MILTON MACIEL
51 – E A
MORTE CHEGOU, ENFIM
Fim do cap. 50: "Será que ele não está só engrupindo a gente, querendo se fazer passar por pirado só para se safar? E até para depois, no julgamento, ser considerado incapaz e cumprir pena num manicômio judiciário."
– Pode até ser, mas acho difícil. Pelos testes que eu
fiz, eu diria que tenho uns 70% de chance de estar certo. O cara despirocou
mesmo.
– Bom, se for verdade, o que se faz nesses casos?
– A gente tem que chamar um especialista, um psiquiatra. Melhor que seja
logo um psiquiatra forense ou da polícia, não sei se dá pra se conseguir trazer
um sujeito desses rápido aqui para Amarante. Mas, enquanto a confirmação não
vem, acho que a gente tem que, em primeiro lugar, evitar colocar o indivíduo na
mesma cela com o Silva. E aí eu vejo duas alternativas.
– E quais seriam?
– Bom, você deixa o cara do lado de fora da cela, na sala, onde o Silva
ficava antes, nos bons tempos – pra ele – do safado do Otílio Amaral. Ou eu
levo o cara para o hospital e a gente deixa ele trancafiado num quarto, com
escolta.
– Hum, preciso pensar bem. Não quero complicação pro meu lado depois. Se
o homem vai pro hospital e o outro fica aqui, podem pensar que eu levei dinheiro
desse alemão pra facilitar a vida dele. Não, acho que vou preferir deixar ele
por aqui mesmo. Concordo que do lado de fora da cela, na sala, com uma boa
algema num dos pulsos. Isso me parece mais lógico e menos trabalhoso. O que o
senhor acha?
– Bom, eu também prefiro essa hipótese, porque me dá muito menos
trabalho. Além disso, meu hospital não é sanatório nem clínica psiquiátrica.
Não tenho psiquiatra, nem enfermagem especializada para isso.
– Nesse caso, sogrão, já está resolvido. O cara fica aqui, eu dou um jeito
de manietar o porra, que é pro carcereiro, o Mota, poder dormir sossegado. E,
assim que a gente tiver o laudo psiquiátrico, a gente decide. Se ele está pirado
de fato, vai para um lugar apropriado, passo o abacaxi para o pessoal de Florianópolis,
o sujeito deixa de ser problema meu.
– E se ele estiver mentindo?
– Aí, sogrão, eu vou à forra: enfio o filho da puta na cela com o
Valdemar na mesma hora e ele que se foda!
– É, não chega a ser injusto. Se esse ordinário está tentando enganar a
gente, merece se ferrar mesmo. Valdemar Silva nele.
Nem o delegado, nem o médico perceberam que um leve tremor tomou conta
do corpo de Adolfo Schlikmann. Seus olhos azuis gélidos pareceram piscar, mas
sua fisionomia continuou tão impassível e pétrea como tinha estado desde que o
tinham trazido da prefeitura.
A noite caiu, os prisioneiros foram escoltados aos banheiros e votaram
para a cela. Schlikmann foi acomodado no amplo sofá que pertencia a Valdemar
Silva e teve seu pulso direito algemado à barra de metal do mesmo. Um dos
guardas postou-se do lado de fora da sala e, pouco depois, adormeceu sentado na
cadeira, como fazia sempre. O carcereiro Mota assumiu a vigilância interna,
ficando na sala, próximo ao sofá de Schlikmann, sentado na velha poltrona de
onde tinha os homens na cela bem sob sua vista e onde puxava também seu ronco
nas longas e tediosas noites de vigília, naquela cadeia onde a maior novidade
que acontecia, na noite ou na madrugada, era alguma briga de presos, uma vez na
vida, outra na morte.
Por fim a paz total se fez. Todos os homens na cela dormiam, Silva,
gorducho, roncando mais alto que qualquer outro, secundado pelo bandido do
Paraná, outro motor de popa poderoso. No sofá Schlikmann parecia morto, tal a
imobilidade e o mínimo movimento do peito de sua escassa respiração. Por um
momento Mota chegou a fantasiar com a hipótese de que aquele alemão comprido e
pernóstico morresse de desgosto durante a noite. O que, a bem da verdade, viria
facilitar muito a sua vida de carcereiro. Chegou a desejar que isso
acontecesse.
De fato, aconteceu. Mas com outro preso. Quando o dia amanheceu, outro
homem estava morto!
Mota acordou com dor no pescoço e na coluna, aquela poltrona velha estava
acabando com ele! Levantou e inspecionou os presos: todos dormiam. Notou que o
bandido do Paraná não roncava mais. Aliás, nem mesmo Valdemar Silva estava roncando
àquela hora. Todos os quatro presos dormiam em silêncio.
