sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

LUA  OCULTA – 57   
MILTON MACIEL 

57 – JUÍZO NA CABEÇA, TIO!
Fim do cap. 56:  "Mais essa! Já não chega tudo o que ele é e faz, ainda vem com mais essa, cria um grupo de flamenco e uma escola de dança em Ribeirão Preto! Como alguém pode ser tão perfeito assim?"

Leon Schlikmann, passada a enorme emoção de ver concretizada finalmente sua proposta de casamento com Jennifer, despediu-se dela e de Carmen e foi procurar Fúlvio Rondelli na oficina:

– Bom dia, tio. Estou incomodando?

– Nunca, menino. Você é sempre bem-vindo. Pode chegar aqui quanto quiser. Está precisando de algo para o seu Porsche?

– Não, tio. Estou precisando de uma coisa que eu nunca tive e que o senhor tem demais. Quem sabe o senhor pode me conseguir um pouquinho.

– Claro, menino; se eu tenho sobrando e você precisa, é só pedir. O que é?

– Juízo na cabeça, tio! Tô precisando pacas.

– Como?!

– É isso mesmo tio. Veja estes papeis aqui. Agora eu sou o Schlikmann que manobra o dinheiro e os bens. E o senhor sabe que os Schlikmann são um desastre, botam tudo fora, não sabem administrar. E também são uns putas duns vagais, nunca trabalham. Eu nunca trabalhei também. Mas agora desaba essa bomba na minha mão, minha velha está esperando que eu não faça cagadas como o meu pai fazia. E tem mais: eu vou casar daqui a mais uns dias. Com a Jennifer, a minha rainha africana, é claro. Então eu preciso aprender tudo, tio. Preciso aprender a ter juízo, a trabalhar, a não botar dinheiro e patrimônio fora, a fazer coisas que façam minha esposa não ter vergonha de mim. É isso! Pronto, falei!

– Muito bem, rapaz! Olhe só que boa surpresa. Você está falando como um homem maduro agora, não parece mais aquele molecão que só sabia correr a pé atrás de bola e de Porsche atrás de buceta.

– É, tio, um dia a gente tem que crescer. Agora eu quero virar homem mesmo, pra ser o homem da minha mulher. Quero que ela possa sentir orgulho de mim. Acho que eu amadureci na marra nestes últimos tempos, tio Rondelli. Primeiro foi graças à Jenny. Eu me apaixonei por ela e aí passei a morrer de medo que ela não me quisesse, porque eu sou branco e ela é negra. Então, em vez de a cor negra ser o defeito dela, a cor branca foi o meu defeito. Morri de aflição e de medo, tio, foi dureza, nunca eu tinha sofrido isso na vida. Mas aí ela me aceitou e me deu uma chance; e eu fui direto do inferno pro céu. Só que descobri, da forma mais brutal, que um assassino desgraçado era meu pai. Voltei pro inferno e afundei ao máximo quando acreditei que ele e o maldito Silva tinham conseguido matar o Celso.

– É foi dureza mesmo, meu rapaz!

– Põe dureza nisso, tio! Eu já tinha percebido o que rolava entre o Celso e a Larissa, só ela mesmo é que não percebia, a bobinha, Eu fiquei superfeliz por ela, ela merecia. E eu tinha a minha Jenny. Aí eu fiquei sonhando em me aproximar bem do Celso, eu fantasiei que ele era o meu irmão mais velho, que eu sempre sonhei ter. Então eu vi o matador acertar o Celso no peito e todo o resto. Ah, foi horrível! Ali eu acho que envelheci cem anos num dia, tio. Mas quando vi o Celso voltar à vida, o senhor não pode calcular o quanto eu fiquei feliz, feliz mesmo, feliz demais porque eu não tinha perdido o cara que agora é a referência da minha vida. E feliz também, muito mesmo, por causa da Lissinha, que não ia passar por aquela tremenda decepção na vida dela. O senhor sabe, eu amo a Lissinha, vou amar sempre, como a irmãzinha menor que eu tive, apesar da loucura daqueles idiotas, que queriam casar a gente na marra.

–Sim, Leon, eu tenho certeza disso.

