terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 7a. Parte: UM CERTO GILLES DE TROYES  
MILTON MACIEL

Fim da 6ª. parte:
Quando todos saíram, eu não sabia o que fazer. Estava embaraçada, aquele pedido louco tinha saído nem sei como. Resolvi simplificar e falar a verdade:

– Perdão, Monsieur L’Abbé! Nem sei por que falei isso. Eu nunca me confessei e nem sei se sou cristã direito.

7ª. parte: UM CERTO GILLES DE TROYES
– Ora, minha filha, isso não tem a menor importância. Você não precisa confessar pecados e obter absolvição por meio de um padre. Acostume-se a resolver seus problemas diretamente com Deus. Você pode usar Jesus como um intermediário, se preferir. Mas nunca seja uma lambedora de botinas de padre, como sua mãe e sua irmã. E agora fale, que eu sei que foi por isso que você fez seu estranho pedido. Você quer apenas conversar comigo, talvez esclarecer certas coisas, talvez pedir outras. Pois fale. E peça sem receio. Se estiver ao meu alcance, eu terei muito gosto em atendê-la e premiar assim sua grande coragem.

Eu estava encantada com aquele homem tão gentil e generoso. E tão sagaz e perspicaz, também, o que demonstrara amplamente ao compreender o papel de minha mãe e de Millène e lhes impor as penitências. Então não consegui segurar a língua, como de hábito. A sinceridade direta, às vezes rude, é um dos meus males:

– Reverendo, eu não esperava tudo isso do senhor. Estou encantada. Estou é maravilhada com o senhor. Nunca vi um homem tão marcante. E tão bonito também.

Falei isso e fiquei vermelha. O abade riu, divertido, do meu embaraço e comentou:

– Minha filha, isso não é coisa que se diga para um padre. Vai que ele acredite e incorra no pecado da vaidade.

– Perdão, senhor, perdão! Eu não ia dizer isso, mas quando vi já tinha saído.

– Muito bem, jovem Alline. O que há de tão importante que você queira conversar comigo?

– É a escola, senhor. Meu pai nunca me deixou ir à escola. Só os meus irmãos podem ir, porque são homens. Estudam na escola de sua abadia, senhor. Há vários anos.

– E você e sua irmã...

– Minha irmã é analfabeta como minha mãe e é feliz com isso. Mas eu quero saber, quero aprender, reverendo padre.  E tenho uma coisa que, esta sim, quero lhe falar sob o sigilo de confessionário: eu sei ler e escrever! Tanto em gaulês quanto em latim. Meus irmãos me ensinaram isso; mas, se meu pai souber, é capaz de matá-los.

– Talvez antes, sim. Mas agora, não creio. Dá para ver que seu pai tem um enorme orgulho de você.

– Talvez... Mas não quero que ele saiba, seria o mesmo que trair meus irmãos, o senhor compreende?

– Compreendo, Alline. E vou ter que somar mais uma qualidade às que já percebi em você: Além de coragem, você tem sinceridade, franqueza, gratidão e lealdade. Realmente admirável, numa mocinha tão nova. E ainda outras muito importantes também: inteligência e ânsia de saber. Você é uma jóia rara, menina. Seria uma lástima ver todo esse talento e essa retidão de caráter se desperdiçarem neste lugarejo ou, pior ainda, sufocados por um marido ignorante e dominador e por uma penca de filhos.

– Ah, reverendo, esse é o meu outro pedido: Não quero casar! Meus pais já me trouxeram dois pretendentes, mas eu consegui eliminá-los. Não são histórias muito bonitas, porque eu agredi um deles e agredi as três filhas do outro. Mas juro que foi só para apavorá-los e forçá-los a não me quererem.

– Ah, é verdade, esqueci de outra grande qualidade sua: a guerreira! Por causa dessa eu lhe tenho ainda mais respeito, minha jovem. Eu gostaria de poder ajudá-la realmente. Deixe-me pensar um pouco.

