quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

LUA  OCULTA – 50   
MILTON MACIEL  

50 – TEMPO FECHADO PARA SILVA E SCHLIKMANN
Fim do cap. 49:  "Ela agora já sabe de tudo, sabe que seu namorado está vivo e que tudo foi só uma armação. Também já sabe quem são os mandantes do crime. Essa moça recebeu vários golpes muito duros nos últimos dias e nas últimas horas, não deve ter sido nada fácil para ela."

Apontou em direção a um homem alto e sorumbático na plateia, que lhe sorriu de volta.

– É aí que entram dois personagens igualmente vitais para a trama: o Seu Alcebíades da funerária, olhem ele ali. Pois ele, com os meninos da segurança das firmas do Celso, levaram para a prefeitura um caixão pesado, mas vazio. Que tinha que ficar fechado. Daí a historinha do rosto desfigurado. A outra figura central aqui é o maquiador. Que não é outro senão o Lucas Moura, responsável pela contabilidade da Teles, que já foi ator e que tem como hobby até hoje a arte teatral, os cenários e os disfarces. Agora vocês devem estar se perguntando como foi que o Celso chegou aqui na prefeitura, vindo da casa dele, para entrar no caixão. Ora, nada mais simples, ele, usando barba postiça e boné era um dos homens com uniforme da Teles, que carregavam os biombos. Fecharam o cenário, o Celso entrou no caixão e o Lucas fez um trabalho de gênio. Fabricou um fantasma perfeito. Eu fui a pessoa que providenciou a luz ultravioleta, está lá em cima, vejam. Na hora H, apaguei as luzes e acendi a ultravioleta. O efeito foi fantástico, fantasmagórico, o suficiente pro frouxo do Silva se mijar todo.

O auditório caiu numa enorme gargalhada persistente, todos olhando para a cara de pateta de Valdemar Silva e a reveladora mancha enorme em sua roupa e no chão.

– Mas também, com a atuação magistral do Celso, até eu ficava com medo do fantasma vingador, se não soubesse que era farsa! Isso é outra coisa que gente tem que creditar ao Lucas, porque  foi ele que treinou o Celso, ele foi o diretor de toda a representação teatral. Merece nosso reconhecimento!

Lucas levantou, agradeceu modestamente, e sentou rápido, encabulado.

– Muito bem, agora chega de papo, a conversa tá muito boa, mas eu tenho dois bandidos pra engaiolar urgente. E ouça bem, Valdemar Silva, desta vez sem essa de chantagear juiz para ter habeas corpus, mais um crime para a sua extensa ficha. Sabe quando você vai ter um habeas corpus de novo? Pois é, NUNCA! E o mesmo vale para você, Adolfo Schlikmann. Não há poder que tire vocês da gaiola agora. E os julgamentos vão ser muito rápidos, o juiz Trindade tem uma certa pressa agora, o promotor também, um certo Corregedor de Polícia também. E, Valdemar, o que sobra dos seus “seguranças” na Transportadora, já está sob investigação, as ficha corridas chegam hoje e a gente já tem os três sob vigilância desde sexta feira. Como você perdeu um monte de bandidos nos últimos dias, pode-se dizer que seus dias de quadrilheiro chegaram ao fim.

E, dirigindo-se aos guardiães dos presos:

– Pessoal ponham os passarinhos na gaiola, viatura neles. Direto pra delegacia. Vão dividir a única cela com outros dois hóspedes que estão lá há mais tempo.

Essa não! – pensou Valdemar Silva – O mulatão tarado! E eu ameacei os dois de morte!