– Pois então, tio, quando eu vi os dois juntos de novo, o Celso inteirinho, vivinho, e ela parecendo que tinha chegado no Paraíso, nos braços dele de novo, eu tive uma comoção tão violenta, um ataque de choro tão forte, que só a minha Jenny conseguiu parar. Aquilo era demais. O Celso estava vivo, o desgraçado do meu pai não tinha conseguido tirar a vida dele e tinha se ferrado todo, como merecia. Minha Lissinha estava com que num transe, um êxtase de felicidade. E eu tinha os braços da minha Jenny ao meu redor. Foi ali que eu vi que eu tinha botado fora um enorme pedaço da minha vida, tio. E que eu era um carinha de muita sorte, porque eu ia ter uma nova oportunidade de começar de novo e, desta vez, acertar!

Fúlvio Rondelli sentiu a mesma forte emoção que vinha daquele menino, uma criança grande também como sua anjinha afilhada, que, de repente, estava sendo forçado pela vida a despertar como adulto. Instintivamente aproximou-se do rapaz e o abraçou com suavidade:

– Muito bem, Leon. Você está certíssimo. Você vai saber tirar o bem de todos esses males que rondaram sua vida, a vida de Larissa e a vida do Celso. E pode, desde já, ter certeza de uma coisa: seu velho tio Rondelli vai lhe ajudar em tudo o que for possível. Pode pedir ou perguntar qualquer coisa, sempre que quiser. E pode entrar nesta oficina ou na minha casa sem precisar se anunciar ou bater, como um sobrinho no trabalho ou na casa do tio.

Leon Schlikmann não disfarçou a emoção que sentia, tinha aprendido, nesses últimos e densos dias, a deixar fluir todos os seus sentimentos. Ficou mais um tempo abraçado com Fúlvio Rondelli, percebendo como era bom ter um porto seguro e amigo para se refugiar, como sua Lissinha tinha e usava há mais de vinte anos. Tio Fúlvio era tudo de bom! Que diferença entre aquele homem digno e o miserável que tinha sido o seu pai!

Por um instante imaginou como sua vida teria sido infinitamente melhor se o seu pai tivesse sido Fúlvio Rondelli. Hoje ele, Leon, seria certamente um homem digno como esse seu pai, um sujeito correto e trabalhador, com uma profissão, por mais humilde que fosse, mas que lhe daria sustento e, muito mais do que isso, dignidade e respeito próprio.

Quando os dois saíram do abraço, Leon olhou com admiração e reconhecimento para aquele homem notável, que Larissa tinha nomeado, por conta própria, padrinho dela e que ele, Leon, tinha nomeado, também por conta própria, seu tio. Aquele homem notável não tinha tido nenhum filho ou sobrinho, costumava dizer que ele era um velho carvalho seco. Mas como, pensou Leon, como um carvalho seco, se ele é capaz de dar frutos sem fim na vida, de ser amigo e protetor, melhor que o melhor dos pais do mundo? Então falou para Rondelli:

– Tio, a primeira ajuda que eu quero lhe pedir tem tudo a ver com uma atitude que Lissinha tomou na vida, dias atrás. Ela, quando saiu de casa, deixou para lá aquele SUV imponente e caríssimo que ela dirigia. E aí comprou o famoso fusca laranja, que ela dirige pra cima e pra baixo com toda a alegria e todo o orgulho do mundo. Pois eu queria fazer a mesma coisa.

– Como assim, meu filho?

– Tio, eu quero me livrar desse meu Porsche que está estacionado aqui na frente da Teles. Olhe, aqui estão os documentos e as chaves. Eu não volto a entrar nele nunca mais. Esse carro é símbolo de um outro carinha, de um playboyzinho vazio e idiota, que usava o carrão pra impressionar e caçar bucetas, como o senhor falou, tão acertadamente. Eu quero que o senhor venda esse carro pra mim. E, enquanto não vender, eu vou andar só a pé e de carona. E aí, na hora de comprar um outro carro, eu também quero que ele seja usado, velho, barato e, se possível, bem feio. Mas com mecânica impecável, porque passou pelas suas mãos de mestre, tio Rondelli.

Fúlvio sacudiu a cabeça para os lados admirado. Que metamorfose!  Parecia ao contrário, uma belíssima borboleta de repente se recolhia ao casulo novamente, virava um feio gusano e esse feio gusano ser revelava muito mais belo, de forma transcendente, do que a borboleta multicor. O belíssimo Leon playboy, de repente, queria se transformar num homem comum, num trabalhador, despindo-se do seu símbolo maior de opulência e importância, um imponente Porsche com apenas um ano de uso.

