que lhe dava uma aparência de arrogância que, a bem da verdade, nada tinha de aparente, porque era mais do que real. Era tido por todos, de uma forma generalizada, como um homem muito antipático e orgulhoso.

O orgulho provinha, obviamente, de sua posição de chefe da família mais importante do lugar, descendente direto dos primeiros Schlikmann, alemães fundadores da cidade, junto com os italianos da Calábria, os Piacenzi. Mas estes tinham entrado em declínio e só a estirpe dos alemães sobrevivera ao duro passar do tempo, tornando-se estes alemães cada vez mais ricos e poderosos. A curva ascendente da riqueza da família durou até seu pai, o velho Heinz, o primeiro a perder dinheiro e começar a liquidar patrimônio na família. Colaborou para isso o alcoolismo. E, também, seu vício de jogo, que o levava a viajar constantemente para a Europa, em busca dos grandes cassinos, como o de Monte Carlo, onde perdeu boa parte do patrimônio da família.

Quando o velho Heinz se foi, consequência de uma bala de 38 que teve por bem guardar dentro de sua própria cabeça, o jovem Adolfo exultou de felicidade. Estava, a um só tempo, livre daquele maldito estrupício detestável e passava, instantânea e inesperadamente, a poder dispor de toda a fortuna restante da família.  Dispor em termos, porque havia aquela idiota da sua irmã Helga, que fizera a estupidez de engravidar de um brasileiro comum, pobre e sem profissão definida, um mero vendedor de loja de sapatos; um reles Souza, desses que caem aos milhares cada vez que se chuta uma árvore no Brasil. E, pior, casado!

Fiel seguidor dos velhos métodos, a que recorrera muitas vezes no passado, Heinz Schlikmann , quando soube da gravidez da filha, mandou buscar um dos seus homens de confiança na fazenda de Lages e encomendou-lhe o passamento do infeliz balconista. Mas, na última hora viu-se obrigado a mudar o alvo das balas do pistoleiro.

Depois de dar várias surras violentíssimas na filha grávida, sempre tomando o cuidado de chutar-lhe a barriga diversas vezes, o alemão compreendeu que não havia jeito de convencer aquela cabeça dura a abortar a criança, a óbvia solução para o problema. A filha, estúpida e sentimental, defeito recorrente de todas as mulheres para ele, obstinava-se em ter o filho. Foi então que Heinz capitulou e resolveu casar a filha com aquele maldito balconista. Mas como o bastardo já era casado, mandou o pistoleiro matar a mulher dele e consagrou-o viúvo.

O casamento foi feito às pressas, dois meses depois apenas, que a barriga da filha não permitia mais delongas. Foi feito na discreta capelinha da fazenda de Lages, onde a filha e o desgraçado do genro foram obrigados a ficar pelos próximos dois anos, sem ousar aparecer em Amarante com aquela criança de má semente, um Souza – semente maldita que o velho Heinz suspeitava que tivesse um pé na África, nódoa a conspurcar a sangue ariano puro dos Schlikmann.

Ainda estavam lá quando o velho Heinz, durante um porre fenomenal, teve a abençoada ideia de acabar com a própria vida. Aberto o testamento, soube-se que todos os bens haviam ficado para o filho Adolfo, com exceção da fazenda de Lages, único bem deixado à ingrata da filha mais velha. Adolfo não se conformou, eram mais de 600 hectares de pasto de primeira qualidade, com várias centenas de bois na engorda. Valia muito dinheiro e era o único bem do espólio que tinha liquidez garantida, bastaria um único anúncio e seria vendida de um dia para o outro.

Por isso, dois meses depois da morte de Heinz Schlikmann, a desgraça voltou a se abater sobre aquela família infeliz. A fazenda foi assaltada por um bando de ladrões de gado, em plena madrugada. E os desalmados, não satisfeitos em sumirem com mais de 150 cabeças de gado gordo, ainda entraram na casa e promoveram uma chacina, matando a irmã, o cunhado e o sobrinho de Adolfo Schlikmann, de um ano e meio apenas. E também a velha empregada que dormia na casa com os patrões.