O delegado dirigiu-se então a Jardes:

– Jardes, você pode ir para casa. Vai responder a seus processos em liberdade. Uma, porque alguns dos seus crimes já prescreveram. Outra, porque os processos novos anda terão que ser abertos pela promotoria, com base nas suas confissões assinadas ontem.  Aí nós teremos que fazer muitas diligências, todas em lugares mais ou menos distantes e com escassa documentação, pois é tudo muito antigo. Outra que você está muito perto de fazer 70 anos, possivelmente vá fazer antes que o primeiro processo tenha resultado em julgamento e condenação. Mais outra, é que faz quase vinte anos que você não delinque, o que prova que você mudou de atitude e profissão. E, finalmente, o mais importante: Você é o salvador de Celso Teles! E isso, para nós desta cidade, tem uma importância tremenda. Então nós precisamos lhe recompensar por esse gesto heroico de desprendimento, de trocar sua boa vida e sua liberdade pela vida de um ser humano muito especial para esta cidade, nós temos que fazer isso de alguma forma. Nós não vamos deixar de cumprir a lei, não se trata disso. Mas a recompensa que nós vamos lhe proporcionar, Jardes, é que nós, polícia, promotoria e juizado, não vamos ter a menor pressa com os seus processos. E, para defender você neles, o próprio Celso Teles já me disse que vai contratar o melhor advogado que houver para você.
Jardes esfregou os olhos, sacudiu a cabeça, mal conseguia acreditar no que ouvia:

– Mas, doutor, isso quer dizer que eu não vou pra cadeia agora?

– Que cadeia, homem? Aqui não existe isso. Só aquela cela pequena na delegacia, para prisões temporárias. Não existe nenhum mandado de prisão contra você, não apareceu nada na ficha que eu puxei com o seu documento. Uma pessoa pode ser presa quando foi condenada em juízo. Pode ser presa em flagrante delito. E pode ser presa preventivamente, com ordem da justiça. E nada disso cabe no seu caso. Portanto, vá para casa e toque sua vida como sempre tocou. Você já vai ter uma espécie de castigo porque muita gente vai ver você como criminoso, isso não se pode evitar. Mas, em compensação, para um enorme número de outras pessoas, você é o heroi que não só salvou Celso Teles e tudo o que ele está fazendo por Amarante, mas também ajudou Amarante a se livrar de dois criminosos perigosos, seus dois homens de maior poder e influência.

Bentinho levantou de onde estava e veio até seu pai. Ajudou a erguer-se, para conduzi-lo para fora do recinto. Antes disso, porém, Celso Teles se adiantou até eles e deu um grande e comovido abraço de agradecimento em Jardes Pereira. Uma enorme onda de aplausos, quase unânime, mostrou o que Amarante pensava na verdade de seu antigo pistoleiro. Para a imensa maioria do povo, ele merecia absolvição.

Os dois homens mais importantes e poderosos de Amarante foram conduzidos amarrados pelas pernas para a delegacia. Chegando lá, Silva foi colocado diretamente na cela. Adolfo Schlikmann continuou do mesmo jeito que estava desde que fora desmascarado e preso na prefeitura: mudo, o olhar duro fixo para a frente, imóvel a maior parte do tempo, como se estivesse ausente dali ou fosse só uma estátua de gelo. Era evidente que estava em estado de choque. Não foi colocado na cela.

Para Valdemar Silva a coisa era mais dura. Em primeiro lugar voltava à cela com aqueles dois marginais que o ameaçavam e chantageavam e aos quais tinha prometido morte ao ser libertado. Mas o pior estava para vir, quando um terceiro preso, que ele nunca tinha visto ali, se dirigiu a ele:

– Então você é o famoso patrão do Ramiro Toco, o tal de Valdemar. Dá pra ver como você é poderoso nesta cidade! Se não pode tirar nem o seu traseiro sujo desta cela, imagine se vai conseguir fazer algo por mim, pelo Ramiro e pelo Fuinha. Tá tão ferrado como a gente, meu camarada.

– Mas, quem é você? Como você conheceu o Ramiro Toco?

– Pois é, eu sou um dos dois homens que ele contratou em Ponta Grossa pra fazer aquele servicinho aqui, contra a mulher que fudeu esse seu braço e desmoralizou você.

– Mas não pode ser, ele me ligou de Ponta Grossa, semana passada, dizendo que só vai chegar hoje de noite com os dois homens.