Caminhou até Schlikmann. O diabo velho continuava respirando como múmia,
mas estava bem vivo, o desgraçado.
Ao clarear do dia, começou a romaria para o banheiro. A cela não tinha
vaso sanitário, a delegacia funcionava em uma casa antiga comum, alugada, que
foi precariamente adaptada para suas funções. Como era difícil terem ali muitos
presos que, no geral, eram quase que só desordeiros, bêbados ou ladrões de
quinquilharias, a estada deles por ali era bem curta. Nunca tinham tido um
bandido verdadeiro, desses perigosos, que exigissem segurança máxima. O primeiro
era aquele sujeito do Paraná, com uma ficha quilométrica, que viera trazido pelo
capanga de Valdemar Silva.
Agora, contudo, raciocinou Mota, a delegacia tinha enfim não só um, mas
dois bandidos de periculosidade máxima, dois assassinos terríveis, serial killers, justamente os dois
homens mais famosos e ricos da cidade: Valdemar Silva e Adolfo Schlikmann, quem
diria!
Mota dirigiu-se à cela para começar o rodízio do banheiro, agora para
quatro homens. Os dois presos mais antigos, os antigos acossadores de Valdemar
Silva, que agora o tratavam com o máximo de respeito e medo, acordaram
espontaneamente, ao simples aproximar-se do carcereiro. Foram e voltaram, um
por um ao banheiro, escoltados por Mota, que tinha o revólver pronto para
qualquer eventualidade, engatilhado na mão.
Agora tinha que chamar os dois presos novos. Surpreendentemente, o
paranaense não respondeu aos chamados de Mota e nem dos outros dois presos
antigos. Parecia ter um sono de chumbo. Mota apanhou a vassoura e deu-lhe um
cutucão com força nas costelas. O corpanzil do homem rolou com estardalhaço no
chão, caindo do estreito catre. Na queda, abalroou o catre em que Valdemar
Silva dormia, fazendo-o cair no chão também.
Só um dos dois esparramados no chão levantou, meio aturdido e xingando:
o bandido do Paraná!
Silva continuou estatelado no chão, a barriga proeminente para cima, os
braços abertos, a boca num esgar estranho.
E os olhos muito
abertos! E imóveis! Estava morto, todos os outros tiveram certeza na hora!
Depois de se certificar disso com testes rápidos, totalmente apavorado,
o carcereiro ousou ligar para o celular do delegado, rezando para que ele
dormisse sem desligar o telefone. Do outro lado uma voz sonolenta respondeu,
irritada:
– Porra, Mota, que caralho! Aconteceu alguma coisa por aí? Não vai me
dizer que um bando de capangas já veio buscar um desses bandidos riquinhos, o
Valdemar Silva. Ele ainda está aí?
– Está, doutor. E esse não tem nenhum perigo de fugir, não.
– Ué, como é que você pode afirmar uma coisa dessas, cara?
– Porque ele está morto, doutor.
– O que?!! Morto?! Tem certeza?
– Absoluta, doutor. Fiz todos os testes. Amanheceu morto, meio frio já.
– Merda! Mas é muito azar meu! E o outro, o Schlikmann?
– Esse está bem, acordado, deitado do mesmo jeito, como uma múmia.
Parece que nem percebeu a zoeira toda por aqui. Acho que nem entende que o
parceiro dele morreu.
– Tá, tô pulando da cama, vou correndo pra delegacia, mas antes vou
passar no meu sogro, preciso arrancar ele da cama também. Ah, segura o praça
aí, não deixa ele sair, pra não espalhar a notícia pela cidade antes do tempo.
Tô indo!
Minutos antes das sete, o delegado Oliveira e seu sogro, Dr. Luzardo, entraram
esbaforidos na delegacia. O médico examinou Valdemar Silva e confirmou a morte
dele. Removeu a maior parte das roupas do corpo, fez um exame minucioso,
enquanto o genro colhia um monte de fotografias com o celular, e estimou:
– Olhem, ainda é uma avaliação grosseira, mas acho que ele morreu há
coisa de umas cinco horas.
– Alguma ideia da causa mortis?
– Ainda não, meu genro. Mas não encontrei qualquer marca de violência no
corpo. Ao menos não durante este exame inicial. Pode ter sido morte natural. Mas
só vamos saber com um autopsia completa. E exames toxicológicos, também.