Foi um dos crimes mais bárbaros cometidos no município e um dos poucos que ficou sem solução, face à extrema lentidão do processo investigativo, que parecia contar com toda a má vontade da autoridade policial local.

Pouco depois da perda irreparável dos parentes, um inconsolável Adolfo apresentou ao advogado inventariante uma via do testamento do velho Heinz, em que só ele figurava como herdeiro único de todos os bens, a fazenda de Lages, inclusive. O patriarca, desiludido e magoado com o comportamento mesquinho da filha, vergonha da família, a deserdava nesse mesmo documento. Mas, coração de ouro, permitira-lhe ficar morando na fazenda dele, com dó do netinho, criança inocente que não tinha culpa de nada.

Presente ao ato, para garantir a autenticidade do documento, o Doutor Alcebíades Moro, dono do tabelionato de Blumenau onde o testamento fora lavrado (e relavrado em sigilo, no melhor estilo dos velhos caxixes nordestinos, ao módico custo de mais cem cabeças de gado gordo de Lages).

Assim, tudo esclarecido, legalizado e perfeito, Adolfo Schlikmann passou nos cobres a malfada fazenda, onde, afirmara antes, jamais voltaria a botar os pés, face à maldição que ela representava para a família, face às lembranças dolorosas de sua saudosa irmã.

Com o dinheiro apurado, Adolfo Schlikmann pôde manter-se muitos anos sem precisar se preocupar com aplicações ou rendimentos financeiros, área em que, reconhecidamente, não tinha nem competência, nem sorte. Competência e sorte que continuaram madrastas ao longo da vida do rico herdeiro, que foi torrando aos pouco os outros imóveis do espólio, ao ponto de tê-lo, agora, reduzido a duas casas e um único galpão industrial, responsáveis pela bem mais minguada renda com que podia contar no presente. Esses imóveis ele não poderia vender – talvez ainda precisasse vender uma das casas – pois acabaria ficando com uma renda menor do que suas largas despesas.

É claro que trabalhar ele nunca tinha trabalhado, era uma coisa indigna de um Schlikmann, de um nobre da linhagem dos fundadores. E ele se horrorizava só em pensar que poderia ter uma empresa, que, obrigatoriamente, por causa de sua importância, teria que ser muito grande. Ou seja, teria que ter preocupações infinitas, dor de cabeça atrás de dor de cabeça, como têm os empresários. Que vida iria ter? A de um Valdemar Silva, que, para ser o homem mais rico de Amarante, tinha que se esfalfar no trabalho dia e noite, como ou mais do que o mais ínfimo dos seus peões ou caminhoneiros, sem tempo para poder gozar a vida, ir à Europa comprar boas roupas, fazer safáris na África, ir a New York ou passar férias (do que?) no Taiti?

Quando a Rainha Negra se aproximou e o recebeu com um gentil discurso, o velho Adolfo respondeu incisivamente.

– Boa tarde, senhor. Boa tarde, senhora. Sua preferência pela Teles Automóveis nos deixa muito satisfeitos e orgulhosos. Eu sou a atendente Jennifer, uma consultora de vendas especializada, à sua inteira disposição. Diga o que gostaria de ver e nós faremos até o impossível para satisfazê-lo.

Ríspido e seco, Schlikmann falou:

– Vá chamar sua patroa, prefiro falar direto com ela.

Mais direto impossível. Mais racista e ofensivo também. Até mesmo para a experiente e tranquila Jennifer o direto na boca do estômago pesou, deixou-a sem fala na hora. O velho a chamá-la de empregada doméstica simplesmente, para colocá-la no seu lugar, segundo o conceito dele. Humilhava e já colocava as coisas como tinham que ser, estabelecia a hierarquia e a distância.

Gládis não desgrudara um só instante a sua atenção da cena ao seu lado, enquanto conversava socialmente amenidades com o casal Silva. A venda já estava lavrada, assinada e paga, com o Mercedes mais caro de toda a linha de importados solidamente garantido nas mãos do homem mais rico de Amarante. Gládis sorriu e pediu licença ao casal por um momento.

Dirigindo-se ao cliente importante de Jennifer, o mais importante de Amarante, uma espécie de rainha da Inglaterra do lugar, disse-lhe gentilmente:

– Boa tarde, senhores. Eu sou Gládis de Rios, subgerente da loja e chefe imediata de nossa Jennifer aqui. Em que poderia servi-los?

