quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

ALLINE  DE  TROYES  
MILTON MACIEL 

Janeiro de 366 A D –  Flavius Jovinus, general romano, levava sua legião pelas planícies de Catalaunum, ao longo do rio Marne e das florestas, em plena Gália romana. A batalha decisiva contra os alamanos se prenunciava para qualquer momento. Há dias os dois exércitos faziam um bem estudado jogo de gato e rato, ora avançando, ora recuando, esperando um pelo posicionamento do outro.

Subitamente, no início da noite, um grupo de soldados entrou no acampamento trazendo, a pulso, um civil gaulês de compleição franzina. Vinha manietado e era empurrado com violência pelos homens que o escoltavam. Ao chegarem ao centro da roda formada ao redor da fogueira maior, o líder foi falando:

– Senhor, apanhamos este coelho fujão, que avançava escondido na calada da noite. Caiu em nossa armadilha.

– Sim, mas lutou feito um desgraçado, quebrou a perna de um dos nossos e um ou dois narizes, antes que o conseguíssemos dominar. Parece uma cobra, rola no chão e ataca com as pernas. Mas está bem dominado e amarrado agora.

Um dos chefes mais graduados quis saber:

– E é um maldito espião dos alamanos?

– Não sabemos, senhor. Fala como um gaulês, não tem sotaque, mais isso não impede que seja um espião gaulês vendido ao inimigo.

Um homem alto e corpulento, um oficial de olhos arregalados, dirigiu-se ao prisioneiro:

– Fale, homem! Diga quem é e porque estava se aproximando de nós escondido assim, como um traidor.

Um dos soldados arremessou o civil gaulês ao chão, forçando-o a ficar de joelhos.

– Não sou um traidor! E como poderia me aproximar do exército romano se não fosse assim, escondido?

– Fale com respeito, gaulês maldito! – e esse outro soldado vibrou-lhe um bofetão na cara.

O homem ajoelhado pareceu não acusar o golpe. Virou-se para o agressor e gritou-lhe:

– Como se você também não fosse gaulês, além de covarde! Quero ver você fazer isso comigo se eu estiver desamarrado. Vamos, experimente, se é homem de verdade.

Todos os demais caíram na gargalhada. O soldado, furioso, sacou de um punhal e cortou a corda que prendia os pulsos do civil. Retirou, também a laçada que havia ao redor do pescoço dele. E, erguendo-o com força, pelos dois braços, falou:

–  Muito bem. Você está solto. E daí, seu nanico?

Para surpresa de todos, o franzino civil jogou-se rapidamente no chão, rodopiou com as pernas, apoiando-se apenas em um dos cotovelos, e ficou de frente para o oponente. Ato contínuo, vibrou-lhe, como toda a força, um tremendo pontapé na parte interna da perna esquerda, exatamente na altura do joelho.

A ação foi de uma rapidez tão grande que o soldado agredido e todos os outros só entenderam o que aconteceu segundos depois, quando o soldado berrava de dor no chão, se contorcendo, com a perna esquerda totalmente desconjuntada. O golpe dado pelo pé do franzino lutador havia simplesmente partido em dois a articulação do joelho do outro homem. A dor que ele sentia era assustadora para todos e cada um se imaginou, por um momento, em sua condição. A um sinal de um dos líderes, o homem foi levado embora para uma tenda distante, para que os outros pudessem ficar livres daquele berreiro infernal.

Um dos chefes mandou que o gaulês se erguesse:

– Está aí um tipo de luta que eu nunca vi em toda a minha vida militar. E nem mesmo no circo, entre gladiadores. Onde você aprendeu isso, rapaz?

– Monsieur L’Abbé me ensinou – respondeu o jovem, levantando do chão.

– Um abade? Um padre ensinou isso a você?! Mas como isso é possível?

O rapaz não respondeu nada. Apenas ficou olhando para todos com olhar sombrio. Sombrio e estranhamente sereno.

Um soldado magro e alto dirigiu-lhe a palavra:

– Você parece não ter medo. No seu lugar eu teria. E muito. A sua situação já estava difícil, agora que você quebrou mais um dos nossos, acho que vai ficar impossível.

O jovem gaulês deu de ombros:

– Se eu conseguir ser ouvido pelo chefe de vocês, terá valido a pena. Não tenho medo de morrer, não.

– Quer dizer que você fez tudo isso, esse avanço pela floresta, na escuridão da noite, apenas para poder ser ouvido pelo general Jovinus? Ora, por que razão?

– Porque vocês estão fazendo tudo errado. Parecem uns patetas!

– O que? Que falta de respeito é essa? Quer levar outro tapa na orelha?

– E o senhor quer ser mais um de joelho quebrado? Se não quiser, antes de me agredir, recomendo-lhe que me amarre de novo.

O insólito da situação foi tanto que, por alguns momentos, todos os homens ficaram mudos. Depois, como se tivessem combinado, caíram todos na gargalhada. Inclusive o oficial que falara do tapa na orelha. Ele mesmo disse:

– Você é impossível, gaulês. Possivelmente é um louco. Mas é um homem de muita coragem, temos que reconhecer.

O pequeno gaulês baixou a cabeça em gesto de assentimento e de agradecimento.

– Muito bem, então diga por que razão nós somos uns patetas?

– Porque vocês caíram direitinho dentro da armadilha dos alamanos.

– Que armadilha, rapaz? E o que você entende de estratégia militar?

– Não muito, mas o suficiente para saber que vocês não entendem nada.

O homem de olhos arregalados ficou vermelho e gritou:

– Ora, como ousa! Nós estamos mais do que preparados para surpreender o inimigo amanhã. Quando o sol raiar, cairemos sobre eles como moscas.

– Quando o sol raiar, vocês estarão todos mortos, se não saírem daqui agora. Imediatamente!

Outro oficial, aparentando mais calma e até um certo ar de diversão, falou:

– Ah, é? E o que vai causar a nossa desgraça, jovem gaulês?

– A extrema estupidez do chefe de vocês!

O oficial começou a rir e disse:

– Quer dizer que você tem a audácia de chamar nosso general Jovinus de estúpido?

– Tenho! Por que é verdade.

O homem de olhos arregalados estava possesso:

– EU sou o general Flavius Jovinus! E você vai ser castigado agora mesmo, insolente! Guardas, arranquem-lhe a roupa de cima, quero as costas dele nuas, para receber 50 bastonadas. Já.

Vários homens tomaram o gaulês entre as mãos e tentaram arrancar-lhe a roupa. O homenzinho pareceu ter enlouquecido completamente. Lutou com unhas e dentes literalmente, porque unhou, mordeu, bateu, quebrou mais um nariz com uma cabeçada, enquanto gritava, o tempo todo, a palavra não vezes sem fim.

Mas por fim foi dominado, amarrado, posto de joelhos e então arrancaram-lhe a túnica de tecido rústico que lhe cobria o tórax. Foi quando todos prorromperam em exclamações de admiração e incredulidade.

No peito alvo do jovem gaulês havia dois seios perfeitos e delicados. Era uma mulher!

O oficial fez um sinal para o general e ordenou:

– Cubram a moça imediatamente. E soltem-na!

E, caminhando até onde ele estava ajoelhada, deu-lhe o braço e ajudou-a a erguer-se.

– Quem é você, minha filha? Que loucura é essa?

– Sou ALLINE DE TROYES! – mas a voz da moça agora não tinha mais o tom altivo e agressivo do jovem gaulês. Ela estava nitidamente emocionada por causa de vergonha que havia sentido, ao ter seus seios descobertos ante dezenas de homens.

Também no general Jovinus toda raiva havia passado, substituída por surpresa e por admiração pela extrema coragem – e capacidade de combate – demonstrada por uma frágil mulher. Frágil?!

– Ainda bem que não cheguei a desancar você a bastonadas, moça. Você pode ser insolente, mas a coragem que você demonstrou hoje... Francamente, eu seria grato a Júpiter se meu filho tivesse a metade dela. Então, por favor, conte-nos porque você me chamou de estúpido e disse que amanhã estaremos mortos...

– Porque os alamanos já os envolveram por três lados, por dentro da floresta. E uma outra divisão deles avança para lhes oferecer combate esta noite. Vêm pelo sul e estarão aqui em menos de quatro horas. E vocês terão que lutar contra eles, é claro.

– Bem, se isso fosse verdade, é claro que reagiríamos.

– E, quando vocês estiverem no auge do combate com essa divisão, as outras três divisões deles chegarão e virão apanhá-los pelas costas.

– Mas como você pode saber isso? Você, apenas uma menina. Quantos anos você tem?

– Dezessete, general. Dezessete anos, seis meses e três dias. Os três dias mais importantes da minha vida, os três dias em que vaguei por esta floresta, sem alimento, de canto para canto, me escondendo e vendo a formação e o avanço dos alamanos. E ouvindo, em um dos acampamentos, o detalhamento dos planos deles.

– Mas você consegue entender o idioma deles?

– Perfeitamente, senhor.

– Pode passar por uma prova?

– Por quantas quiser, senhor.

O general ordenou que dois prisioneiros alamanos fossem imediatamente trazidos até ali. Quando estes chegaram, falou a Alline de Troyes:

– Muito bem, converse com esses dois homens.

Aline interpelou os prisioneiros, falou-lhe do ataque imediato e eles, demonstrando imenso medo, confirmaram tudo. Tinham medo de serem mortos por seus próprios companheiros, na escuridão da noite. E faziam insistentes sinais para os romanos, apontando para o sul. O general e seus comandados entenderam o que aquilo significava.

– Eles dizem que devemos ir para o sul, é isso?

– Isso mesmo senhor. Marchar agora, incontinenti. Sua formação é muito maior e muito mais forte, mais bem equipada do que a dos alamanos que avançam pelo sul, para servirem de isca. Se andarmos em direção e eles, vamos encontrá-los em coisa de duas horas, em terreno plano. Então eles serão derrotados e perderão uma quarta parte de suas tropas. E, por sua vez, quando os regimentos que avançam pela floresta, na manobra em pinça, chegarem aqui, não encontrarão ninguém. Perderão o fator surpresa. E, quando a luz do dia estiver alta, eles poderão se defrontar com o avanço de sua legião, que retorna do sul.

Flavius Jovinus deliberou com seus oficiais por vários minutos. Ele e muitos outros comandantes estavam com serias dúvidas. Mas o jovem oficial que fora simpático a Alline parecia totalmente convencido pelos argumentos dela e foi logrando convencer seus colegas um a um.

Aline impacientava-se. O tempo era cada vez mais curto. Interrompeu a discussão:

– Se vocês continuarem perdendo tempo, os alamanos vão nos apanhar aqui numa ratoeira. Ao menos, não quero morrer sem lutar. Ordenem que me dêem um punhal e um arco com flechas.

– Você é louca, menina! Guerra é coisa para homens!

– De joelhos e narizes quebrados?

O oficial simpático riu escancaradamente e adiantou-se até Alline, com um arco e uma aljava. A jovem entendeu e não se fez de rogada. Mantendo a aljava na mão dele, armou a primeira flecha e alvejou em cheio um poste de tenda, a uns quinze metros de distância. E, de imediato, mandou mais três flechas no mesmo poste, quase que no mesmo lugar.

Olhou para todos com o olhar desafiador do jovem gaulês que chegara, sorriu para o oficial e perguntou?

– Posso ficar com todas as flechas?

– Claro, moça. Que dúvida. Olhe, há poucos minutos eu estava pensando como é que nós iríamos defendê-la em caso de batalha. Agora eu até que ficaria contente se soubesse que você é que está me defendendo com esse seu arco e essa sua pontaria.

– E, acima de tudo. Com essa coragem incrível – completou o general Jovinus. Que os deuses a protejam e bendigam, jovem Alline de Troyes.


CONTINUA...

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