– Tá por fora, meu camarada, hein! A gente chegou antes, atacou a mulher na mesma noite e se ferrou de verde amarelo. Tinha um monte de polícia lá, tomaram o lugar das mulheres que a gente ia comer e matar. Eu estou aqui detido, o Toco e o Fuinha estão no hospital, tudo esculhambado. O Ramiro, os caras quebraram a cara e a boca dele. E o Fuinha tomou dois tiros nas costas, não morreu de ruim que é.

–  Mas a ligação que eu recebi...

– Te enganaram, meu chapa. Deve ser coisa da polícia, os caras dão uma coça, ou arrancam umas unhas do sujeito e ele confessa ou faz qualquer coisa. Seu homem a esta altura já cantou e contou tudo o que sabe, tanto que se prestou a dar esse tal telefonema.

Valdemar Silva jogou-se sentado no chão da cela. Que desgraça! Então tinha sido ludibriado, devia ser coisa daquele delegado moderninho. Sua única esperança de vingança caía por terra! Estava contando com a ação de Ramiro Toco e seus pistoleiros de Ponta Grossa, para matarem a maldita morena da Teles. Nem isso, a desgraçada ia continuar viva, livre, leve e solta.

E ele ia continuar fudido, preso, sem possibilidade nenhuma de obter um habeas corpus, cheio de processos brabos, cada um mais sério que o outro: tentativa de suborno e agressão do Corregedor, chantagem contra juiz, tentativa de agressão e tentativa de assassinato da desgraçada lá na firma dela, tentativa de assassinato da maldita de novo, no golpe fracassado dos imbecis no apartamento dela, tentativa de assassinato de Celso Teles. Ele agora era o homem das tentativas. Todas elas acabando no buraco, ele só se lascando cada vez mais!

E, se era verdade que tinham feito o Ramiro Toco cantar, ele podia ter entregado outros crimes de morte, relativamente recentes, mandados por Valdemar Silva. Estava na cara que ele ia desta delegacia para uma prisão preventiva em alguma penitenciária, depois passava por um monte de julgamentos, condenações e penas que somadas, possivelmente passariam fácil, fácil, dos 100 anos. Que fim de vida! E toda essa desgraceira advindo em menos de duas semanas!

Adeus, poder! Agora estava desgraçado em Amarante. Não porque apanhara de uma mulher, isso agora era o de menos, mas porque todos ficaram sabendo de seus crimes principais, fora mais coisa que provavelmente viria à tona agora. Passara rapidamente de homem mais poderoso e temido à condição de um reles bandido comum, um assassino e chantagista.

O que ia fazer com sua Transportadora? Era impossível seguir com o negócio dando lucro sem a presença diária dele. Se deixasse na mão de empregados, era lógico que seria roubado até à falência.

Sua mulher era de uma burrice de assustar, provavelmente não tinha mais cérebro, devia ter queimado os miolos de tanto secador e química sem fim nos cabelos, que usou a vida inteira. Sua filha também não tinha a menor preparação para negócios. E, se tivesse, agora era uma inimiga declarada do pai, trabalhava e morava com o inimigo. Ele, naturalmente, a deserdaria: assim que pudesse conversar com o Lobo do Lar, mandaria providenciar o seu testamento.

Os bens eles os conservaria em seu nome, não podia confiar em sua mulher, porque nenhuma mulher merece confiança. Agora que ele estava em desgraça e preso, ela podia muito bem passar a mão numa grana e arranjar um malandro qualquer, bem mais jovem, para sustentar.

Não, não, não podia se deixar abater! Estava por baixo, mas ainda não estava morto. Como dizem os gaúchos: “ Não tá morto quem peleia!”

Ainda tinha muito dinheiro: nos bancos, dólares escondidos em casa, ouro, aplicações financeiras, muitos créditos a receber. Tinha um colosso de imóveis. E tinha sua Transportadora, a maior da cidade, a terceira maior do Estado. Só ela valia uma barbaridade! Se a coisa ficasse feia mesmo pro lado dele, não teria dificuldade em vender a empresa  para uma concorrente grande, especialmente para as de São Paulo. Não havia ano em que não recebesse mais de uma proposta de compra da Transportadora. Talvez agora tivesse que apelar.