O velho dragão abriu um sorriso de satisfação e, vitorioso, usufruindo o prazer de ter pisado na cabeça daquela negra insolente, metida a sebo, respondeu:

– Eu quero um carro alemão como eu, um Mercedes, o melhor e mais caro que vocês tiverem por aqui.

– Senhor Schlikmann, nesse caso devo lhe dizer que temo que o simpático freguês que acabo de atender, o Sr. Valdemar Silva ali, já tenha feito exatamente essa mesma escolha, no automóvel CLK que acabo de faturar para ele. Mas ainda temos vários outros veículos Mercedes, todos zero quilômetro, certamente o senhor poderá encontrar uma outra excelente opção.

O alemão cerrou o cenho, mas depois voltou a sorrir. Sim, o que poderia esperar, se o troglodita do caminhoneiro chegara antes dele? Por um lado, até era bom, assim não seria obrigado a gastar tanto com o carro mais caro da loja, podia economizar ficando com o segundo da tabela de preços. O modelo e as características não tinham assim tanta importância, desde que, depois de Valdemar Silva, ninguém pudesse desfilar com um carro tão caro quanto ele em Amarante. Existia, na prática, uma espécie de acordo tácito na cidade, quando se tratava de avaliar os seus dois homens mais importantes: Silva era o mais rico, Schlikmann o mais nobre. Silva era um macaco nanico e sem classe, um reles caminhoneiro que subira às custas de muito trambique e tenebrosas transações. Schlikmann era um ariano puro e altíssimo, que já nascera por cima. Silva era um ignorante. Schlikmann também: apesar de toda a pose, também não tivera estudo algum. Só que o macaco baixinho era um tigre nos negócios, sabia ganhar dinheiro como ninguém. O ariano comprido era um ogro nesse campo: sabia perder dinheiro como poucos, levava décadas demonstrando isso.

Gládis, a subgerente, saboreou então a vitória que sua intuição prodigiosa lhe fizera antever:

– Nesse caso, o senhor teve muita sorte, porque foi atendido de imediato justo por nossa única especialista em Mercedes na empresa. A Jennifer tem vários cursos e estágios de especialização. Aproveite o privilégio, ela irá orientá-lo sobre todas as características técnicas e mercadológicas dos cinco modelos que temos hoje em desembarque. Com licença.

E afastou-se, voltando a conversar com o senhor Silva e Madame Silvá, a francesa, colocando-os a par da mais nova vitória do baixinho sobre o compridão. E deixando este entregue irremediavelmente às mãos da Rainha de Sabá.

Schlikmann falou, contrariado, para a esposa, em alemão, para não ser atendido por aquela doméstica, aquela empregadosa  metida a grande coisa:

– "Werde ich von dieser Schwarzen bedient werden?

Jennifer sorriu satisfeita, entendendo agora toda a extensão da armadilha preparada por Gládis para o imbecil. Ela havia entendido perfeitamente o que ele dissera à esposa: Eu vou ter que ser atendido por essa negra?

Ah, ia ter sim! E como...

A bela negra deu alguns passos até sua mesa, abriu uma gaveta e retirou uma coleção de folhetos promocionais e catálogos técnicos, todos em inglês. Colocou-os sobre a ampla mesa à frente deles e respondeu ao homem, com um semblante iluminado, sorridente e sereno. Respondeu em ALEMÃO perfeito, escorreito, sem sotaque:

– Receio que, para poder adquirir um Mercedes zero em nossa empresa, o senhor terá que se submeter ao incômodo de ser atendido por mim pessoalmente. Acontece que eu sou a única especialista em Mercedes aqui, com dois estágios de seis meses cada um na própria fábrica, em Bremen e em Stuttgart, na Alemanha. De qualquer forma vai lhe compensar o extremo sacrifício, porque eu vou, como lhe disse, fazer até o impossível para ajudá-lo a fechar o melhor negócio. No caso, a melhor escolha.

