MILTON MACIEL
47 – O GRANDE DIA DO FUTEBOL
No domingo Amarante explodiu em alegria e celebrações. Às 9 horas da manhã uma enorme comitiva de
automóveis e caminhões foi receber na entrada da cidade a caravana do
Metropolitano de Blumenau, time que disputava a divisão especial, a elite do
futebol do Estado. Vinha com o seu time B, é verdade, com reforço de apenas
dois dos titulares, o goleiro e o lateral direto.
Mas, para Amarante, era um
feito notável ter um time da divisão especial disputando pela primeira vez uma
partida com o seu primeiro e único time de futebol profissional, o novíssimo e
recém-constituído Amarante Esporte Clube, ainda esperando a tramitação dos
documentos de sua inscrição na série D estadual, o primeiro e mais humilde
degrau das divisões de acesso. Mas, como
explicava o orgulhosíssimo Celso Teles, qualquer escada começa invariavelmente
pelo primeiro degrau.
Por isso mesmo o Metropolitano da cidade vizinha era recebido com todas
as honras que se presta a um benemérito, uma equipe de divisão especial que
aceita se rebaixar a jogar contra um timinho que estava apenas emergindo da várzea.
Certo que a grana paga por Celso Teles era um grande incentivo, qual time
pequeno no Brasil podia se dar ao luxo de rejeitar um reforço de caixa
daqueles, caído do céu sem mais nem menos.
O jogo estava marcado para as 10 e 30 da manhã. Após o qual jogadores,
dirigentes, trio de arbitragem e convidados especiais se dirigiriam para a
clássica churrascaria do Etelvino, a Estrela dos Pampas, para um grande
rega-bofe comemorativo. As limitadas arquibancadas para torcedores conheceram
seu primeiro estouro de capacidade, na hora do jogo havia uma enorme multidão
em pé, mas, mesmo assim, todos com ótimas condições de visibilidade do campo.
O time do Amarante estava formado por cinco jogadores do Delfim, entre
eles o excelente cabeceador Leon Schlikmann. Quatro jogadores do Nacional,
sendo Bentinho e Pedro Bala os mais importantes, dois pontas abertos clássicos,
como quase não se vê mais no futebol atual. Eram dois baixinhos endiabrados,
corredores velocíssimos e dribladores de enorme talento, extremamente difíceis
de serem marcados. Junto com o altíssimo Leon, deslocado estrategicamente pelo
treinador Celso Teles para a frente, para ser um homem de referência de área
típico, formavam um trio de ataque de respeito. Eram complementados pelos meias
Rildo Beiçola e Wagner Negão, do Bandeirantes, responsáveis pela ligação
meio-campo/ataque.
A defesa era quase toda do Delfim. O bom goleiro Nando e os dois altos
zagueiros, Na lateral direita operava Giuliano, do Delfim e na esquerda Pavãozinho, do Bandeirantes. Finalmente
o bom alemão Dieter, líder do Bandeirantes, ficava com a função de fazer os
lançamentos mais longos para a corrida dos dois velocistas do Amarante.
De todos os jogadores que experimentara para essa função, o alemão foi o
que se mostrou mais capaz. Tinha mais calma, mais frieza, raciocínio rápido e
uma boa força no lançamento. Mesmo assim, ainda não era o que Celso precisava.
Provavelmente aquela era a posição para a qual ele teria que importar o
primeiro jogador de fora de Amarante. Assim que o treinador do time rival
percebesse a importância do alemão como lançador, colocaria alguém a marcá-lo
individualmente e lá se ia a vantagem do time de Celso. Mas, fiel a seu
compromisso com os times da cidade, começava somente com os melhores jogadores
dos três times locais. Na reserva tinha só quatro homens, os outros não tinham
a menor condição de substituir nem os titulares, nem os eventuais quatro
reservas. O banco do Amarante era minguado, raquítico, insuficiente.
O trio de arbitragem vinha de Florianópolis,
liderado pelo mesmo juiz que apitara as partidas do Torneio Hanashiro Ito,
menos de um mês atrás.
