ALLINE DE TROYES - 12ª parte: O abade Lucinus e o general Lucius duelam por amor
MILTON MACIEL
Fim da 11ª parte:
–Sim, sim, é
verdade! Esqueci que temos que nos reunir para decidir o futuro dos
prisioneiros que não estão feridos. Então com licença, Alline de Troyes,
devemos nos retirar. Mais tarde, por favor, de-nos outra vez o prazer de
compartilhar a refeição conosco. Então haveremos de encontrar um bom momento e
lugar para prosseguirmos com seu relato. E pode ficar tranquila, de nossas
bocas não saíra uma só palavra a respeito de um certo general do império.
Alline inclinou
a cabeça em agradecimento e o general e o centurião foram embora com os outras
oficiais.
12ª parte:
Cerca de duas
horas depois, quando atravessava o acampamento, passando por trás da grande
barraca dos oficiais, Alline ouviu uma
discussão acalorada. E a votação final:
– A execução
está decidida! Morte aos alamanos!
O próprio
general Jovinus não estava muito convencido. Mas a maioria dos seus oficiais
havia votado pela condenação de todos os prisioneiros alamanos à morte
imediata. Alguns defendiam que se fizesse o mesmo com os prisioneiros feridos,
que recebiam tratamento. Quando ouviu isso, Alline entrou na tenda intempestivamente.
– Alline de
Troyes! A que devemos o prazer de sua visita?
– À estupidez
que os seus romanos querem fazer mais uma vez, general.
– Como assim
estupidez? – perguntou com voz irritada o centurião Marcellus, um dos mais
entusiastas defensores da hipótese de execução de todos os alamanos, inclusive
os feridos.
– Desculpem,
senhores, mas esta é a minha opinião. É estupidez, além de ser covardia. Aqueles
dentre os senhores que votaram pelo assassinato em massa dos prisioneiros, são
uns covardes.
Um oficial jovem,
o grego Aristides, sentiu-se ofendido e chegou a levar a mão ao gládio
automaticamente, enquanto respondia furioso:
– Covarde eu?!
Pois se você não fosse uma mulher, ia experimentar agora mesmo o fio do meu
gládio, sua atrevida!
– Não seja por
isso! – respondeu Alline, enquanto arrancava o gládio da cintura do centurião Marcellus
e partia para cima do jovem oficial – Defenda-se, se não quer ser morto por uma
mulher! – e o foi empurrando para fora da grande tenda. Todos saíram atrás
deles.
Do lado de fora, o oficial não teve alternativa, foi obrigado a puxar sua arma, porque a gaulesa
já estava em cima dele com a arma em ponto de ataque. Os gládios se chocaram
com estrépito e a luta que se seguiu deixou os outros oficiais sem ação durante
algum tempo. O general, temendo pela segurança de Alline, foi o primeiro a
falar:
– Parem
imediatamente com isso!
– Tarde demais,
general! – respondeu o oficial grego, enquanto contra-atacava com ímpeto
renovado o avanço da gaulesa.
Atirou-se com
fúria contra a mulher, bem menor e mais franzina do que ele. Mas desta vez, ao
invés de procurar aparar o golpe do gládio do oponente, para o que talvez não
tivesse força suficiente, Alline, dando um salto impressionante de lado, esquivou-se
do gládio, largou sua própria arma, colocou seu corpo encurvado na trajetória
fulminante do adversário e pegou o braço armado do homem com suas duas mãos.
Ato contínuo, ela puxou o braço do oficial com toda a força para a frente, fazendo-o
acelerar ainda mais seu movimento. Encontrando o corpo curvado da moça em seu
trajeto, o romano sentiu seu próprio corpo se elevar no ar, rodopiar duas vezes
e ir se chocar dolorosamente contra o chão duro, continuando a rodar até se estatelar por
completo, de barriga para cima, cerca de dez passos à frente. Tinha o braço
deslocado do ombro, dores horríveis nas costas e não conseguia respirar
direito.
Rápida como um
raio, Alline apanhou seu gládio e o do oficial, que havia caído de sua mão
enquanto ele girava no ar, e saltou para o lado dele, que gemia no chão.
Suspendeu um gládio em cada mão e segurou-os a um palmo da garganta dele. Todos
esperaram pela execução, um direito incontestável do vencedor.
Mas Alline, mais
uma vez surpreendendo a todos, disse:
– Se eu fosse
covarde também, mataria você agora, indefeso e desvalido como um inimigo ferido
ou um prisioneiro. Sorte sua que não sou! – e jogou os dois gládios
estrepitosamente no chão. E, para
estarrecimento de todos, colocando um joelho sobre o peito do homem caído,
pegou com as duas mãos o braço deslocado quase à altura do ombro dele e,
dando um tremendo safanão, recolocou-o de volta na articulação. O homem soltou
um berro, mas, em seguida, sentiu um enorme alívio. Sentou com a mão no ombro, respirando
ainda com dificuldade, com uma dor horrível nas costas.
