MILTON MACIEL
53 – UM LEGISTA BRILHANTE
Fim do cap. 52: " - Sim, com toda a certeza. E ficam resíduos em mais lugares?
– Sim, Dr. Luzardo. Fica no estômago, se ouve ingestão. Fica no sangue, se foi injetado, como parece o caso.
– Tá, mas como foi que fizeram pro homem não acordar, gritar, se defender?"
– Simples, delegado. Primeiro colocaram a substância, que é um pó branco
sem cheiro algum, sobre a pele, ali naquela região levemente avermelhada no
peito, bem junto do ombro esquerdo, vejam bem. Acontece uma rápida absorção, o
que deixa a vítima a caminho da inconsciência. Depois aplicaram o mesmo pó bem
abaixo das narinas, também sobrou uma pequena mancha avermelhada ali,
verifiquem. Acontece uma inalação contínua. Aí a vítima perde totalmente a
consciência, a dose já começa a ser subletal. Como já estava dormindo – e de
barriga pra cima, conclui-se – não acordou mais.
– Hum, aí fica muito fácil aplicar a injeção letal, é claro.
– É isso mesmo, delegado. Foi assim que despacharam o homem. Os exames
toxicológicos só vão confirmar tudo o que eu estou afirmando agora. Mas rezem
para haver ainda algum resíduo do pó sobre a pele, um resíduo ínfimo, que ainda
não tenha sido absorvido, porque a absorção cessa assim que o sangue para de
circular, quando a vítima vai a óbito. Por isso é que eu vou raspar levemente
essas duas regiões onde estão as manchas avermelhadas. Vamos lá. Ilumine aqui,
delegado, por favor. Isso. Vou transferir o material para esta placa de Petri
aqui. Agora vocês precisam me arranjar algum inseto pequeno, de preferência
voador, formiga tem mais resistência. Mosquinha, mosquitinho de jardim, coisas
assim. Quanto menor, melhor, mais sensível. Se sobrou algum resíduo, por menor
que seja, insetos muito pequenos vão ser afetados. Boa caçada, cavalheiros.
O médico e o delegado saíram apressados, cada um deles convocando ajuda
de funcionários e enfermeiras do hospital. Cerca de quinze minutos depois,
voltaram para sala de cirurgia, levando uma preciosa carga de pequenos insetos
de frutas e de jardim, alojados em sacos plásticos.
O legista transferiu com cuidado três dos menores para a placa de Petri
e tornou a fechá-la. Não deu nem cinco minutos e os insetos estavam nos
estertores finais da morte. Bingo!
– Aí está, senhores, seu teste toxicológico expedito: fluoracetato de
sódio na cabeça!
– E aí está um profissional que é um orgulho para o Estado de Santa
Catarina. Parabéns, Doutor Krause. Isso é que é competência, sim senhor!
– Ora, muito obrigado, delegado. Na verdade, é experiência, meu caro,
quase quarenta anos de carreira. Já vi e retalhei morto de tudo quanto é jeito,
com as causas de morte mais esdrúxulas que se possa imaginar. Envenenamento
acidental com agrotóxicos aos montes, suicídios e assassinatos com venenos de
tudo quanto é tipo, também. E posso lhe garantir uma coisa: depois que você
adquire uma certa experiência, não há um único deles que escape sem deixar
vestígio. Sempre um rabinho fica e ele aponta na direção do criminoso.
– Maravilha, Doutor Krause. Que coisa fenomenal esse seu trabalho. Então
posso garantir que o homem foi assassinado e que foi por envenenamento com esse
fluoracetato de sódio?
– Pode garantir, delegado. É o famoso 1080. Mil e oitenta era o
número de catálogo desse raticida quando ele era permitido nos Estados Unidos,
onde foi criado e vendido largamente, por muitos anos. Todos o conheciam por
veneno mil e oitenta. Mas o diacho da droga era tão perigosa de manusear que
provocava um monte de acidentes, o pessoal volta e meia se intoxicava pelo
simples manuseio. Ou aspirando o pó. Muitas mortes aconteceram e o governo
americano acabou proibindo o uso do dito cujo no país. Hoje, para variar, quase
todo ele é fabricado na China e exportado para muitos países do mundo.
– Isso quer dizer que alguém aqui em Amarante conseguiu esse produto,
sabe-se lá onde e de que maneira. E o usou com pleno conhecimento técnico, para
eliminar o Valdemar Silva. Só que esse conhecimento técnico e essa capacidade
de manusear uma substância perigosíssima complicam ainda mais este caso.
– É verdade, meu sogro. Quem fez isso tinha que estar de luvas, no
mínimo. Talvez com máscara ou um lenço no nariz, não sei. O que o senhor diz,
Dr. Krause?
– Bom, se o cara vai usar luvas, devem ser luvas de látex,
provavelmente. Nesse caso a escolha natural é a máscara para gripe. Que vendem
nas farmácias.
– Taí, pode ser uma boa. Vou verificar nas farmácias todas daqui se
alguém andou comprando luvas e máscaras ao mesmo tempo. Se houve um caso,
estamos com a pessoa na mão! Ainda mais que não é época de haver muita gente
gripada, facilita.