Desta vez havia cobertura real de imprensa. Além da rádio e do jornal
local, de Blumenau veio uma unidade de reportagem de televisão e repórteres de
rádio e jornal também. Além deles, também uma TV e um jornal da capital
mandaram equipes para fazer a cobertura do avento, que “Acendia mais uma luz de esperança no céu do futebol catarinense”,
conforme escrevera um conhecido cronista esportivo da capital.
Na verdade, o que acontecia é que a Teles Automóveis, através de uma
espertíssima gerente operacional e de marketing chamada Carmen De Rios, havia
negociado boas campanhas publicitárias da empresa através dos veículos que
garantissem a mais completa cobertura do evento maior do futebol de Amarante.
Um dia, se ela precisasse, traria a imprensa do Rio e de São Paulo com a maior
facilidade para Amarante. Seria o dia em que ela revelasse ao Brasil que Celso
Romano Teles era o grande Romano, o astro maior do Milan por duas temporadas,
candidato a melhor jogador do mundo no ano em que foi quebrado pela entrada
criminosa daquele zagueiro italiano.
Os humildes jogadores dos times de várzea de Amarante, subitamente
promovidos a craques do promissor time profissional local, não cabiam em si de
tanto orgulho e alegria, com repórteres de rádio e TV entrevistando a todos
eles, antes, no intervalo e depois do jogo. Recitavam todos o seu mantra, o
mesmo que corria pelos corredores e salas da Teles Automóveis como unanimidade:
a vida era uma antes, outra depois de Celso Teles!
O prefeito e o vice, os vereadores com seu presidente da Câmara, todos
eles, situação e oposição estavam presentes ao jogo. Apolítico, Celso Teles
tinha conseguido o prodígio de, em apenas três meses, ter virado uma
unanimidade amarantense.
Bentinho era um dos seus maiores adoradores. Também, põe “depois de Celso Teles” no caso dele. De
torneiro mecânico e garçom do Bicalho, numa dura jornada dupla de mais de
12 horas diárias, fora promovido a
funcionário da Teles Academia, na posição de diretor da escolinha de futebol
para meninos, com um salário que dava em um mês o que ele precisava de seis
para ganhar como torneiro. E agora passara a ganhar seu primeiro salário como
jogador profissional do Amarante. Era de deixar qualquer um doido! E, como se
isso tudo ainda fosse pouco, Celso vivia dizendo que em breve ia tirá-lo da
Academia, para que ele pudesse treinar em tempo integral no time, porque via
nele o primeiro craque com potencial para ser negociado com um clube grande do pais
ou até mesmo de fora dele.
Bentinho vivia nas nuvens, só faltava beijar o chão onde o mago Celso
passava. Para completar, tinha um enorme fascínio pelo jeito que o treinador
tinha de jogar. Aquilo sim é que era um craque completo! Como treinador, não
mandava, mostrava como se faz. E não fazia qualquer coisa, de qualquer jeito, fazia
perfeito. Treinava o time jogando junto, passando de repente do grupo titular
para o reserva, virando automaticamente o jogo a favor daquele para o qual
entrava. Outra coisa notável era a jeito que ele tinha de falar com os
jogadores, nunca como se fosse um “professor”, um técnico de futebol comum.
Parecia mais um irmão mais velho, aconselhando, ensinado e corrigindo os
outros, com uma calma e uma paciência que pareciam inesgotáveis. Era o dono do
time, na prática era o patrão de todos eles. Mas nunca se comportava como
patrão, como feitor. Era um líder, um líder natural e nato, todo mundo o
tratava de chefe, como na empresa de
automóveis.
Mas esse chefe era pronunciado com uma doçura, uma espécie de carinho na
voz de quase todos. O que, no fundo, não passava de cópia da mesma entonação de
voz com a qual ele tratava todo mundo, mais o reconhecimento e, na maioria dos
casos, da gratidão pura e simples que sentiam.
