quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

ALLINE  DE  TROYES - 2. parte  
MILTON MACIEL 

Fim da 1a. parte:
Ela olhou para todos com o olhar desafiador do jovem gaulês que chegara, sorriu para o oficial e perguntou?

– Posso ficar com todas as flechas?

– Claro, moça. Que dúvida!  Olhe, há poucos minutos eu estava pensando como é que nós iríamos defendê-la em caso de batalha. Agora eu até que ficaria contente se soubesse que você é que está me defendendo com esse seu arco e essa sua pontaria.

– E, acima de tudo, com essa coragem incrível – completou o general Jovinus. Que os deuses a protejam e bendigam, jovem Alline de Troyes.

2ª. parte:
– Obrigada, senhor. E que também o ajudem a dispensar menos bastonadas nos inocentes.

Todos riram novamente, inclusive o próprio general, que disse para seu oficial:

– Está vendo, centurião Caius Marcellus? Essa moça não tem mesmo jeito, continua sendo aquele mesmo gaulês atrevido que quase tive que quebrar.

– E isso depois que ela quase quebrou nossa legião inteira – o que provocou outro acesso de gargalhadas. Aline, porém, não riu. Dirigindo-se ao centurião, fez-lhe mais um pedido:

– Posso ter direito a um cavalo e a um gládio também? Além do arco e das flechas, é lógico.

– Ora, menina, não vai você nos dizer que sabe usar um gládio também. E que sabe montar como um soldado romano de cavalaria.

– Não, senhor.

– Ah, ainda bem. Por que já era demais para uma mulher fazer o que você já faz. Ainda montar e...

– Não monto como um romano, senhor. Monto muito melhor do que um romano!

– O que?! Mas sua insolência não conhece limites, moça!

Alline de Troyes respondeu com serenidade, sem se importar com a fala abrupta do general:

– Não é insolência, senhor, é a verdade. E estou pronta para qualquer prova que determinar. Contra o melhor dos seus cavaleiros. Mas acho que não vai ser necessário fazer isso agora, pois seria uma leviandade, num momento em que temos todos que nos aprestar para marchar para o Sul. Mas dêem-me um cavalo e um gládio e deixem-me marchar com a legião. Então poderão ver se eu sei montar ou não; e se sei manejar um gládio.

– Ah, e você então já tomou a decisão por mim e por meus centuriões, já está determinando que nós temos que marchar imediatamente para o Sul.

– Nós temos que marchar, general. Imediatamente. Não podemos esperar mais. Foi por isso que atravessei essa floresta, por isso que enfrentei o perigo dos alamanos e o perigo dos romanos.

Flavius Jovinus olhou para seus oficiais com o cenho franzido. Aquela mulher, em termos práticos, estava ignorando sua autoridade e quase lhe dando um ultimato, como se a decisão, a palavra final não fossem dele e somente dele.

Um soldado aproximou-se do grupo com um cavalo encilhado, obedecendo ao que Caius Marcellus lhe determinara, instantes antes, que fizesse. Trazia também um gládio com bainha. Dirigiu-se a seu superior:

–  Caius Marcellus, aqui está o animal, tomei-o a um dos vigias, como determinou. E este é o meu gládio.

Aline de Troyes não esperou por mais nada. Para surpresa e confusão de todos, apanhou o gládio da mão do soldado, pegou as rédeas do cavalo, colocou gládio e aljava com as correias e fivelas sobre seu rústico manto de civil. A seguir pegou o arco, atravessou-o nas costas e montou no enorme cavalo arreado com um único salto verdadeiramente espetacular.

O animal levou um susto e empinou, dando ocasião à moça gaulesa de demonstrar, pela primeira vez, sua perícia de amazona. Ao invés de ser arremessada ao chão, ela firmou-se com as coxas nos flancos do cavalo e com os pés nos dois estribos, equilibrando-se com perfeição e assumindo o controle total da montaria. Fez o animal dar três voltas sucessivas entre os homens ali em pé e então tangeu-o para a saída do acampamento. Voltou-se e gritou:

– Para o sul, senhores! Pela estrada, para Troyes! Não há um minuto sequer a perder, por isso eu já vou. Espero que me alcancem no caminho, não vou forçar este bom animal.

E saiu a galope para dentro da noite gaulesa, sob a fraca iluminação de um tímido crescente lunar.

