MILTON MACIEL
46 – JARDES, O MATADOR
Ele estava ferrado, cara afundada, dentes estropiados; com a ficha
corrida dele no Paraná, estava mais do que desgraçado, cana braba à vista. Mas
ao menos tinha uma coisa que não podiam tirar dele: a morena de cinema!
Ficou todo o tempo em que ela esteve ali no quarto com os olhos grudados
nela, memorizando cada detalhe daquele monumento: Cabelo, olhos, nariz, boca,
peitos, ancas, bunda (ai!), coxas. Aquilo ia virar seu patrimônio. Sabe-se lá
quantos anos de cadeia ia puxar, ia se acabar na mão, cinco contra um quase
todos os dias.
E a imagem seria sempre a dessa Gládis tesão, ia sempre
imaginar, enquanto caprichava na esquerda, pois era canhoto, que tinha dado
certo, que ele estava, sim, estuprando aquela morena gostosa, o melhor estupro
da vida dele. Puxa, a coisa era tão boa de imaginar que mesmo ali, todo derrotado,
sentiu um calor nos bagos, o cara de baixo querendo levantar a cabeça. Benza
Deus! Tem mulher que é puro tesão, deixa qualquer homem doido de pedra!
Celso e o delegado se desmancharam em elogios a Nicanor e Anselmo. Que
duas bichas mais horrorosas aquelas! Mas que dois atores mais fantásticos aqueles! Gládis
foi mais longe, com seu enorme senso prático:
– Um Óscar de melhor ator para cada um. E o prêmio vai para: Nicanor –
10 mil reais! E Anselmo – outros 10 mil reais! Uma gentileza do nosso generoso
patrocinador, a Transportadora Real Grandeza.
Os dois homens olharam ainda mais encantados para aquele avião, mas
olharam com dúvida e receio para o delegado. Porém o Doutor Norberto Oliveira
foi taxativo:
– Perfeito, Gládis. Grande ideia! Nada mais merecido, meninos, vocês
foram demais, o Ramiro deve estar com o dele piscando até agora. Você também
concorda com a Gládis, Celso?
Celso Teles apenas adiantou-se, pegou os dois montinhos de dinheiro, que
seus homens tinham colocado sobre a mesa de cabeceira, e os entregou aos atores
ganhadores do primeiro Óscar de melhor ator de Amarante:
– Nada mais justo, meus camaradas. E é dinheiro do próprio imbecil do
Silva. Nada mais engraçado e irônico também. Agora, pelo amor de Deus, peguem
esse dinheiro, mas tirem essas perucas, vocês estão horrorosas, santas!
Gládis completou a ação com algo que sua prodigiosa intuição lhe ditava:
– Claro, Nicanor. Vocês podem ficar com as perucas de recordação. São um
belo suvenir agora. E elas ainda podem ser uma garantia de futuro para vocês. Se,
um dia, vocês quiserem mudar de profissão, é só tirar as gracinhas do armário,
fazer um bom penteado, e encarar a vida noturna. Lindas como vocês ficam, vão
virar milionárias em dois tempos.
Gargalhada geral, um delegado exultante, dois brutamontes com o bolso da
calça estufado de grana fácil. Caiu o pano no Hospital Nossa Senhora da Conceição,
saíram do palco os atores principais e seus coadjuvantes; ficou em cena apenas Ramiro Toco, sentindo-se, cada vez mais, um consumado pateta.
JARDES
Muitas horas antes desses acontecimentos todos, no momento em que Celso
Teles ia saindo para recém conhecer o novo delegado, muito antes que eles tivessem
planejado e deflagrado a mais que bem-sucedida operação anti-Silva, Leon
Schlikmann estava totalmente arrasado!
Ele chorava em silêncio, no jardim de inverno da mansão da família. Tinha
acabado de descobrir que era filho de um assassino e ladrão!
Mas então ele teve que fazer um enorme esforço para recuperar o
controle, pois o que vinha a seguir era de suma importância e ele não podia
perder um único detalhe.