– Ora, isso vai ser facílimo. Quer dizer, vender o seu Porsche vai ser muito fácil, ainda mais que estamos justamente na Teles Automóveis. Aqui o Celso e as meninas nadam de braçada. E o seu carro vale muito dinheiro, rapaz.

– Eu sei, quer dizer, sei mais ou menos o valor dele. Pois por mim podem vender pelo que quiserem, desde que vendam. Também não me importa se vendem rápido ou demorado. Não vou mais entrar nessa joça mesmo. Pra mim é vida nova, tio. Leon com Jenny, Leon com vergonha na cara, é Leon sem Porsche! O que eu vou fazer com o dinheiro da venda é outra coisa.

– E o que você pretende fazer?

– Não tenho a menor ideia, tio! Assim como não sei o que fazer com o resto do patrimônio da família. Aí é onde entram o senhor e o Celso. Eu não vou fazer nada, mas nada mesmo, pela minha cabeça. Só vou fazer o que vocês me indicarem. Melhor ainda, o que vocês me mandarem fazer.

– Bravíssimo, rapaz! Então vamos deixar esse imbróglio na mão do Celso, melhor do que ele não existe para esses assuntos.

– Mas o senhor fala com ele pra mim? Pede pra ele? Eu não tenho coragem, pode parecer muito abuso e...

Fúlvio Rondelli não perdeu tempo. Fez sinal para Leon parar, apanhou o celular e ligou direto para Celso Teles. Contou em rápidas pinceladas o que estava acontecendo e um minuto depois Celso Teles estava ali com eles, na oficina.

– Puxa, chefe, a gente podia ter ido até seu escritório, homem!

– Nada, Rondelli! Quando os amigos precisam da gente, a gente tem que ser rápido, tem que parar o que está fazendo e dar um jeito na hora. E aí, Leon, vai mesmo vender o Porsche, é?

– Oi, Celso. Eu não vou vender, você vai. Eu sou bola murcha para vender qualquer coisa, mas você é o bambambam.

– Tá certo, a Teles vende para você. E não cobra a comissão da empresa, só a da vendedora, é claro. Que, sem dúvida, vai ser a Jennifer.

Leon abriu um sorriso de orelha a orelha:

– Legal, cara! Vou dar um regalo pra minha rainha, trilegal! Puxa, muito obrigado, mesmo. E, quanto ao dinheiro da venda... Quer dizer, quanto a todos os dinheiros... E os bens... Sabe como é, a tralha toda caiu na minha mão, minha mãe tirou o corpo fora. Só que ela deve estar esperando um milagre, que o carinha aqui, de repente, saiba administrar essa coisarada toda. Só que eu não sei. E aí o tio Rondelli me disse que eu devia pedir um help pra você. Mas eu fiquei sem jeito, sabe como é, muita cara de pau, pedir isso pra um cara ocupado como você.

– Ora, Leon, deixe disso, rapaz. Amigo é pra essas coisas.

– Amigo? Você disse amigo? Seu amigo?

– Claro, rapaz! Começa que você é grande amigo da minha Larissa. Só isso já me inclinaria a ser seu amigo. Continua que você vai casar com outra grande amiga minha, a Jennifer. Termina porque quem pediu para eu dar esse help para você é o meu grande amigo Fúlvio Rondelli. Já não chega? Pois não chega: acontece que eu devo confessar que aprendi a gostar de você de verdade, Leon Schlikmann. Você é o lado sangue bom, que redime toda a sua família.

Leon engoliu em seco, ficou mais do que emocionado, deu um passo em frente e fez menção de abraçar Celso Teles:

– Posso? Não é confiança demais?

Em resposta, Celso abraçou-o efusivamente, falando:

– Claro que pode, cara. Agora e sempre que quiser. Seja bem-vindo à Confraria: quatro mulheres fantásticas, um anjinho loiro, um italiano carcamano e agora um alemão boa-gente. Mais o seu amigo aqui, é claro. Pois pode deixar, vamos fazer o seguinte: eu boto o Lucas em contato com você e ele, que é o grande ás da contabilidade e dos números, ajuda você a destrinchar toda a coisa, a tomar pé nos valores, a saber exatamente quanto você tem para dispor e administrar. Aí a gente senta juntos, você, o Lucas, o Rondelli e eu.

– Bárbaro! Demais! E... bom, será que dá pra incluir mais uma pessoa nisso?