Oliveira ergueu os olhos de repente para o sofá onde estava Schlikmann
e, por uma fração de segundo, pareceu-lhe ter visto um sorriso de escárnio no
rosto de esfinge do alemão. Imediatamente a desconfiança, com a qual já viera
de casa, virou certeza: Esse filho da puta matou o baixinho, antes
que ele o liquidasse. Mas como?!
Fez um sinal para o sogro e ambos foram para junto do alemão. Que os
ignorou completamente, como se não os estivesse vendo em absoluto. E delegado
examinou a algema que prendia o pulso de Schlikmann ao sofá e mostrou algo para
o sogro:
– Olhe só, marcas vermelhas no pulso e na mão!
O doutor examinou o pulso com cuidado e concordou:
– Tem razão, esse diabo andou tentando escapar, machucou todo o pulso.
Será que...
E começou a puxar a algema para fora, arranhando novamente o pulso magro
e descarnado do homem. Então, para surpresa dos dois, a algema saiu e o pulso
de Schlikmann, esfolado, mas sem sangrar, emergiu livre!
– Filho da puta, ele se soltou! E voltou a se prender, para enganar a
gente! É tão magro que consegue fazer isso. Como será que ele matou o outro?
Fala, seu merda, como você fez isso? Fala, porra!
Adolfo Schlikmann pareceu enfim notar a presença dos dois homens. Passou
a outra mão sobre o pulso machucado, olhou bem nos olhos do delegado, sorriu e
falou:
– São dálias. Ou açucenas. Eu gosto de açucenas...
E continuou olhando para o delegado, mas seus olhos azuis-cinzentos
pareceram tomar um outro rumo, como que fitando o infinito. E ausentou-se
novamente.
– Filho da puta! Para de fingir, desgraçado, você não vai conseguir me
enganar não, assassino de merda! Levanta, porra! Mota, vem cá!
O carcereiro obedeceu.
– Me amarra os pulsos desse palhaço. Com corda, a gente tem lá nos
fundos. E libera a algema, depois, quando eu mandar, mais tarde ou de noite,
você algema ele pelos caniços, isso tem a perna tão fina que dá pra botar a
pulseirinha na boneca e ela não escapa mais de jeito nenhum.
Mota foi e voltou rapidamente, com um pedaço de corda e uma faca afiada
para cortar o excesso. Fez um belo serviço ao redor dos pulsos do alemão, que
sorriu para ele e falou:
– São dálias. Mas eu gosto mais de açucenas.
Então eles viram que a calça do homem em pé foi ficando escura na frente
e um líquido começou a escorrer por sobre o seu pé direito, empoçando no chão
irregular.
– O filho da puta está mijando! Porco nojento! E agora, sogro?
– Bem, agora não tem jeito, amarra o bruto na viatura e leva pro meu
hospital, lá as meninas cuidam dele, tiram essa roupa, botam camisolão. Me
manda um praça, pelo menos, pra ficar de guarda, e a tal algema pra prender a perna
dele na cama. Ou o cara está mesmo pirado, ou é o melhor ator que a gente já
viu na vida. Vou ligar pro Marcondes, lá em Floripa, para ele me providenciar
psiquiatra e legista pra ontem.
– Mas o senhor acha que ele matou o outro ou não?
– Bom, antes de mais nada, a gente precisa da autopsia e exames
complementares, para saber se o homem foi mesmo assassinado. Antes disso não se
pode dizer nada.
– Mas... E se o exame concluir que a morte não foi natural? Ele poderia
ter sido o assassino?
– Sim, tudo é possível. Uma vez que ele podia tirar o pulso da algema...
Pode ter ido até o Silva e praticado o crime, já que o Mota estava dormindo,
como nos confirmou. O sem entrar na cela,
o que não seria problema, porque o Silva estava dormindo praticamente encostado
numa das grades. Mas aí fica o grande enigma: o que ele poderia ter usado para
matar o outro sem deixar qualquer marca de agressão?
O delegado sacudiu a cabeça para os lados, desalentado e disse:
– Puta merda, eu tô ferrado! Já era uma complicação esses dois aqui na
minha delegacia. Imagine agora com um morto e o outro pirado, ainda assim
suspeito de ser o assassino do primeiro. Vai ser o diabo: imprensa, família,
advogados, o povo todo vindo pra cá, querendo jantar cada informaçãozinha...
Que droga!
– Ah, Norberto, por falar em família, temos que dar a notícia pra mulher
e pra filha dele em primeiro lugar, antes que a notícia se espalhe. E temos que
avisar o promotor e o juiz também. Como e que você vai fazer?
– Caramba, mais essa! O que é que eu devo fazer?