Alline espetou o
gládio dele no chão e disse-lhe:
– Quando você
ficar bom desse ombro, se quiser continuar o combate, estarei a seu dispor.
– e fez menção de se retirar, muito
irritada. Mas o general interveio, pedindo-lhe:
– Por favor,
guerreira gaulesa, preciso que fique ainda um pouco conosco. Quero que me
explique por que razão falou que nossa decisão de executar os alamanos é
estupidez.
Alline fez um
gesto de impaciência, mas estacou, em consideração ao general. E respondeu?
– O que os
senhores acham que os alamanos teriam feito, se fossem eles os vencedores?
– Ora, nos
executariam a todos, também!
–Errado,
centurião! Eles executariam uma dúzia de oficias mais graduados e mais
importantes para a organização da tropa romana. E colocariam todos os demais a
trabalhar para eles COMO ESCRAVOS!
– E como você
pode saber isso, Alline de Troyes?
– Porque é o que
eles fazem normalmente com os vencidos, um legionário amigo meu já foi
escravizado por eles e me contou como eles agem com os prisioneiros. Têm mais
misericórdia, mas, principalmente, muito mais inteligência do que os romanos.
– Mas desculpe,
moça. Não vejo em que isso pode ser inteligente, porque inimigo morto não come
e não dá despesa. E não vira ameaça potencial também.
– Ora, senhores,
trabalhando para os romanos, esses homens vão valer muito mais do que a comida
que comem. Isso sem falar que vocês é que estão comendo o alimento que era deles,
que os estão alimentando com comida retirada das próprias carroças deles. Se vocês
não conseguem imaginar tudo o que esses mais de seiscentos homens podem fazer
em benefício dos exércitos e dos interesses econômicos de Roma, então são ainda
mais estúpidos do que eu imaginei.
E encarando
todos os oficiais, um a um, com dureza no olher, falou:
– E isso não é tudo. Parece que vocês ficaram
míopes, não têm mais qualquer visão histórica. Quantos dos inimigos de ontem
são seus aliados de hoje? Francos, gauleses, hunos, visigodos, alanos. Querem
que cite mais exemplos? Vocês derrotaram totalmente os alamanos ontem, o
próximo passo é celebrarem um acordo de paz com eles, já em nível de imperador,
o que vai levar algum tempo, mas acontecerá. E, quando eles forem aliados e não
mais inimigos, a dignidade exigirá que vocês libertem os homens que hoje terão
escravizado, sem assassiná-los inutilmente. E agora, se me dão licença, prefiro me retirar, esse assunto me
enoja profundamente.
Mas, antes que
ela começasse a caminhar em direção à sua tenda, uma voz se fez ouvir bem alta,
vindo do chão, a alguns metros de distância:
– Eu concordo
totalmente com Alline de Troyes! Hoje
aprendi três lições com essa mulher corajosa: uma, vinda de sua luta incrível,
desconhecida para mim; outra, de sua misericórdia inesperada com minha vida. Sou-lhe
devedor eterno por isso. E ainda outra, vinda de suas palavras sensatas e
equilibradas. Eu voto contra a morte dos prisioneiros, inclusive dos feridos!
A exclamação de
espanto foi generalizada. Quem havia pronunciado aquelas palavras era um homem
que estava sentado no chão, envolvendo seu ombro direito com a mão esquerda,
mas já experimentando um grande alívio na dor que sentira: o legionário
Aristides, o grego, o homem a quem Alline havia imposto uma humilhante derrota!
O general e
Alline se encaminharam para o homem sentado e lhe ofereceram a mão, erguendo-o
do chão. Gemendo, ele respirou algumas vezes, enchendo o pulmão. E disse:
– Eu fui
estúpido como a maioria de vocês ao condenar os prisioneiros. E fui mais
estúpido ainda ao ofender esta moça, que foi a nossa grande salvadora horas
atrás. Fui um ingrato e um descontrolado. Mereci a humilhação por que passei. E
aproveito para pedir perdão à jovem Alline de Troyes na frente de todos vocês.
Alline apertou a
mão esquerda do legionário com sua mão esquerda e sorriu-lhe um aceno de paz. O
general disse então:
– Centurião
Aristides, você também nos deu uma lição hoje. Aliás, duas. Uma, de como não se
deve falar e agir intempestivamente. Mas a outra, muito mais importante, foi
uma lição de lucidez e humildade. Jamais em minha vida me lembro de ter visto
algo assim. Cumprimento-o por sua atitude.