E estendeu-lhe o primeiro folheto, com fotos e gráficos coloridos deslumbrantes, em um primoroso caderno de oito páginas. Para Schlikmann, totalmente inútil, tudo escrito naquela maldita língua dos bastardos ingleses! E a jovem especialista começou a discorrer com impressionante conhecimento sobre os detalhes técnicos do motor, sua evolução ao longo dos últimos seis anos, os estágios da fabricação do mesmo, os exaustivos testes de qualidade, para deixá-los adequados à ultra rígida norma alemã. Depois passou a discorrer sobre os diversos tipos de câmbios automáticos e por que razão cada um deles era usado em determinado modelo e, não, em outro.

Fez isso para cada um dos automóveis Mercedes que tinham em estoque, o que custou ao alemão – que, afinal, não era alemão coisíssima nenhuma, mas somente e no máximo neto de alemães – uma aula de mais de 20 minutos, em que ele ouvia, arregalava os olhos, fazia um esforço imenso para entender aquele alemão tão perfeito, pois o dele era de colono. E, nas poucas vezes em que ousou falar, o fez em português, pois se sentia inseguro com a pronúncia de certas palavras em alemão, além de ter um vocabulário muito restrito, pouco mais do que o coloquial.

Indiferente a isso, toda vez que Schlikmann dizia algo em português, numa evidente tentativa desesperada de fazer aquela negra do demônio parar de falar em alemão, era neste idioma que ela respondia e continuava sua dissertação técnica. Por fim, dando-se por satisfeita, Jennifer pediu, finalmente em português, que o cliente fizesse enfim a sua escolha soberana. A esta altura, o homem já estava todo confuso com tanto dado técnico, tanta performance econômica, tanta tabela de desvalorização e depreciação, que nem sabia mais o que queria. Resolveu passar o abacaxi para a esposa:

– Marion pode escolher, mulher tem instinto para essas coisas, acaba escolhendo bem sem saber por que – Sabia que estava dizendo uma grande besteira, mas o que fazer...

– Então eu quero o azulzinho. É a minha cor, é o mais bonito – numa demonstração perfeita do tal “instinto para essas coisas”.

Mas ambos, nesse momento, foram interrompidos por uma voz muito familiar:

– Ora, por que vocês não deixam a moça escolher? Ela acabou de mostrar que entende de Mercedes mais do que o senhor, do que eu e do que todos os homens de Amarante juntos, nunca vi uma coisa assim. Moça, você é um prodígio! Qual é o seu nome?

– Jennifer Oliveira, para servi-lo, senhor.

– Muito prazer, senhorita. Eu sou Leon Schlikmann. É uma honra conhecer uma mulher tão inteligente. E, como se não bastasse, tão bonita.

– Encantada, senhor. Muito obrigada. É da família do senhor Adolfo?

– É nosso filho, falou a surpresa e contrariada Marion, ao ver que Leon estivera assistindo possivelmente a maior parte da demonstração de conhecimento e perícia daquela africana surpreendente. Contrariada por ver que um herdeiro dos Schlikmann, a nata da sociedade de Amarante, tinha acabado de chamar uma negra de bonita!

Só então o velho Adolfo Schlikmann percebeu que ele estava no centro de um amplo círculo de pessoas: os Silva – o tampinha, a madame e a filha – um monte de gente, o próprio paulista dono da loja, um japonês baixinho e gordão, e, o pior de tudo, seu próprio filho, que tinha acabado de falar aquela barbaridade. Pelo jeito o pessoal foi passando por ali e parando, ao ver aquela negra alta falando um alemão muito melhor que o dele, por tanto tempo, e mostrando entender aquele despropósito de automóveis.

Humilhação maior do que aquela não poderia ter-lhe acontecido nessa cidade. Imediatamente deu meia volta, dizendo:

– Bom. Você escolhe então. Você ou sua mãe, tanto faz. Desde que eu troque meu carro hoje, está tudo certo. Você pode dar um cheque seu, que eu faço a transferência depois.


Afastou-se rapidamente rumo ao estacionamento. Sua úlcera mordia-o impiedosamente por dentro. Mas não se dobrou nem gemeu até estar sentado dentro do carro. Nunca iria dar esse gosto àquela gentinha! Por hoje já tivera o suficiente. Maldita negra! E não podia esquecer o olhar de gozação daquela outra moça, aquela sim, branca e bonita, que era a subgerente. Por que ela o havia olhado assim antes, muito antes que aquela humilhação toda tivesse acontecido com ele?