Ouviu o barulho da moto chegando, a campainha tocando, as vozes das empregadas,
por fim as batidas tímidas na porta do escritório e a voz, sempre desagradável,
sempre autoritária, do pai a dizer “entre!”
O homem desconhecido entrou. De onde estava, em momento algum Leon pôde
ver-lhe o rosto. Mas a conversa que se desenrolou a seguir foi perfeitamente
audível. E gravável no celular, também.
– Este é o homem de quem lhe falei, compadre, o Jardes. É conhecido
antigo, de total confiança. É meu despachante. Já despachou pra mim diversas
vezes.
– Despachante? Desses de documentos?
Leon ouviu a risada áspera, asmática, do pai em resposta:
– Ora, Valdemar, despachante de gente, ele despacha gente desta pra
melhor.
Foi a vez de Valdemar Silva rir alto e divertido:
– Ora essa, compadre! Que ideia boa pra chamar matador. Então o homem aí
já despachou pro compadre? E trabalhou direitinho? Quantas vezes?
– Humm, umas quatro, não é, Jardes? Quatro ou cinco? Já perdi as contas.
A voz do matador era grave, um pouco roufenha:
– Quatro, meu patrão. Tudo morte bem matada, tudo na bala. Quatro vezes,
mas sete pessoas. Mas eu posso falar dessas coisas melindrosas na frente do
outro senhor aí?
– Ora, mas é claro que pode, homem. Tanto que nós vamos tratar hoje de
uma encomenda conjunta. Você vai despachar um único sujeitinho, mas vai
despachar para nós dois ao mesmo tempo. Esse filho da puta teve o peito de se
atravessar no caminho do compadre. E no meu também. Então a gente quer o maldito acertando as contas
com o diabo imediatamente.
Valdemar Silva voltou a um assunto que havia despertado sua curiosidade:
– Você falou que em quatro vezes despachou sete defuntos. Como foi isso?
– Bem, é que na primeira vez a gente matou logo quatro; nas outras três,
só um. Digo a gente porque nessa primeira vez a gente atacou em bando. Posso
dizer onde foi, patrão?
– Pois fale, homem, deixe-se de rodeios. O compadre aqui tá sabendo de
tudo. Foi na fazenda que o burro do meu velho deixou praquela vaca assanhada da
minha irmã.
Leon acusou o golpe: sua tia Helga, que ele não
chegara a conhecer, a única irmã daquele monstro!
O pistoleiro continuou:
– Pois é, Seu Valdemar. Eu era bem novinho, tinha acabado de fazer 17
anos. Mas já era bom com revólver e rifle. Meu irmão me levou junto com ele e
os outros seis do bando. A gente fez que era ladrão de gado, entrou na casa,
matou todo mundo que estava lá, até a coitada da empregada velha, que não tinha
nada com a coisa, mas que conhecia a gente, meu irmão, eu e o sogro dele, a
gente era tudo peão daquela fazenda. Aí nós levamos o gado que foi dado em
pagamento pelo seu Adolfo, vendemos e dividimos entre todos. Deu um bom
dinheiro. Ali eu vi que essa profissão de matador era coisa muito boa, em vez
de se matar no trabalho no dia a dia, um cristão saía de vez em quando numa
missão, despachava um e ganhava dinheiro pelo ano inteiro. Pena que a parte de
clientela é muito fraca hoje em dia. Faz pra lá de quinze anos que eu não
despacho mais ninguém.
– Pois agora você vai ter a sua grande oportunidade. Você vai ter que
matar só um sujeitinho de merda, um cara que nem é daqui de Amarante, que você
nem deve conhecer. E vai ganhar cinquenta mil reais.
– Cinquenta mil, meu patrão! Puxa, isso é uma oferta boa demais, o tal
homem deve ser graúdo, importante então. Já lhe digo que aceito. Quer dizer, desde
que o homem não seja padre.
– Não, que bobagem, nós não temos encrenca com nenhum padre. É um
comerciante de São Paulo que veio se estabelecer aqui, há coisa de uns três
meses só. Mas que já causou, nesse tempo tão curto, um monte de problemas para
nós.
– E o senhor tem fotografia do homem?