E voltando-se
para os demais, lhes falou:
– É hora,
senhores, de voltarmos à discussão sobre a pena de morte imposta aos alamanos.
Assumam todos, por favor, seus lugares ao redor da mesa de discussões outra
vez, voltemos para a tenda. Alline de Troyes, você não quer ficar entre nós
e...
Mas interrompeu
o que dizia, porque a gaulesa já desaparecia entre as tendas. Não sem antes ter
salvado mais de 600 – ou talvez mais de 800 – vidas alamanas.
Alline não
compareceu para a refeição do início da noite. Estava irritada demais para
comer. Uma hora depois apareceram o general e o centurião Marcellus, ávidos de
ouvirem o restante da história da moça. Especialmente para saber mais sobre o
abade general, Lucius Dracus.
O centurião
entrou na tenda da moça trazendo-lhe o relato das novidades:
– Você venceu
mais uma vez, Alline de Troyes. E a conversão do grego Aristides à sua causa
foi fundamental para isso. A nova votação foi favorável a sua tese de fazer os
alamanos trabalharem para nós e pagarem por sua comida e despesas. Foram todos
poupados. E já começam a trabalhar amanhã. Resolvemos construir uma fortaleza
exatamente neste ponto aqui. Que lhe parece?
– Bem, fico
feliz com sua decisão mais sensata, senhores. Não irão se arrepender disso.
Quanto ao local para a fortaleza, este aqui me parece muito bem escolhido, sim.
Parabéns.
– Ótimo. E agora
você poderia, por favor, matar a nossa curiosidade a respeito de sua história e
a respeito do abade de Troyes, nosso desaparecido general Lucius Dracus?
– Certamente ,
senhores. Por favor, tomem assento, não os farei esperar.
– Você não foi
jantar conosco. Tomamos a liberdade de lhe trazer algumas frutas. Aceita?
– Certamente,
centurião, Muito agradecida. Bem, vamos ao resto da minha história. Vou lhes
contar isso exatametne como o próprio general/abade narrou para mim.
Disse o abade Lucinus
que o amor chegou, traidor e sorrateiro, para o general Lucius Dracus primeiro.. Ele tinha
42 anos completos agora e quatro anos tinham se passado desde que ele tivera
que encetar sua longa fuga até a Gália romana e homiziar-se sob a proteção de
seu tio abade em Lugdunum. Desde então, não tinha tido nenhuma mulher mais.
De início isso o
perturbava e irritava, acostumado que estava a uma vida desregrada nessa área.
Mesmo quando em marchas militares ou em guerras, sempre havia mulheres
acessíveis para os altos oficiais militares romanos. Mulheres jovens vinham se
oferecer nos acampamentos e os oficiais que pagavam por elas infringiam
diariamente os rígidos regulamentos militares, que proibiam terminantemente
essas atividades ali. Essas infrações provocavam despeito e raiva em milhares
de legionários do mais baixo escalão.
Nas cidades e
vilas tomadas ao inimigo, geralmente havia saques que garantiam aos legionários
uma compensação pelo baixos soldos pagos para que arriscassem suas vidas. Mas
muitos desses soldados priorizavam saciar o seu desejo sexual, reprimido por
meses a fio. Então, ao invés do saque, atiravam-se como feras famintas sobre as
desprotegidas mulheres do lugar, estuprando-as impiedosamente.
Os oficiais não
participavam desses atos criminosos. Mas era obrigação deles fazer deter e
levar a julgamento os estupradores. Porém eles jamais tomavam tais atitudes,
fazendo vistas grossas aos evidentes crimes de agressão sexual. Centenas deles
praticados diariamente, dias a fio. Havia mais de uma razão que usavam para
justificar sua omissão.
Em primeiro
lugar, havia o evidente efeito benéfico que a descarga dessas energias
represadas exercia sobre o moral das tropas. Os soldados se acalmavam, as
discussões e brigas entre eles diminuam sensivelmente. A segunda razão tinha a
ver com a superioridade com que os romanos encaravam os outros povos, a quem
chamavam de bárbaros. E também à
superioridade com que os homens encaravam as mulheres de todos os povos,
inclusive as próprias romanas. Mulheres eram vistas por esses homens como seres
inerentemente inferiores, feitas para servi-los e serem usadas por eles.
Quando esses
seres inferiores pertenciam a povos inferiores, então eram duplamente
inferiores e não havia razão para que os oficiais resolvessem punir os homens
que as usavam para extravasar suas energias, mediante estupros e violências,
pelos quais muitas delas acabavam mortas
ou seriamente feridas. O general Lucius confessou-me que essa omissão ante
os crimes de seus homens foi um dos maiores pecados que cometeu em toda a sua
vida e que só tomou consciência disso quando se fez cristão.