O general estava completamente embasbacado. Se antes a menina gaulesa parecia ameaçar sua liderança, como se fosse lhe apresentar um ultimato, agora ela já o havia feito. Não havia mais nada a fazer, senão ordenar que todos ficassem no acampamento, o que por unanimidade já tinham decidido que era de fato muito arriscado. Ou então, teria que passar pela humilhação de sair para o sul seguindo os rastros daquela gaulesa destrambelhada! Caius Marcellus deu-lhe uma boa ajuda nessa hora:

– Senhor, peço permissão para ir com minha divisão atrás dessa moça, é nossa obrigação protegê-la, depois do serviço que nos prestou. Quanto ao senhor e aos demais, sei que sua decisão, será como sempre, a mais sábia e sensata. Posso dar o comando aos meus?

– Sim... E.. Sim, Marcellus, pode ir! Mande seus homens se prepararem, eles podem fazer isso bem depressa.

– Obrigado, senhor. Vou providenciar imediatamente.

O general Flavius Jovinus notou então que vários de seus oficiais já tinham mandado os cavalariços prepararem os animais de montaria. Era evidente que a decisão já estava tomada. E fora tomada por aquela maluca. Sacudiu a cabeça como que para tirar dela uma nuvem de pensamentos confusos e disse para seus oficiais:

– Bem, senhores, parece que temos uma unanimidade por aqui...

– Certamente, senhor. Como não temos menor dúvida que nosso general nos mandará marchar imediatamente para o sul, já estamos nos aprontando.

–  No que fazem muito bem. É claro que minha decisão é essa. Vamos para o sul. Ao combate! Morte aos alamanos !

– Morte aos alamanos! – reverberaram todos os oficias e soldados, num coro impressionante, repetido inúmeras vezes.  

Isso animou o general, que esqueceu enfim seu amuo por causa da moça gaulesa e entrou no frenesi dos aprontos para a partida. Em cerca de meia hora, a maior parte dos homens já estava começando a marchar pela escuridão mal delineada pela lua crescente. Caius Marcellus havia partido quinze minutos antes, com uma centena de cavaleiros.

Avançavam agora a galope solto, tentando alcançar Alline de Troyes. Mas, por mais que se esforçassem, não conseguiam vislumbrar, na penumbra, o vulto de um cavaleiro no horizonte. Galoparam primeiro, depois trotaram rápidos por mais de uma hora, procurando não forçar demais as montarias. Seguiam pelo que havia sido um dos traçados anteriores da Via Agripa, naquele trecho margeado por dois maciços de árvores de altas copas.

Subitamente, de uma dessas árvores altas, um vulto saltou, sobressaltando homens e animais. O vulto falou:

– Alline de Troyes, senhores! Estava a sua espera. Podem parar !

O centurião Marcellus respondeu :

– Sim, senhor, general de Troyes! E por que razão devemos parar?

– Para esperar pelos outros, senhor. E porque aqui, neste exato local, temos as melhores condições de montar a recepção para os alamanos do sul. Este será o local da batalha!

Todos os homens apearam e cercaram Alline de Troyes. O centurião lhe perguntou:

– Por que este local? Não podemos achar um ainda melhor mais à frente?

– Não, senhor. Porque eu já fui meia légua mais à frente e não existe nada melhor. Resolvi voltar para cá, onde as árvores deste pequeno trecho de floresta vão nos proporcionar o mais perfeito esconderijo para os romanos.

Os homens todos e seu centurião começaram a examinar o local minuciosamente. Depois de uns dez minutos, Caius Marcellus dirigiu-se à gaulesa:

– Temos que admitir que você tem razão, moça. Este lugar é perfeito para um emboscada montada por um grande número de guerreiros. Foi uma escolha à altura de um genial estrategista. Você me surpreende cada vez mais, Alline de Troyes.

– Surpresos vão ficar os alamanos, senhor. Tantos os que vamos receber aqui, como os que vão desembocar da floresta lá ao norte, sem encontrar a legião romana que esperam cercar e vencer. Agora só dependemos da agilidade daquele cabeça-dura do seu general. Se os romanos demorarem demais – ou se não vierem – nós é que vamos ficar mal aqui.

–E você acha que Jovinus pode optar por esperar no acampamento?

– Não, senhor. Notei, quando lhes falava as últimas palavras, que todos os oficiais faziam que sim com a cabeça e erguiam seus polegares para cima. Eles terão dado um jeito no general. Certamente estão todos em marcha.

– E, com toda certeza, essa será mais uma coisa que ficaremos devendo a você, moça gaulesa. Acho que nunca Roma terá devido tanto a uma mulher de sua nação.

–– Bem, isso não tem importância, senhor. O importante agora é que seus homens cheguem aqui com, pelo menos, uma hora de antecedência em relação aos alamanos. Espero que isso se concretize, para o bem de todos nós nesta madrugada.


CONTINUA

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