CONTINUA...

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 16   
MILTON MACIEL  

16 - A ÚLTIMA SEMANA DO MÊS!
Fim do cap. 15: "– Rondelli acabou de tranquilizar sua menina, que foi para casa com gosto de quero mais: Que pena que o chefe tinha ido embora assim, de repente. Não tinha conversado nada legal com ela. E era tão bom conversar com ele!" 

Naquela semana que se seguiu, a última de Outubro, coisas importantes demais aconteceram: Na terça-feira, chegaram as seis carretas com os 84 automóveis novos e seminovos, que vieram de Ribeirão Preto. No mesmo dia, às duas da tarde, chegaram as vendedoras Paula e Jennifer, que eram mais duas jovens e belas mulheres do esquadrão fatal de Celso Teles.

A passagem daquele desfile de enormes caminhões-cegonha foi o grande acontecimento da cidade por vários dias. Nunca os habitantes tinham visto tantos carros de alta qualidade, todos como zero quilômetro, juntos. De propósito, Celso havia ordenado um trajeto em que eles passariam por vários pontos vitais da cidade, além da zona central. Depois os veículos ocuparam as ruas que definiam a grande praça em frente à Revendedora e ali permaneceram tranquilos, expostos à intensa visitação pública. Mais propaganda do que isso era desnecessário!

Até os Schlikmann, todos os três, vieram contemplar aquelas jóias raras da Teles Automóveis. Os Silva também, capitaneados por Madame Silvá, que foi arrancar o velho Valdemar de sua transportadora e o trouxe a pulso para ver aquele mundão de automóveis, a maior parte dos quais ninguém tinha igual em Amarante.

Antes mesmo que a Revenda fosse inaugurada, as moças de Celso Teles tiveram que atender a dezenas de interessados. As pessoas cercavam as carretas e esperavam pelo desembarque e acomodação de cada veículo no enorme pátio interno, onde eles seriam lavados e polidos, antes de poderem entrar para os amplos salões de exposição internos. Muitos acompanhavam um determinado carro já gritando para os outros:

– Esse é meu. Ninguém tasca, eu vi primeiro.

Nessa batida, a primeira encrenca já surgiu antes de meia hora. Neco Palhares e Jonas Miúdo, ambos sócios destacados do Clube dos Imigrantes, foram às vias de fato por causa de um Audi zero quilômetro. O “ninguém tasca, eu vi primeiro” não valeu para Neco Palhares, em que pese Jonas Miúdo ter acompanhado o Audi desde a descida da carreta e estar com os braços envolvendo o capô empoeirado, o paletó branco completamente em miséria ante o abraço carinhoso ao veículo. Mas Neco Palhares discordou:

– Que besteira é essa, Miúdo? Por que o carro tem que ser seu? Eu também quero. E estou disposto até a pagar um ágio sobre o preço dele. E garanto que levo, duvido que você tenha poder de fogo pra cobrir minha oferta.

Imediatamente o pau degenerou. Aquilo tinha passado de uma simples disputa por um automóvel para o campo da ofensa pessoal: O desgraçado está me chamando de pobre!

E sentou um murro na cara de Palhares na mesma hora, Mas, como o apelido já dizia, Jonas era mesmo miúdo, de forma que o soco atingiu foi o peito gordo do súbito desafeto. Que revidou na mesma hora também, atingindo a cabeça desguarnecida do baixinho. A turma do deixa disso entrou imediatamente em ação, segurando os dois contendores, que ficaram se xingando e colocando os podres pra fora, um do outro:

– Rolha de poço! Mastodonte!

– Baixinho corno.

– Viado!

– Filho da puta!

Foram a avisar Celso do tumulto lá fora. Ele estava com Fúlvio Rondelli e ambos saíram correndo para a frente da loja. Ante a baixaria, Celso foi rápido e rasteiro:

– Podem parar, senhores, a causa é perdida. Infelizmente para vocês este  carro já está vendido.

– Como?? Pra quem? – berraram em uníssono os dois brigões, interrompendo os tapas.