Quando Lucius
Dracus estava em missão política nas cidades maiores, como Roma e Ravenna,
tinha ele verdadeiros banquetes, com variados e abundantes cardápios de
mulheres: cortesãs ou patrícias, mulheres solteiras ou casadas, eram fáceis conquistas
para ele, que, além do seu alto posto militar e do prestígio na corte, era
inegavelmente um homem muito atraente.
Tudo isso foi
cortado de repente, desde o dia em que ele passou a ter que correr dos
sicários de Constâncio e, depois, dos próprios soldados de Roma, quando seu
poderoso inimigo conseguiu torná-lo um proscrito e um fugitivo da justiça.
Dentro da abadia
de Lugdunum, qualquer presença de mulheres acessíveis era rigorosamente
proibida. E o tio abade o fez ver que, se quisesse preservar sua vida, o
general teria que se conformar com isso. Sair da abadia à procura de mulheres
seria sumamente arriscado, com sua cabeça posta a prêmio e uma recompensa régia
para quem denunciasse sua presença às autoridades civis ou militares.
Foi dentro dessas
condições de um celibato forçado, que ocorreu a impensável conversão do general
Lucius Dracus ao cristianismo. Contou-me ele que a paz e a fraternidade que
imperavam entre aquelas quatro paredes foi uma coisa chocante para ele, que,
desde criança, fora preparado para a violência, a luta, a guerra. E que
crescera cercado de desconfianças e traições. Ali ele estava vivendo com
dezoito homens que poderiam, qualquer deles, enriquecer de uma hora para outra,
denunciando-o. Mas, ao contrário disso, aqueles monges cristãos não só
protegiam o seu segredo, como renunciavam voluntariamente a toda ideia de posse
e riqueza.
De bom grado
Lucius Dracus raspou sua barba e aceitou
os documentos que o fizeram, com diferença de poucos dias, padre e abade. Eram
nomeações políticas, sem que ele tivesse tido que se submeter a longos anos de
formação e noviciado. Mas o novo padre e abade Lucinus recebeu aquelas
ordenações no seu coração e passou a se esforçar para sequir os mandamentos da
lei cristã, inclusive a decisão de manter o celibato, que já era constante
entre os religiosos.
Confessou-me
ele, meses depois que eu reconheci, graças ao druida Kelvin, que estava
apaixonada por ele, que a mesma coisa havia acontecido dentro do coração do
general romano Lucius Dracus. Minha presença de mulher em seus aposentos, meu
corpo mais exposto e nossos constantes contatos físicos durante os treinamentos
de luta livre reacenderam a ânsia de mulher dentro dele. E ele reconheceu,
muito antes que eu mesma o fizesse, que também eu o queria e desejava. Foi
quando o abade Lucinus entrou em cena.
Com sua nova
formação religiosa, Lucinus entrou em luta direta com Lucius. Este me desejava
como fêmea, mas aquele me amava como ser humano. Por meses eu tive que manter
meu amor secreto, porque o abade não me dava nenhuma possibilidade de
demonstrá-lo. E, apesar das palavras do druida, eu mantinha meu medo que ele me
rejeitasse. Para complicar tudo ainda mais, o abade Lucinus tentava se manter
fiel a seu voto de castidade e celibato. Já o general Lucius me queria como
amante e tinha, inclusive, ímpetos de se revelar e pedir que eu casasse com
ele, posto que também ele me respeitava demais para tentar qualquer coisa que
fosse contra os meus princípios.
Mal podia
imaginar ele que eu o queria com desespero, que o aceitaria dentro de mim na hora
que ele quisesse. Quando pressentiu que o perigo estava ficando muito grande,
ele tentou parar com as lições de luta, mas eu me opus energicamente a isso. E
assim prosseguimos nessa difícil situação por mais seis meses.
Eu, Alline, o amava
e desejava. Ele, Lucius me desejava e amava. Mas ele, Lucinus, tinha medo de me
prejudicar, tinha medo que nossa diferença de idades fosse atrapalhar tudo,
tinha medo de perder sua condição de celibato. Era um amor feito de paixão e de
medos. E teríamos sofrido ainda por mais tempo, se o bondoso mago Kelvin não
tivesse colocado um fim em nossa agonia.
– E o que ele
fez, Alline de Troyes?
– Ele convenceu
o abade Lucinus que ele estava sendo severo demais consigo mesmo e que estava
me impondo um sofrimento cruel demais, que eu não merecia. E então ele fez uma
coisa maravilhosa?
–O que?!
– Ele nos casou
segundo o rito druida celta!
Continua:
Um casamento de amor e lealdade
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