E o senhor abade levantou e começou a caminhar pela sala. De vez em quando ele se aproximava de mim e me fazia alguma pergunta:

– Com que então você sabe ler e escrever. E quer aprender mais?

– Muito mais, reverendo. Quer ter livros para ler, eu nunca peguei um livro nas mãos. Deve ser maravilhoso.

Daí a pouco ele voltava e perguntava:

– E você não quer casar! Não é este o sonho de toda mulher?

– Não, senhor abade. De jeito nenhum. Não quero casar nunca! Não quero ser escrava de um homem. Quero ser livre para aprender e andar por este mundo de Deus.

– Mas... e os perigos para uma mulher, neste mundo de machos violentos?

– O senhor mesmo respondeu há pouco: Eu sou uma guerreira. Racho-lhes a cabeça, se for preciso.

O abade riu e voltou a caminhar. Depois, retornando a mim, falou:

–  E você sabe lutar! E gostaria de aprender mais?

– Gostaria de aprender a lutar com armas de verdade, senhor. Com espada, com arco e flecha, com lança.

– Muito bem, muito bem, já chega! Hoje, quando eu for embora para Troyes, você vem comigo. Você teria coragem?

Meu coração disparou. Era bom demais para ser verdade. Parecia um sonho: ir embora para Troyes com aquele homem maravilhoso, poderoso, que poderia me garantir o que eu mais queria neste mundo: educação! Caí de joelhos ante o abade e respondi:

– Agora mesmo, se o determinar, senhor! Serei sua serva mais humilde, farei tudo o que o senhor mandar. Lavarei pisos, limparei latrinas. Leve-me sim, por favor. Mas diga-me que vai me dar instrução, leitura, livros.

– Todos os livros da abadia, Alline, embora a maior parte sejam umas chatices de padre que nem eu aguento ler. Mas há muitos livros bons, de geografia, de história, de astronomia, de botânica...

–  Que maravilha, senhor! Mas... como será com os meus pais ? Será que eles permitirão?

–  Bem, com seu pai acho que posso me entender. Quanto à sua mãe, eu posso trocar a anuência dela pelo perdão a uma certa e incômoda penitência para duas mulheres...

E caímos os dois na gargalhada. Naquele momento eu senti que estava nascendo uma grande cumplicidade entre o senhor abade e eu. Quando ele riu, colocando sobre mim aqueles olhos verdes, eu me senti como se estivesse em casa, como se sempre estivesse estado esperando por ele. E senti que ele ia fazer minha vida se transformar num verdadeiro conto de fadas.

– Sentiu? Você disse sentiu?

– Sim, general. Senti! Foi uma certeza que me veio na mente e no coração, inteira, pronta!  Nunca mais duvidei disso.

– E foi assim que aconteceu?

– Exatamente assim, centurião. Por três anos maravilhosos. Os anos em que Gilles de Troyes viveu na abadia, ao lado de Monsieur L’Abbé.

Gilles de Troyes?! E quem é esse, agora?

–  É alguém que vai dormir e enfim descansar, senhores. Peço-lhes que compreendam, agora estou mesmo exausta. Amanhã continuaremos. Pode ser?

– Claro, claro, jovem. Já nos vamos. Quer que deixe a tocha? Não? Certo, vamos levá-la então. Bom resto de noite, bom descanso, guerreira da Gália.

Deixemos que a jovem desfrute do justo repouso do guerreiro e reassumamos, daqui em diante, a narrativa por ela:

Alline fez um leve aceno com a cabeça. Em seguida, o sono chegou como um reposteiro pesado que desabasse sobre ela; e a moça se jogou cobre o catre manchado de sangue, dormindo pesadamente até o sol raiar na manhã seguinte.

Quando saiu de sua tenda no início da manhã, a jovem gaulesa, sem nem sequer procurar o que comer, enfiou-se de imediato na grande tenda em que os feridos romanos  eram atendidos, oferecendo ajuda para os enfermeiros práticos. Estes estavam completamente esgotados por uma noite de vigília e de trabalho incessante com homens feridos, homens febris e homens moribundos.