– Para meu amigo e colega Fúlvio Rondelli, é claro.

Fúlvio levou um susto, Mas entendeu logo qual era a jogada do patrão e entrou na dança convicto:

– Isso mesmo, estou esperando há dois meses por esse carro.

– Mas... você? Ué, de onde tirou dinheiro pra isso? Você sempre foi um durango, que eu sei.

– Engano seu, meu amigo – atalhou Celso Teles – Sempre, não. Agora ele tem outra condição, é o maior salário da empresa. Mas, independente disso, uma parte do valor do carro faz parte dos nossos acertos para a compra da oficina dele.

Os dois ex-brigões murcharam. Olharam atônitos um para o outro, tinham feito papel de trouxas, brigado por nada afinal. Aquele maldito italiano durango é que ia curtir com a cara deles. E o resto do pessoal ali presente também, que já apontavam para ambos e se dobravam de rir. Inclusive Celso Teles, fazendo um enorme esforço para parecer discreto.

A esta altura a  experiente Carmen tinha chegado apressada, para saber o que tinha acontecido, o que tinha feito o chefe e o mecânico saírem correndo da loja. Uma refinada vendedora e resolvedora de conflitos nata, tomou a iniciativa de imediato:

– Ah, mas que pena, ver dois amigos se desentendendo por tão pouco. Se eu soubesse disso, se eu estivesse aqui, teria evitado tudo isso.

– Mas como, moça? – arriscou um impressionadíssimo Jonas Miúdo, que não conseguia tirar os olhos daquela boca carnuda da espanhola.

– Ora, os senhores discutindo por um Audi quando eu tenho uma carreta inteirinha só de Mercedes importados, alemães legítimos,  para descarregar, aquela última da fila.Aqueles sim são carros para quem pode, para quem tem uma posição social de elite, como os senhores dois. Venham comigo.

E dirigiu-se para a última carreta, arrancando um aplauso discreto de Celso Teles, que ficou com Fúlvio Rondelli por ali. Todos os outros espectadores do pugilato correram juntos, atrás de Carmen e dos lutadores. Queriam ver os Mercedes, deviam ser um luxo só. Mas tinham a secreta esperança de que a briga recomeçasse, com os dois, outra vez, se embeiçando pelo mesmo automóvel.

Mas isso não aconteceu. Neco Palhares logo voltou, desiludido. Para ele, automóvel era Audi e fim de papo. Ou era um Audi, ou era nada. Falou isso para Celso, que prontamente sugeriu:

– Por que o senhor não procura se entender com o Rondelli aqui. Ele recebeu o carro pelo preço de lista, o preço FIPE. Mas, se receber um bom ágio por fora, quem sabe...

Rondelli arregalou os olhos. Que jogada do chefe, aquilo era uma águia!

Neco Palhares, animadíssimo de novo, foi direto ao ponto, sem perder tempo, aproveitando enquanto o desgraçado do tampinha não voltava e não se metia de novo no negócio dele:

– Eu posso dar dez mil hoje mesmo. É um excelente ágio.

– Só?! – estranhou Celso, com cara de incrédulo.

– Só?... estranhou Palhares que Celso estranhasse.

– Bem, é que me disseram que o senhor é um dos homens mais ricos, dos mais respeitados desta cidade, por isso.

Atingido em seu orgulho, golpe certeiro encestado pelo paulista, Palhares aumentou a oferta:

– Doze mil.

Mas Celso tinha feito sinal para Fúlvio não aceitar por enquanto. Então o mecânico falou, com ar de enfado:

– Não, não me interessa. Por essa merreca eu não deixar de ter o prazer de desfilar por Amarante com o meu Audi Zero.

Neco imaginou a humilhação pela qual passaria, aquele pé-de-chinelo desfilando com o carro que ele tinha chegado a disputar a socos. Viu-se ridicularizado, os outros sócios do clube gozando com cara dele, o italiano contando para todos sobre a oferta de um ágio que só um pobre ofereceria. Começou a entrar em pânico:

– Vinte mil! Vinte mil e não se fala mais nisso!

Agora Celso fez sinal de positivo para Fúlvio. Este deu-se por vencido:

– Está certo, Doutor Neco, eu me rendo – pelo menos estava promovendo o trouxa do Neco Palhares a doutor, como gostava de fazer.