– Bem, eu lhe dou uma sugestão: o Celso
Teles. A gente conta para ele já e pede ajuda, ele tem as meninas, aquelas
gatas lindas que trabalham para ele. A filha do Silva mora lá com elas, são
íntimas, elas podem cuidar da garota. E quanto à mãe, acho que também elas
podem tomar uma providência. Ou o Rondelli, quem sabe. Acho bom você fazer isso
já agora. Tem ideia de onde o homem pode estar a estas horas? Já estará
acordado?
– Com certeza na Academia dele. O cara corre e malha todos os dias bem cedo, tem
um vigor impressionante, uma forma física inacreditável.
– E você tem o número do celular dele?
– Sim aqui no meu, é claro. Afinal a gente agiu juntos nessa armação do
“atentado” do Jardes contra ele, não foi? Vou ligar já.
Não deu 10 minutos e Celso Teles já estava na delegacia, com roupa de
ginástica e todo suado ainda, sem ter tido tempo de passar pelo chuveiro.
– Vim voando o mais rápido que pude. Que bomba, hein? O homem manda me
matar num dia e amanhece morto no outro!
– E assassinado pelo parceiro dele no crime, o alemão Schlikmann.
– O que? Mas como foi isso, homem?
– Bem, essa é a minha opinião, eu acho que foi o nazista, pra evitar que
o Silva acabasse com ele, por causa daquele lance dele com a filha. Mas o meu
sogro disse que a gente tem que esperar a autopsia para saber se o cara não
morreu de morte natural. Sente aqui, deixe eu lhe contar como eu acho que a
coisa aconteceu. O alemão acabou de sair daqui agora, o meu sogro vai manter
ele no hospital, sob medicação e vigilância do meu pessoal. Pra mim ele está
fingindo que ficou pinel, doido de pedra, pra escapar. Primeiro do Silva, que
ele apagou. Depois da penitenciária, acaba indo pro manicômio judiciário, fica
numa muito melhor.
O delegado contou tudo o que sabia para Celso Teles e explicou por que
precisava de sua colaboração. Celso ligou dali mesmo para Carmen e Gládis,
dando a notícia e pedindo-lhes que preparassem Larissa para o impacto. Ligou
também para Fúlvio Rondelli, sua participação seria imprescindível.
Sua fadinha já tinha passado pela terrível experiência de ver seu amado
recebendo aqueles tiros no peito, quando então havia desmaiado imediatamente. Passara
a noite toda e a manhã seguinte sedada, dormindo sob efeito de medicamentos
aplicados pelo Doutor Luzardo Assunção. Só havia sido despertada, por ação de
outros fármacos, quando Gládis e Carmen foram lhe levar a notícia de que Celso
Teles estava vivo e muito bem; e o próprio Celso falou com ela, pelo celular de
Carmen. Chegou a tempo de ver seu pai e o detestável Schlikmann sendo levados
presos na viatura, por serem mandantes da tentativa de assassinato, denunciada
pelo próprio Jardes.
Horas depois, passada toda a agitação inicial, Larissa passou sua
segunda noite de amor com Celso Teles, na ampla cama de casal da suíte da casa
dele. E, também, fazendo amor delicadamente dentro da formidável banheira de
hidromassagem, onde ela passara minutos tão agradáveis, esperando enquanto Dona
Eugênia lavava as roupas e a calcinha dela. Agora ela podia fazer amor com a
própria “Dona Eugênia”. Aliás, ela pediu e Celso atendeu: levou-a à
lavanderia, lavou de novo uma calcinha e uma blusa dela, secou-as na máquina,
passou a blusa a ferro, cheirou e beijou a calcinha perfumada.
Então amaram-se ali
mesmo, em pé, Larissa recostada sobre a grande máquina de lavar.
Dona Eugênia era Celso Teles. E Celso Teles era o amor da vida dela. O
amor que não fora levado pela morte, que estava ali com ela, que ela não
deixaria nunca mais enquanto pudesse ter forças para viver, enquanto ele ainda
a quisesse. Larissa Silva sabia que era amada. E sabia que amava, finalmente
sabia que amava loucamente aquele homem maravilhoso. E, por isso, ela era
completamente feliz!
Por causa dessa noite de amor, Larissa ainda estava na casa de Celso
enquanto ele conversava com o delegado na delegacia. Ele ficara de apanhá-la
ali na casa dele, na volta da academia, para juntos tomarem o desjejum e irem
para a firma. Mas quem chegou à casa de Celso foram as espanholitas e padrinho
Fúlvio.
Foi Rondelli quem deu a notícia, sem muitos rodeios, à afilhada. Conhecia
sua menina e sabia o que podia desestruturá-la. A notícia da morte súbita do
pai não teria, de forma alguma, essa capacidade.
CONTINUA
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