Ali estava o líder perfeito, o amigo, o investidor corajoso que gerava
empregos aos montes, que mexia quase todo mês com o futuro de uma cidade antes
estagnada. A cada mês que se passava, o mantra que seus funcionários e
jogadores recitavam, o “depois de Celso
Teles” era mais e mais aplicável à cidade de Amarante como um todo.
Impressionava demais o enorme investimento que ele tinha feito, sem qualquer
possibilidade de retorno financeiro, terraplenando e gramando todo o campo da
baixada, permitindo a formação não de um só, mas também de dois campos de
futebol públicos, para a várzea, totalmente a disposição de quem quisesse.
Um vereador chegou a propor que a Câmara lhe outorgasse de imediato o
título de “Cidadão Amarantense”. “Este
moço de fora desta cidade fez, em um único mês, o que nenhum outro habitante,
empresário ou governante desta cidade foi capaz de fazer em mais de cinquenta
anos de história da Baixada.” – justificava o vereador em seu arrazoado.
Mas, antes que a moção fosse aprovada por unanimidade, o próprio Celso Teles
procurou o político e suplicou-lhe que não fizesse isso agora. Explicou que era
muito cedo. E disse que pretendia fazer muita, muita coisa mais por Amarante
nos meses seguintes, que a Câmara deveria esperar esse tempo e depois, sim, ele
teria um imenso orgulho em se dizer Cidadão Amarantense. O que ele já se
considerava, independente de títulos. O vereador aceitou os argumentos e suspendeu
a tramitação de seu pedido.
O jogo número um da história do Amarante Esporte Clube foi memorável,
não só como efeméride, mas também como espetáculo esportivo. Terminou empatado
em 2 x 2, para surpresa e regozijo de todos os amarantenses. E poderiam ter o resultado
final plenamente favorável ao time local, não fosse o fato de Celso Teles se
recusar terminantemente a pisar em campo como jogador. Por mais que Leon e os
outros jogadores argumentassem que, ele jogando, a vitória estaria garantida,
que faltava tão pouco para isso, Celso foi peremptório:
– Não, de jeito nenhum, assim nós nunca vamos formar um time vencedor.
Nós vamos ganhar com o futebol de vocês!
Vamos treinar e treinar, tanto coletiva quanto individualmente, até termos um
time competitivo e ajustadinho, que possa ganhar o jogo sem Celso Teles
jogador. Ou vamos perder a partida, o que é perfeitamente normal e não pode ser
razão de vergonha para ninguém que tenha lutado o tempo todo pela vitória. E
que tenha jogado limpo, como vocês sabem que é a primeira e principal exigência
para alguém permanecer na equipe. O Amarante terá que ser reconhecido no
cenário esportivo brasileiro, como um exemplo de disciplina e de ética, de
espírito esportivo e de fair play. O
outro time não é nosso inimigo, o jogador adversário é sempre um colega de
vocês, mesmo quando ele se conduzir mal e for desleal. E o juiz é soberano em
campo, por mais que se engane ou esteja roubando a gente descaradamente.
Jogador nosso pode levar um cartão amarelo muito raramente, por um erro de
entrada numa disputa. Mas nunca pode levar um cartão vermelho por culpa sua.
Aí, pode ser o Pelé do Amarante, vai pro banco por muito tempo; ou vai pra rua
direto.
Se não quis participar como jogador, por mais que, no segundo tempo,
quando o time visivelmente começou a render menos fisicamente, a torcida toda
pedisse: – Celso! Celso! Celso! Entra!
Entra! – a participação dele como treinador foi superlativa. Aos poucos foi
anulando uma a uma as táticas e jogadas do time adversário, ao mesmo tempo em
que ia fazendo alterações de posicionamento inesperadas, que anulavam os esforços
táticos do técnico oponente.
Como resultado, o Amarante sobrou em campo no primeiro tempo, com
visível superioridade tática, terminado o tempo com placar favorável de 1 x 0,
gol de cabeça de Leon, depois que o safo Bentinho ganhou na corrida do lateral
e driblou dois zagueiros, antes de suspender a bola na área, ao alcance da
altura e da enorme impulsão do centroavante amarantense.