Em um catre um soldado agonizava, delirando em febre, com uma flecha quebrada encravada fundo no peito, perdendo um sangue que não podia ser contido. O enfermeiro que estava próximo fez sinal com a cabeça que aquele já era um caso perdido. Aline então tomou um escudo que estava caído à entrada da tenda e saiu, indo em busca dos resíduos da grande fogueira usada durante a noite. Pediu um gládio a um vigia e, com ele, retirou muitas brasas da fogueira e colocou-as sobre o escudo. Em seguida levou o escudo, voltado para cima com as brasas, para a tenda-enfermaria.

Ali chegando, colocou o escudo ao pé do catre do homem com a flecha e, sacando do seu punhal, colocou-o com a lâmina afiada dentro das brasas. Ato contínuo, dedicou-se a avivar essas brasas com o movimento rápido de um pedaço de madeira estreita, que arrancou do encosto do que um dia tinha sido uma cadeira de campanha. Quando a lâmina da arma já estava ficando rubra, a gaulesa levou-a de imediato até o ferimento do soldado delirante e aumentou e aprofundou o corte do ferimento, para os dois lados. E fez sinal para o enfermeiro, para que recolocasse a lâmina do punhal nas brasas, avivando-as sempre.

O ferido, ainda que delirantete, acusou a dor; e gritou ainda mais quando Aline, apoiando um joelho sobre o peito dele, colocou suas duas mãos no pedaço de flecha e puxou-a violentamente para cima, arrancando-a de onde estava. Mais sangue vivo começou a esguichar com força do enorme ferimento. Mas Alline, recebendo de novo o punhal de lâmina rubra, aplicou-o em todas as partes daquele buraco vermelho. Um cheiro de carne assada veio forte junto com a fumaça esbranquiçada que subia. Mas, aos poucos, o sangramento foi contido, à medida que mais vezes a arma era levada ao braseiro e era reintroduzida rubra na cratera no peito do homem. Este, a esta altura, estava já totalmente sem consciência.

– Ótimo, que bom que ele desmaiou – falou a moça, com um quase sorriso nos lábios.

Três enfermeiros estavam agora ao lado dela, vendo-a agir rapidamente sobre o soldado desacordado, repetindo ainda duas vezes a operação de cauterização. Incrível: a guerreira de algumas horas atrás agora agia como se fosse um deles. E, para surpresa deles, empregava toda aquela energia para tentar tratar de um condenado à morte, um praticamente moribundo, coisa que eles jamais teriam cogitado ou perdido tempo em fazer.

Mais surpresos ainda ficaram quando ela lhes pediu que não tocassem na ferida cauterizada, deixando-a aberta, um buraco enegrecido onde caberia o punho de uma criança. Ela então correu à sua tenda e voltou em menos de um minuto, trazendo um pequeno frasco na mão. Dele verteu um pó de cor cinza na ferida e, forçando a abertura dos lábios do homem desacordado, fez cair um pouco do pó também em sua boca.

A seguir, em nova manobra surpreendente para os enfermeiros, a gaulesa apanhou um pedaço de trapo para ferimentos e levou-a também ao braseiro improvisado, passando-o cuidadosamente perto das brasas até que o tecido foi ficando amarelado e quase pegou fogo. Então aplicou-o quente e dobrado  sobre a grande ferida e pediu que um dos enfermeiros terminasse de enfaixar o peito do homem. 

E retirou-se em seguida, dirigindo-se à outra grande tenda de campanha, onde os homens feridos eram todos inimigos, alamanos. Ali havia só um enfermeiro para cuidar de todos e o homem parecia mais morto do que vivo, de tão cansado e sonolento que estava. Alline disse que, por ordem do general, tinha vindo substituí-lo, o que fez o homem dar um grito de alegria. Imediatamente ele se jogou no chão, ali mesmo, e começou a dormir profundamente.