– Sua mãe?

– Não, Celso. A coroa não quer saber de nada. É a...Bem, se não for demais, se você não acha ruim...

– A Jennifer?

– Pois é. Ela mesma. Você acha isso errado?

– Claro que não, Leon. Acho perfeito. Isso mostra a confiança e a consideração que você tem por ela.

– Bom, a gente vai casar assim que os raios dos papéis permitam, eu espero que seja já no meio do mês que vem. Então eu já considero a Jenny minha esposa, quero dividir tudo com ela, inclusive essas decisões que vocês nos indicarem. Assim ela tem certeza que eu estou a fim de casar de verdade. Sabem, eu acho que, apesar de tudo o que eu me esforço pra demonstrar, ela pode ter algumas dúvidas a meu respeito, não sei, fico muito inseguro. E, pior ainda, eu é que fico com medo que ela desista na última hora. Falta quase um mês, vão ser dias de agonia pra mim. Depois que casar, se ela quiser desistir, aí ela vai ter que entrar com os papéis de divórcio e isso vai ser muito mais demorado e...

– Pode parar, Leon Schlikmann! Nada disso vai acontecer. Palavra de Celso Teles. Fique sossegado, rapaz. A Jennifer também gosta de você de verdade, pode ter certeza. Eu conheço essa menina muito bem, trabalha comigo há muitos anos. E posso lhe assegurar, nunca vi a Jenny tão entusiasmada com um homem assim. E tão feliz, também. A ponto de estar disposta a enfrentar toda a onda de preconceitos que pode vir a encher os sacos de vocês.

– Puta que pariu, cara! Assim você me deixa louco! Louco de felicidade, Celso. Você tem certeza disso?

– Isso ele já disse, Leon. Ele falou claramente: “Posso lhe assegurar”. E disse algo de um valor incalculável: ele falou “Palavra de Celso Teles”. E isso, menino, você vai aprender, como eu já aprendi, é mais sólido que o Pão de Açúcar, que o Himalaia inteiro.

Leon ficou intensamente vermelho:

– Puxa, foi mal, desculpe gente, perdão Celso. Quem sou eu pra duvidar de você...

– Relaxa, Leon, eu não me incomodei, eu entendo a sua situação, cara. E muito mais do que você possa imaginar. Eu vivi essas angústias todas, dias sem fim, numa agonia danada, por causa da Larissa. Como você, morrendo de medo que a mulher que eu amava não me quisesse. Pior, eu tinha certeza que ela não ia me querer nunca, porque ela já amava outro homem. Você, Leon! E aí eu morria de ciúmes de você cara. E o mais notável nisso tudo, é que eu já estava começando a achar você um carinha legal, já estava começando a gostar de você, mesmo tendo ciúmes de você.

– Puxa, Celso, que barra! Você também pastou como eu, até mais do que eu, estou vendo agora. Pô, nem sei o que dizer pra você...

– Pois não diga nada, camarada. Não há o que dizer. Tudo isso são águas passadas. Nossas musas, nossas rainhas nos aceitaram, gostam de nós de verdade. Então vamos acelerar a marcha e tratar de ser felizes, isso é o que importa. Olhe, estou tendo uma ideia agora, vou mexer os meus pauzinhos, vou falar com o Turíbio, o promotor, para ver se ele pode dar uma mãozinha, fazer o pessoal do cartório acelerar a marcha dos seus papeis de casamento. Quem sabe não consigo reduzir uns dias de insegurança pra você.

– Caramba! Faça isso, sim, por favor, Celso. Verdade que, por mais que eu saiba que pode ser só neura minha, enquanto eu não enxergar aquela mãozinha escura assinando um certo livro, eu vou viver encagaçado mesmo.

– Tá bom. Então estamos entendidos. Agora eu vou voltar pro escritório e vou colocar o Lucas na sua cola, daqui a pouco ele liga pra você e vocês combinam o que vão fazer daí pra frente. Quando estiverem com todos os levantamentos feitos, me procurem e a gente marca a reunião com o Rondelli e a Jenny.

– Beleza, cara. Puxa, você fez um carinha assustado muito feliz agora. Deus lhe pague, como diz sempre a Lissinha.

Celso se despediu dos dois amigos, o antigo e o novo, e rumou para o lugar onde estava a luz que seus olhos estavam ansiando ver, depois de escutar a palavra Lissinha.

CONTINUA

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