Mas, no segundo tempo, o gás do time de Celso foi acabando aos poucos.
Essa era uma deficiência muito grande da equipe, algo que não podia ser
resolvido no curto prazo, que exigiria o trabalho de um preparador físico
especializado, peça que ele precisava ir buscar fora da cidade. Afinal, nenhum
dos seus jogadores tinha rotina de profissional, quase todos ainda trabalhavam
em seus respectivos empregos, não tinham condicionamento físico adequado. À
medida que fossem deixando esses empregos, recebendo bons salários do Amarante
e se convencendo que tinham que se profissionalizar ou seriam substituídos por
profissionais vindos de fora, só então poderiam chegar a um condicionamento
satisfatório.
Com a queda de rendimento físico, Celso foi obrigado a fazer as três
substituições que podia e o time perdeu muito de sua consistência, uma vez que
nenhum dos reservas estava à altura do futebol dos titulares. O Metropolitano
empatou e virou o jogo, já aos 28 minutos do segundo tempo. A vitória dos
visitantes parecia inevitável, os gritos de “Entra, Celso!” se repetiam a todo
momento, quase em tom de súplica. Mas, aos 42 minutos, o alemão fez um
lançamento comprido para a área adversária, procurando a cabeça de Leon. Mas
errou tão feio o cruzamento que a bola foi para o outro lado da área e,
incrivelmente, bateu no travessão, bateu nas costas do goleiro que estava
adiantado e entrou. 2 x 2, para delírio da torcida e dos próprios jogadores do
Amarante!
Pouco depois o jogo acabou e os jogadores e Celso foram carregados em
triunfo, nos ombros de uma torcida mais do que entusiasmada, emocionada. Uma
estreia de gala, sem dúvida.
As “Celsetes”, como já estavam
sendo chamadas por todos na cidade, fizeram um belíssimo papel antes do início
do jogo. Belíssimo em função de serem todas belíssimas: A eterna Miss Amarante;
Gládis, a parruda gostosa; Jeniffer, a negra majestosa; e as também lindas
Paula e Carmen. Apresentaram-se todas com o flamante uniforme do Amarante,
camiseta, shortinho feminino curto, meias e chuteiras. Mas elas não estavam ali
só para deixarem os homens loucos e as mulheres com inveja. Vieram
especificamente para apresentar uma sexta garota.
Era uma mulatinha que contrastava com elas pela pouca beleza do rosto.
Mas que era ninguém menos que Glória Maria, jogadora do time feminino do
Santos, três vezes convocada para a seleção brasileira. E que, agora, estava de
mudança para Amarante, vinha assumir sua condição de treinadora do time
feminino do Amarante Esporte Clube, cuja base estava sendo formada na Teles
Academia, através da escolinha de futebol para meninas, no momento ainda a
cargo do próprio Bentinho.
Glória Maria era uma glória verdadeira do esporte brasileiro. E estava
ali, contratada por Celso Teles, para provar que futebol em Amarante era não
apenas coisa muito séria, como também coisa para homens e mulheres, em
igualdade de condições. Também a equipe feminina iria entrar para disputar as divisões
de acesso, tanto quanto a masculina. E com uma vantagem: havia um número infelizmente
muitíssimo menor de equipes femininas no Brasil, a escalada do Amarante-Mulher,
como passou a ser chamado, haveria de ser, com certeza, muito mais fácil do que
a do time dos homens.
Glória Maria, que compensava sua inegável feiura com uma simpatia
cativante, foi de imediato adotada pelas “Celsetes”,
em cujo ninho foi morar. Mais um apartamento de Sonia Assad alugado para a
Teles Automóveis! Essa era outra que já podia recitar o mantra Teles, seu hotel
agora estava dando lucro pra valer. Apenas três meses atrás, ela jamais poderia
imaginar que isso pudesse acontecer. Estava preparada para esperar anos a fio
até ter as contas do empreendimento fora do vermelho.
CONTINUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário