ALLINE DE TROYES - 7a. Parte: UM CERTO GILLES DE TROYES
MILTON MACIEL
Fim da 6ª. parte:
Quando todos saíram, eu não sabia o que fazer. Estava
embaraçada, aquele pedido louco tinha saído nem sei como. Resolvi simplificar e
falar a verdade:
– Perdão, Monsieur L’Abbé! Nem sei por que falei isso. Eu
nunca me confessei e nem sei se sou cristã direito.
7ª. parte: UM CERTO GILLES DE TROYES
– Ora, minha
filha, isso não tem a menor importância. Você não precisa confessar pecados e
obter absolvição por meio de um padre. Acostume-se a resolver seus problemas
diretamente com Deus. Você pode usar Jesus como um intermediário, se preferir.
Mas nunca seja uma lambedora de botinas de padre, como sua mãe e sua irmã. E
agora fale, que eu sei que foi por isso que você fez seu estranho pedido. Você
quer apenas conversar comigo, talvez esclarecer certas coisas, talvez pedir outras.
Pois fale. E peça sem receio. Se estiver ao meu alcance, eu terei muito gosto em atendê-la e
premiar assim sua grande coragem.
Eu estava
encantada com aquele homem tão gentil e generoso. E tão sagaz e perspicaz, também,
o que demonstrara amplamente ao compreender o papel de minha mãe e de Millène e
lhes impor as penitências. Então não consegui segurar a língua, como de hábito.
A sinceridade direta, às vezes rude, é um dos meus males:
– Reverendo, eu
não esperava tudo isso do senhor. Estou encantada. Estou é maravilhada com o
senhor. Nunca vi um homem tão marcante. E tão bonito também.
Falei isso e
fiquei vermelha. O abade riu, divertido, do meu embaraço e comentou:
– Minha filha,
isso não é coisa que se diga para um padre. Vai que ele acredite e incorra no
pecado da vaidade.
– Perdão,
senhor, perdão! Eu não ia dizer isso, mas quando vi já tinha saído.
– Muito bem,
jovem Alline. O que há de tão importante que você queira conversar comigo?
– É a escola, senhor. Meu pai nunca me deixou
ir à escola. Só os meus irmãos podem ir, porque são homens. Estudam na escola
de sua abadia, senhor. Há vários anos.
– E você e sua
irmã...
– Minha irmã é
analfabeta como minha mãe e é feliz com isso. Mas eu quero saber, quero
aprender, reverendo padre. E tenho uma
coisa que, esta sim, quero lhe falar sob o sigilo de confessionário: eu sei ler e escrever! Tanto em gaulês
quanto em latim. Meus irmãos me ensinaram isso; mas, se meu pai souber, é capaz
de matá-los.
– Talvez antes,
sim. Mas agora, não creio. Dá para ver que seu pai tem um enorme orgulho de
você.
– Talvez... Mas
não quero que ele saiba, seria o mesmo que trair meus irmãos, o senhor
compreende?
– Compreendo,
Alline. E vou ter que somar mais uma qualidade às que já percebi em você: Além
de coragem, você tem sinceridade, franqueza, gratidão e lealdade. Realmente
admirável, numa mocinha tão nova. E ainda outras muito importantes também:
inteligência e ânsia de saber. Você é uma jóia rara, menina. Seria uma lástima
ver todo esse talento e essa retidão de caráter se desperdiçarem neste lugarejo
ou, pior ainda, sufocados por um marido ignorante e dominador e por uma penca
de filhos.
– Ah, reverendo,
esse é o meu outro pedido: Não quero casar! Meus pais já me trouxeram dois
pretendentes, mas eu consegui eliminá-los. Não são histórias muito bonitas,
porque eu agredi um deles e agredi as três filhas do outro. Mas juro que foi só
para apavorá-los e forçá-los a não me quererem.
– Ah, é verdade,
esqueci de outra grande qualidade sua: a guerreira! Por causa dessa eu lhe
tenho ainda mais respeito, minha jovem. Eu gostaria de poder ajudá-la
realmente. Deixe-me pensar um pouco.
E o senhor abade
levantou e começou a caminhar pela sala. De vez em quando ele se aproximava de
mim e me fazia alguma pergunta:
– Com que então
você sabe ler e escrever. E quer aprender mais?
– Muito mais,
reverendo. Quer ter livros para ler, eu nunca peguei um livro nas mãos. Deve
ser maravilhoso.
Daí a pouco ele
voltava e perguntava:
– E você não
quer casar! Não é este o sonho de toda mulher?
– Não, senhor
abade. De jeito nenhum. Não quero casar nunca! Não quero ser escrava de um
homem. Quero ser livre para aprender e andar por este mundo de Deus.
– Mas... e os
perigos para uma mulher, neste mundo de machos violentos?
– O senhor mesmo
respondeu há pouco: Eu sou uma guerreira. Racho-lhes a cabeça, se for preciso.
O abade riu e
voltou a caminhar. Depois, retornando a mim, falou:
– E você
sabe lutar! E gostaria de aprender mais?
– Gostaria de
aprender a lutar com armas de verdade, senhor. Com espada, com arco e flecha,
com lança.
– Muito bem,
muito bem, já chega! Hoje, quando eu for embora para Troyes, você vem comigo.
Você teria coragem?
Meu coração
disparou. Era bom demais para ser verdade. Parecia um sonho: ir embora para
Troyes com aquele homem maravilhoso, poderoso, que poderia me garantir o que eu
mais queria neste mundo: educação! Caí de joelhos ante o abade e respondi:
– Agora mesmo,
se o determinar, senhor! Serei sua serva mais humilde, farei tudo o que o
senhor mandar. Lavarei pisos, limparei latrinas. Leve-me sim, por favor. Mas
diga-me que vai me dar instrução, leitura, livros.
– Todos os
livros da abadia, Alline, embora a maior parte sejam umas chatices de padre que
nem eu aguento ler. Mas há muitos livros bons, de geografia, de história, de astronomia, de
botânica...
– Que maravilha, senhor! Mas... como será com os meus pais ? Será que eles permitirão?
– Bem, com seu pai acho que posso me entender.
Quanto à sua mãe, eu posso trocar a anuência dela pelo perdão a uma certa e
incômoda penitência para duas mulheres...
E caímos os dois
na gargalhada. Naquele momento eu senti que estava nascendo uma grande
cumplicidade entre o senhor abade e eu. Quando ele riu, colocando sobre mim aqueles
olhos verdes, eu me senti como se estivesse em casa, como se sempre estivesse
estado esperando por ele. E senti que ele ia fazer minha vida se transformar
num verdadeiro conto de fadas.
– Sentiu? Você
disse sentiu?
– Sim, general.
Senti! Foi uma certeza que me veio na mente e no coração, inteira, pronta! Nunca mais duvidei disso.
– E foi assim
que aconteceu?
– Exatamente
assim, centurião. Por três anos maravilhosos. Os anos em que Gilles de Troyes
viveu na abadia, ao lado de Monsieur L’Abbé.
– Gilles de
Troyes?! E quem é esse, agora?
– É alguém que vai dormir e enfim descansar,
senhores. Peço-lhes que compreendam, agora estou mesmo exausta. Amanhã
continuaremos. Pode ser?
– Claro, claro,
jovem. Já nos vamos. Quer que deixe a tocha? Não? Certo, vamos levá-la então.
Bom resto de noite, bom descanso, guerreira da Gália.
Deixemos que a jovem desfrute do justo repouso do guerreiro e reassumamos, daqui em diante, a narrativa por ela:
Alline fez um
leve aceno com a cabeça. Em seguida, o sono chegou como um reposteiro pesado que
desabasse sobre ela; e a moça se jogou cobre o catre manchado de sangue,
dormindo pesadamente até o sol raiar na manhã seguinte.
Quando saiu de
sua tenda no início da manhã, a jovem gaulesa, sem nem sequer procurar o que
comer, enfiou-se de imediato na grande tenda em que os feridos romanos eram atendidos,
oferecendo ajuda para os enfermeiros práticos. Estes estavam completamente
esgotados por uma noite de vigília e de trabalho incessante com homens feridos,
homens febris e homens moribundos.
Em um catre um
soldado agonizava, delirando em febre, com uma flecha quebrada encravada fundo
no peito, perdendo um sangue que não podia ser contido. O enfermeiro que estava
próximo fez sinal com a cabeça que aquele já era um caso perdido. Aline
então tomou um escudo que estava caído à entrada da tenda e saiu, indo em
busca dos resíduos da grande fogueira usada durante a noite. Pediu um gládio a
um vigia e, com ele, retirou muitas brasas da fogueira e colocou-as sobre o
escudo. Em seguida levou o escudo, voltado para cima com as brasas, para a
tenda-enfermaria.
Ali chegando,
colocou o escudo ao pé do catre do homem com a flecha e, sacando do seu punhal,
colocou-o com a lâmina afiada dentro das brasas. Ato contínuo, dedicou-se a
avivar essas brasas com o movimento rápido de um pedaço de madeira estreita, que arrancou
do encosto do que um dia tinha sido uma cadeira de campanha. Quando a lâmina da
arma já estava ficando rubra, a gaulesa levou-a de imediato até o ferimento do
soldado delirante e aumentou e aprofundou o corte do ferimento, para os dois lados. E fez sinal
para o enfermeiro, para que recolocasse a lâmina do punhal nas brasas, avivando-as
sempre.
O ferido, ainda
que delirantete, acusou a dor; e gritou ainda mais quando Aline, apoiando um
joelho sobre o peito dele, colocou suas duas mãos no pedaço de flecha e puxou-a
violentamente para cima, arrancando-a de onde estava. Mais sangue vivo começou a esguichar com
força do enorme ferimento. Mas Alline, recebendo de novo o punhal de lâmina
rubra, aplicou-o em todas as partes daquele buraco vermelho. Um cheiro de carne
assada veio forte junto com a fumaça esbranquiçada que subia. Mas, aos poucos, o sangramento
foi contido, à medida que mais vezes a arma era levada ao braseiro e era
reintroduzida rubra na cratera no peito do homem. Este, a esta altura, estava
já totalmente sem consciência.
– Ótimo, que bom
que ele desmaiou – falou a moça, com um quase sorriso nos lábios.
Três enfermeiros
estavam agora ao lado dela, vendo-a agir rapidamente sobre o soldado
desacordado, repetindo ainda duas vezes a operação de cauterização. Incrível: a
guerreira de algumas horas atrás agora agia como se fosse um deles. E, para
surpresa deles, empregava toda aquela energia para tentar tratar de um
condenado à morte, um praticamente moribundo, coisa que eles jamais teriam
cogitado ou perdido tempo em fazer.
Mais surpresos
ainda ficaram quando ela lhes pediu que não tocassem na ferida cauterizada,
deixando-a aberta, um buraco enegrecido onde caberia o punho de uma criança.
Ela então correu à sua tenda e voltou em menos de um minuto, trazendo um
pequeno frasco na mão. Dele verteu um pó de cor cinza na ferida e, forçando a
abertura dos lábios do homem desacordado, fez cair um pouco do pó também em sua
boca.
A seguir, em
nova manobra surpreendente para os enfermeiros, a gaulesa apanhou um pedaço de
trapo para ferimentos e levou-a também ao braseiro improvisado, passando-o
cuidadosamente perto das brasas até que o tecido foi ficando amarelado e quase
pegou fogo. Então aplicou-o quente e dobrado
sobre a grande ferida e pediu que um dos enfermeiros terminasse de
enfaixar o peito do homem.
E retirou-se em seguida, dirigindo-se à outra grande
tenda de campanha, onde os homens feridos eram todos inimigos, alamanos. Ali
havia só um enfermeiro para cuidar de todos e o homem parecia mais morto do que
vivo, de tão cansado e sonolento que estava. Alline disse que, por ordem do
general, tinha vindo substituí-lo, o que fez o homem dar um grito de alegria.
Imediatamente ele se jogou no chão, ali mesmo, e começou a dormir profundamente.
A jovem de
Troyes passou o resto da manhã tratando dos feridos alamanos, pensando cortes,
aplicando o misterioso pó que o velho druida lhe dera na abadia, sob juramento
de sigilo total. Fechou também alguns pares de olhos dos que já tinham deixado
esta vida. E foi ali, na tenda dos alamanos prisioneiros feridos, que o
centurião Caius Marcellus acabou por encontrá-la, depois de procurá-la
incessantemente por todo o acampamento, pelo riacho, pelos arredores da
floresta. Por um momento chegaram os romanos a supor que a jovem gaulesa
tivesse ido embora durante a noite. Mas, revistando sua tenda, viram que ela
não havia levado nenhuma arma consigo, exceto, possivelmente o pequeno punhal.
Foi a vez do
general ficar mortalmente preocupado:
– Pelos deuses,
Marcellus. Será que outros malditos bêbados entraram na tenda rasgada durante a
madrugada e sequestraram a menina?
– Não acredito,
senhor. Alline de Troyes teria lutado, ainda que uma decúria inteira tivesse
entrado ali. Nós veríamos os estragos na tenda. E ali tudo está em ordem. Por
favor, senhor, deixe-me continuar procurando mais um pouco.
– Bem, pensando
assim... acho que você tem razão. Essa menina tem fibra demais, é uma lutadora
mesmo. É, você tem razão, pode ser que ela esteja por aí. Mas onde?
– Perdão,
senhores – disse um decurião que passava – se me intrometo em sua conversa. Mas
se é da jovem gaulesa que procuram o paradeiro, eu a vi entrar, de manhã bem
cedo, na tenda dos romanos feridos.
– Os feridos!
Pode ser, Marcellus, vamos verificar imediatamente!
Não encontraram
a gaulesa dentro da tenda, mas encontraram a história de sua inacreditável
atuação com o legionário flechado.
– Por Marte
guerreiro! Mas o que essa moça não sabe fazer? Há pouco tirava vidas, agora
elas as salva. Embora, no caso do pobre Eudorus, eu creia que nem Esculápio possa mais salvá-lo.
– Olhe,
Marcellus, eu não duvido que Esculápio não possa salvar esse seu cunhado. Mas
tenho minhas dúvidas se essa menina não é capaz de fazê-lo. Sinceramente...
Dela estou me acostumando a esperar tudo. E sempre o que não se pode, em sã consciência, esperar. Mas se ela já saiu daqui onde, poderá estar agora?
– Com os
alamanos, general! Acho que já sei onde ela pode estar.
Marcellus correu
para a tenda ao lado e, de fato, lá estava Alline de Troyes, amparando a cabeça
de um inimigo ferido e ajudando-o a beber água. Marcellus ficou um longo tempo
parado na entrada da grande tenda, contemplando aquele quadro. E, coisa que há
muito tempo não lhe acontecia, sentiu um nó na garganta e as lágrimas quase lhe
subiram aos olhos. Que coisa inacreditável, inimaginável, o que estava vendo
aquela quase criança fazer agora... Pelos deuses, mas quem era essa Alline de
Troyes na verdade, que sempre tinha uma coisa nova e surpreendente para mostrar
a cada dia?!
Então, subitamente, ele se
lembrou da pergunta que fizera a ela no fim da noite anterior, quando haviam,
ele e o general, deixado a tenda da gaulesa:
Gilles de
Troyes? E quem é esse agora?
– É alguém que vai dormir e enfim descansar,
senhores. Peço-lhes que compreendam, agora estou mesmo exausta. Amanhã
continuaremos. Pode ser?
E então
compreendeu, perfeitamente, que Gilles de Troyes era o nome do jovem gaulês
atrevido que lhes fora apresentado amarrado na noite de sua chegada ao
acampamento. Gilles de Troyes era simplesmente Alline de Troyes em sua
identidade masculina.
Continua: GILLES DE TROYES NA ABADIA
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