Mas o desespero ameaçava tomar conta dele: de que adiantava tanto dinheiro, tantas posses, tantas propriedades, a enorme transportadora com mais de uma centena de empregados, se ele estava agora ali naquele chão imundo, numa cela minúscula, junto com três bandidos de merda, esperando o médico terminar o exame no alemão Schlikmann para mandá-lo para ali também.

A aí vinha mais um problema. Até horas atrás o desgraçado era um aliado, um cúmplice na tentativa de assassinato do maldito Celso Teles. Mas, depois do que o delegado tinha falado na prefeitura, Schlikmann era agora mais um filho da puta a ser castigado. Porque ele tinha submetida a filha única de Valdemar Silva a abusos sexuais repetidos por muito tempo.

Não que aquela desgraçada merecesse qualquer ação de desagravo por parte do pai, que desobedecera, desfeiteara e agredira. Não, não se tratava de defender aquela degenerada. Mas se tratava de defender o nome dele, a honra dele, Valdemar Silva! O tarado tinha atacado a menina quando ela ainda era inocente, doze anos de idade somente, ainda não era essa filha da puta em que tinha se transformado nos últimos dias.

Então ele tinha a obrigação de defender a honra, a moral da família Silva. Se deixasse aquele abuso de confiança, aquela traição a um compadre sem punição, estaria mais desmoralizado ainda. Já podia ver o povaréu todo falando e rindo pelas costas dele: O alemão comeu a filha dele ainda criança e o corno-pai teve que engolir, deixou por isso mesmo, o frouxo. Um cagão!

Não, de jeito algum. Se tinha gente pra pagar com a vida pela ousadia, além daquele leprosa da Teles Automóveis, era esse compridão maldito que tinha traído a confiança de um compadre que o ajudou e socorreu com dinheiro ou aval em mais de uma ocasião. E que era compadre porque era o padrinho da própria criança que ele tinha comido à força.

Ali, sentado naquele chão sujo, sob as vistas de três marginais pés-de-chinelo, Valdemar Teles escalonou claramente seu projeto de vingança: a morena piolhenta da Teles que esperasse, ganhava uma sobrevida, ele podia esperar. Mas, primeiro, ele tinha que fazer despachar aquele maldito traidor de compadres e de afilhadas. Seria desmoralização demais se não o fizesse. E, assassinato por assassinato, seria só mais um, já tinha tantas mortes nas costas, fora as tentativas fracassadas dos últimos dias, que iam também complicar sua vida ainda mais.

Ali do chão onde estava sentado, Valdemar olhava para aquele alemão comprido que o médico, o sogro do delegado, fazia deitar e levantar do sofá da sala, fazia sentar e cruzar as pernas, fazia caminhar em linha reta e em ziguezague. Via-o falar com o tarado, perguntar coisas, usar um lanterna no olho do sujeito, coisas esquisitas. E notou que o alemão ficava completamente apático. Não respondia nada, não falava, fazia tudo o que mandavam, mas, aparentemente fazia tudo errado, errava os passos, trocava esquerda por direita, parecia sonado ou bêbado.

Num certo momento, Silva ouviu o Dr. Luzardo chamar aflito o delegado:

– O homem está piorando, Norberto. Pirou feio, acho que está começando a surtar. Parece que a desgraça foi grande demais para ele. E ele não tem a estrutura do baixinho lá. Pra ele é uma queda grande demais: das alturas do homem mais “nobre” daqui, o mais importante na hierarquia, no sobrenome, para o lamaçal comum dos assassinos.

– Você acha, sogro? Não pode ser só fingimento? Porque ele sabe que, se entrar naquela cela, o Valdemar Silva vai tentar acabar com ele. Será que ele não está só engrupindo a gente, querendo se fazer passar por pirado só para se safar? E até para depois, no julgamento, ser considerado incapaz e cumprir pena num manicômio judiciário.

CONTINUA

Nenhum comentário:

Postar um comentário