Silva respondeu rápido:
– Eu tenho. Peguei aqui este jornal. O cara é o dono da nova revenda de
automóveis, lá onde era a concessionária GM. O nome dele é Celso Teles. Celso
Teles, não esqueça. Veja bem a cara do desgraçado aqui no jornal. Ele construiu
uns campos de futebol, diz que vai criar o primeiro time de futebol
profissional de Amarante. Nessa foto grandona ele está junto com os dois
capitães dos times de várzea daqui, mais o dono do time de elite, meu filho
Leon, o único rapaz bonito da foto.
Jardes ficou um longo tempo olhando para aquela fotografia, com uma
expressão estranha, meio aérea. Depois disse:
– E pra quando vocês querem o serviço?
– Pra ontem! – gritou Valdemar Silva. Urgência urgentíssima.
– Calma, compadre. Vamos fazer a coisa do jeito certo. Eu acho que
domingo, depois de amanhã, está de bom tamanho.
– Mas por que domingo, Adolfo?
– Veja o que diz o jornal, nessa reportagem mesmo. Neste domingo vai ser
a estreia do tal Amarante Esporte Clube, vai jogara contra um time de Blumenau,
time profissional. Pois aí diz que criar e fazer crescer esse time é o maior
sonho da vida do homem. Então eu pensei em fazer uma coisa com requintes de
crueldade. Primeiro a gente deixa ele se esbaldar todo, ficar muito feliz e
realizado com o tal time. E aí o Jardes vai lá e acaba com a alegria dele.
– Puta que pariu, alemão, você é fodão mesmo! Que ideia de gênio. Gostei
demais. A gente fura o balão dele bem na hora que ele pensa que vai subir e
ficar por cima de todos. Maravilha! Que seja no domingo, então. E o mais legal
era se pudesse ser ali mesmo no campo, na frente de todo mundo. Mas isso, com
certeza, é arriscado demais pro Jardes.
– Bom, o como e o onde é coisa só minha. O quanto e o quando é com
vocês. Eu aceito os 50 mil e aceito o domingo. O resto, deixem comigo. E quanto
ao pagamento?
– 25 mil agora, 25 mil depois da morte. Não lhe parece bom?
– Tá bom pra mim, é o padrão no ramo. E...?
Adolfo Schlikmann abriu uma gaveta e tirou um talão de cheques.
Preencheu um no valor de 25 mil reais, ao portador.
– Mas em cheque, compadre? Não é dar sopa pro azar?
– Relaxe, Valdemar, o homem é de toda confiança, a gente despacha juntos
há mais de trinta anos. Já paguei ele em cheque outras vezes. Fazemos assim: eu
pago o sinal. Você executa o despacho e depois vai receber o saldo lá com o
Valdemar, na Transportadora. Discretamente. Está certo assim?
– Pois pra mim está certo, certíssimo. Sei que estou tratando com homens
sérios, de palavra. Despacho esse tal de Celso Teles e já posso fazer a reforma
do meu rancho, lá na Baixada. Agora, só uma perguntinha? Vocês já pensaram como é que não vão ficar os
caras do futebol de Amarante, os rapazes dos times de várzea principalmente,
que estão contando com o tal time desse homem pra terem alguma chance?
Adolfo Schlikmann respondeu jocosamente:
– Ora, um bando de vagabundos, homem. Uns cachaceiros, uns merdas. Olhe
aí na foto desse jornal que você está levando com você. Fora o meu filho e o
desgraçado, que é rico, o que são os outros dois, os tais líderes dos times de
várzea? Uns merdas, uns marginais, devem ser operários de construção ou só uns
vagabundos arruaceiros. Por que se preocupar com eles? Ora, Amarante nunca teve
time de futebol profissional e nunca precisou disso. Que se fodam!
Jardes fez que sim com a cabeça, conferiu seu cheque, apanhou a página
de jornal com a fotografia, despediu-se dos dois sócios na empreitada criminosa
e saiu. Para fazer o que tinha que fazer
ia precisar de muita coragem, mas isso ele sempre tivera. Mas, desta vez, ia
precisar da ajuda do filho também.
CONTINUA
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