Saíram dali para dentro da loja, para lavrarem os documentos e nota fiscal de venda à vista. Antes, Neco Palhares preencheu e entregou a Rondelli um cheque de vinte mil reais, ao portador. Era a primeira venda da loja ainda não inaugurada de Celso Teles em Amarante. Era necessário que as normas fossem respeitadas. Uma vendedora devia fazer todo o processo e embolsar a respectiva comissão. Celso hesitou um pouco, mas viu, por trás de Rondelli, que Gládis apontava discretamente para Larissa.

Bingo, sua espanholita esperta e generosa como sempre! Chamou Fúlvio e Gládis de lado e confabulou rapidamente com eles. Então fez sinal para que Larissa se aproximasse:

– Sua colega Gládis, a subgerente da loja, que decide sempre que a gerente, Carmen, não está presente, acaba de indicar você para fechar este processo de venda, Larissa. Por favor, assuma o controle com o senhor Neco Palhares, Seu padrinho e a própria Gládis vão ajudá-la com os documentos, não é nenhum bicho de sete cabeças.

E afastou-se logo, para deixar a boquiaberta Larissa à vontade para desempenhar seu primeiro papel de vendedora. Voltou-se de longe, já à porta do seu escritório, a tempo de ver Larissa, com os olhos molhados, apertando as duas mãos de Gládis entre as suas. Já sabia o que ela estaria dizendo, sem  sombra de dúvida:

– Deus lhe pague!

Ah, como era bom ter Larissa ali na loja e na oficina. Como seria miserável uma vida sem ela ao alcance dos olhos e dos sonhos!

Minutos depois Rondelli apareceu triunfante, com um sorriso de Papai Noel, comentando:

– Sucesso total, doutor. O homem já pagou o carro e minha afilhada fez toda a tramitação, seguindo a orientação da espanholita filha. Que garota de ouro essa sua, patrão!

– Sim Rondelli, todo o meu povo é assim, só gente de muito, muito valor. Gládis poderia ter escolhido a ela mesmo, sua mãe ou Paula ou Jennifer. Mas, como você viu, pensou primeiro em Larissa. Por essa e por outras é que eu faço qualquer coisa por essa menina, o que ela quiser e precisar.

Rondelli lembrou-se do cheque e o entregou a Celso:

– Olha aí, doutor, o cheque, o ágio, os vinte mil mais moleza que o senhor já ganhou.

– Que eu ganhei, Rondelli?! Você pirou? O homem pagou o ágio para você, o Audi era seu.

– Mas como, doutor? Aquilo era só figuração, para enganar aquele idiota do Neco.

– Engano seu, Rondelli. Não era nem figuração, nem para enganar. Era uma forma de punir aquele pavão. E de fazer ele dar uma grana bem razoável para você.

– Para mim?! Mas o senhor vai ter um prejuízo enorme!

– Deixe de dizer besteira Rondelli, eu não vou ter prejuízo algum. Acabei de vender o carro pelo preço certo, de tabela, fico com o lucro normal, depois de descontados os custos e a comissão da vendedora Larissa, inclusive.

E entregou o cheque de volta a Fúlvio.

Que levantou da cadeira de um salto, deu um abraço no chefe, murmurou um muito obrigado carregado de emoção e correu para mostrar o cheque para sua menina. Ah, ela precisava ver aquilo. Não pelo valor do cheque em si, altíssimo, mas pelo valor imensamente maior da ação daquele homem incomparável.

Estava fazendo isso, emocionados os dois, quando Fúlvio olhou para fora e falou rápido:

– Xi, seu pais estão chegando, estão vindo para a loja. Vamos correr para a oficina, tire esse casaquinho azul de uniforme das vendedora de Teles. É certo que eles vão querer ver você na oficina comigo, é só uma questão de tempo. Vamos embora, vamos botar um montão de peças nas bancadas e no chão, aí você brinca de classificar. Vamos. Rápido.