– Pode investigar isso, sim. Mas é bem possível que a pessoa já tivesse
um ou os dois itens, ou tivesse o bom senso de não comprar os dois juntos, ou
na mesma farmácia, ou aqui em Amarante.
– É, Doutor Krause, tem razão, pode não ser muito conclusiva essa linha
de investigação. Mas, mesmo assim, tem que ser tentada. Vai que eu dou sorte e
o cara fez a coisa burramente.
– Muito bem, agora eu vou concluir a minha autópsia, mas vocês já poder
ir fazer outra coisa, se quiserem. Daqui por diante é só coisa formal. Claro,
vou colher os materiais para os exames toxicológicos, mas não tenho dúvida
quanto ao uso do 1080. Daqui uma hora
eu já escrevo e assino laudo. Mas não esqueçam, eu não vou colocar no laudo a
afirmação da causa mortis, vou
colocara possibilidade do uso do 1080.
O certo é esperar o resultado das análises, que, obviamente, só vão confirmar o
meu diagnóstico.
– Então com licença, Doutor Krause, a gente ainda tem que tomar muitas
providências práticas. É claro que eu não vou divulgar nada a respeito de
assassinato. Por enquanto vamos manter a história de morte natural e vamos
esconder que mandamos fazer exames na capital. Assim a gente não assusta o
criminoso ou os criminosos. De qualquer forma, para mim, aí tem mesmo o dedo do
Adolfo Schlikmann.
– Que está com o braço esquerdo ainda meio enfaixado, não esqueça, meu
genro. E não tem grande mobilidade, porque ainda está com um pé estropiado,
lembra?
– Então o senhor acha que não pode ter sido ele, sogro?
– Não, não, eu concordo com você, só
pode ter sido ele. Mas como é que o filha da mãe conseguiu fazer isso?!
Meio estropiado, mas pelo menos capaz de escapar da algema. Agora, de onde o
cara tirou o tal de 1080? E as luvas
e lenço ou máscara? Caramba, é de dar um nó na cabeça da gente.
– Vamos sogro, vamos ver como é que nós vamos fazer com a imprensa local
e com os curiosos em geral. A morte de um homem como Valdemar Silva é um grande
acontecimento numa cidade pequena como esta. Chegamos ao limite, agora não dá
mais para esconder a coisa. Vou liberar o praça e o Mota, trocar a guarda na
delegacia. E seja o que Deus quiser. Amarante vai se fartar com a grande bomba
do dia: Morreu Valdemar Silva! De
morte natural, vamos afirmar, é claro.
– Assim o assassino vai ficar tranquilo. E com a certeza de que nós
somos umas grandessíssimas bestas aqui nesta cidade.
– Melhor assim, sogro, melhor assim. Se o sujeito pensa isso, vai ter
certeza que as provas do seu crime vão para baixo da terra dentro do caixão do
Silva. Ele que pense isso, assim se descuida e cai mais facilmente na minha
rede. Ele que ache que praticou o crime perfeito!
Por volta de quatro da tarde a notícia da morte de Valdemar Silva foi
liberada para toda a cidade. A rádio local fez várias chamadas, dando conta que
o prestigioso cidadão havia falecido de problemas cardiorrespiratórios
naturais, decorrentes do altíssimo grau de tensão em que se encontrava pela
terrível situação em que estava, preso e acusado de diversos crimes, inclusive
tentativas de assassinato. Era um homem de certa idade, tinha mais de 60 anos e
tinha também um considerável excesso de peso.
As reações dos habitantes locais variaram desde as francamente piedosas
– Coitado, tão moço e cai numa desgraça
dessas! Melhor assim, não viveu para
virar um presidiário”, até outras, situadas no outro extremo: “Filho da puta, rabudo, morre e escapa de
virar presidiário! Por que que rico se dá bem até nessa hora? Se fosse eu,
pegava cem anos de cadeia e ainda ia viver até os cento e vinte, pelo menos. E
na pior cadeia do Brasil, só pra me ferrar todo, como pobre sempre se ferra!”
Em outras circunstâncias, o prefeito teria mandado preparar uma
cerimônia muito mais imponente do que aquela que havia sido montada para o
“falecido” Celso Teles. Afinal, Valdemar era prata da casa, vivia ali há mais
de 40 anos e, acima de tudo, era o homem mais rico de Amarante. Mas, dadas as
circunstâncias de sua tenebrosa derrocada, com prisão e tudo, não havia a
mínima condição de homenagear o ex-ilustre cidadão. Nem prefeitura, nem Câmara
de Vereadores, nem mesmo a Associação Comercial e o Clube dos Imigrantes, dos
quais Valdemar Silva havia sido presidente por mais de uma vez, se animaram a
propor qualquer homenagem.
O funeral de Valdemar Silva foi realizado na sede de sua Transportadora,
por decisão soberana de sua viúva, Diva Silva, a inconsolável Madame Silvá. O
corpo, liberado pelo Dr. Luzardo e pelo delegado no meio da tarde, foi
imediatamente transportado para a empresa pelo mesmo papa-defuntos que ia
“enterrar” Celso Teles dias atrás, Alcebíades Trancoso.
O povo jantou esse detalhe: “Bem feito, isso é castigo de Deus,
encomenda a morte do outro e vai ele mesmo pros pés-juntos, levado pelo mesmo
papa-defunto!”
CONTINUA
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