A jovem de Troyes passou o resto da manhã tratando dos feridos alamanos, pensando cortes, aplicando o misterioso pó que o velho druida lhe dera na abadia, sob juramento de sigilo total. Fechou também alguns pares de olhos dos que já tinham deixado esta vida. E foi ali, na tenda dos alamanos prisioneiros feridos, que o centurião Caius Marcellus acabou por encontrá-la, depois de procurá-la incessantemente por todo o acampamento, pelo riacho, pelos arredores da floresta. Por um momento chegaram os romanos a supor que a jovem gaulesa tivesse ido embora durante a noite. Mas, revistando sua tenda, viram que ela não havia levado nenhuma arma consigo, exceto, possivelmente o pequeno punhal.

Foi a vez do general ficar mortalmente preocupado:

– Pelos deuses, Marcellus. Será que outros malditos bêbados entraram na tenda rasgada durante a madrugada e sequestraram a menina?

– Não acredito, senhor. Alline de Troyes teria lutado, ainda que uma decúria inteira tivesse entrado ali. Nós veríamos os estragos na tenda. E ali tudo está em ordem. Por favor, senhor, deixe-me continuar procurando mais um pouco.

– Bem, pensando assim... acho que você tem razão. Essa menina tem fibra demais, é uma lutadora mesmo. É, você tem razão, pode ser que ela esteja por aí. Mas onde?

– Perdão, senhores – disse um decurião que passava – se me intrometo em sua conversa. Mas se é da jovem gaulesa que procuram o paradeiro, eu a vi entrar, de manhã bem cedo, na tenda dos romanos feridos.

– Os feridos! Pode ser, Marcellus, vamos verificar imediatamente!

Não encontraram a gaulesa dentro da tenda, mas encontraram a história de sua inacreditável atuação com o legionário flechado.

– Por Marte guerreiro! Mas o que essa moça não sabe fazer? Há pouco tirava vidas, agora elas as salva. Embora, no caso do pobre Eudorus, eu creia que nem Esculápio possa mais salvá-lo.

– Olhe, Marcellus, eu não duvido que Esculápio não possa salvar esse seu cunhado. Mas tenho minhas dúvidas se essa menina não é capaz de fazê-lo. Sinceramente... Dela estou me acostumando a esperar tudo. E sempre o que não se pode, em sã consciência, esperar. Mas se ela já saiu daqui onde, poderá estar agora?

– Com os alamanos, general! Acho que já sei onde ela pode estar.

Marcellus correu para a tenda ao lado e, de fato, lá estava Alline de Troyes, amparando a cabeça de um inimigo ferido e ajudando-o a beber água. Marcellus ficou um longo tempo parado na entrada da grande tenda, contemplando aquele quadro. E, coisa que há muito tempo não lhe acontecia, sentiu um nó na garganta e as lágrimas quase lhe subiram aos olhos. Que coisa inacreditável, inimaginável, o que estava vendo aquela quase criança fazer agora... Pelos deuses, mas quem era essa Alline de Troyes na verdade, que sempre tinha uma coisa nova e surpreendente para mostrar a cada dia?!

Então, subitamente, ele se lembrou da pergunta que fizera a ela no fim da noite anterior, quando haviam, ele e o general, deixado a tenda da gaulesa:

Gilles de Troyes? E quem é esse agora?

–  É alguém que vai dormir e enfim descansar, senhores. Peço-lhes que compreendam, agora estou mesmo exausta. Amanhã continuaremos. Pode ser?

E então compreendeu, perfeitamente, que Gilles de Troyes era o nome do jovem gaulês atrevido que lhes fora apresentado amarrado na noite de sua chegada ao acampamento. Gilles de Troyes era simplesmente Alline de Troyes em sua identidade masculina.


Continua:   GILLES DE TROYES NA ABADIA

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