Valdemar Silva ficou um bom tempo do lado de fora, apreciando os automóveis que ainda estavam nas carretas e os que estavam sendo descarregados. Aí viu que havia um grande número de carros já estacionados no patio interno, alguns sendo lavados. E comentou com a esposa, Madame Silvá:

– Esse rapaz parece louco. Onde ele espera vender todos estes carros de luxo? Aqui em Amarante? Ora, aqui, com muita sorte, vende no máximo uns vinte. E bem devagar. Preciso dar uns conselhos para esse moço.

– Mas vamos entrar logo, marido. Vamos, antes que apareça compadre Schlikmann e compre o carro mais caro da loja. Esse carro tem que ser nosso, Grand Dieu!

– Criatura, para de falar comigo nesse idioma arrevesado! Já lhe disse que eu não suporto essa sua exibição. Comigo não, violão.

– Ah, marido, sabe como é, passei tanto tempo em Paris, a gente se acostuma como a língua, os costumes, o caviar, as baguetes, os...

– Você passou dois meses em Paris, criatura! Só dois meses. E quer que eu acredite que virou francesa. Pra cima de mim, não.

– Ah, mas você não compreende. É como se eu tivesse voltado pra casa. Não importa o tempo que fiquei lá, tenho certeza que vivi em Paris na minha encarnação anterior. Eu me sinto completamente francesa.

– Tá bom. Mas na minha frente não, senão eu vou ter que falar pra todo mundo, lembrar você inclusive, que você é só uma colona italiana da Linha Mangelli, uma menina da roça analfabeta e bonitinha que eu achei um dia por ali.

Madame Silvá fechou-se em copas. Não adiantava, aquele seu marido era um grosso, não tinha finesse, nunca teria la grande éducation, nunca seria um Monsieur Silvá. Tinha sido, continuava sendo, seria para sempre só um caminhoneiro bronco e mal educado. Mas, pelo menos, ficava mais rico a cada ano, e isso deculpava todo o resto.

Ela era a grande Madame Silvá, a mulher mais rica da cidade. E era também a mãe da mulher mais bonita de Amarante. Tinha motivos de sobra para se orgulhar. E para exigir que aquela gentalha toda lhe devesse render tributo.

Estava ali para obrigar aquele mão-de-vaca a comprar o carro importado mais caro daquela firma nova. O mais caro, não importava a marca, desde que fosse novo, zero quilômetro, é claro. Por isso tinha pressa, queria resolver isso logo, antes que Adolfo Schlikmann chegasse com a mesma ideia. E queria fazer o marido trocar o carro da filha. Afinal, Larissa já tinha aquele SUV há mais de dois anos e não ficava bem, para gente como eles, que vissem a filha andando sempre no mesmo carro, como se eles fossem uma gentinha qualquer.

E também estava na hora de mostrar para aquele moço de São Paulo, que parecia tão rico, quem eram as pessoas mais ricas do lugar. Ele que botasse a viola no saco e aprendesse a respeitar os Silvá!

Assim que entraram, foram recepcionados por uma jovem de incrível beleza e maior simpatia, que se identificou com o nome de Gládis. Ela perguntou se eles eram os pais da jovem Larissa e, recebendo resposta positiva, derramou-se a fazer elogios à beleza e à finesse da moça. Ao pronunciar a palavra francesa, ganhou de imediato a simpatia de Madame Silvá. Sim, sua filha tinha muita, muita finesse.  Assim como ela mesmo, sua mãe. Era uma questão de berço. Na certa, também ela havia vivido na França na encarnação anterior.

– A filha de vocês é uma moça notável. Além de ser a mulher  mais bonita que eu já vi, é de uma bondade sem fim. Imaginem que ela vem para cá todos os dias e fica, feliz da vida, ajudando o seu padrinho na organização da oficina. E isso sem ganhar um tostão sequer, não é nossa funcionária.

– Minha filha é mesmo maravilhosa – falou, orgulhosa, Madame Silvá. E ela foi Miss Amarante, sabia?

Gládis fez sinal com a cabeça que sim, não queria que a mulher entrasse naquele assunto e fosse ficar contando papagaiadas horas a fio. O marido dela comentou:

– Filha minha e mulher minha não precisam trabalhar fora. Não precisam, nem eu deixo. Vão precisar de três gerações para gastar todo o meu dinheiro, essas dondocas.

CONTINUA