domingo, 16 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 12ª parte: O abade Lucinus e o general Lucius duelam por amor  
MILTON MACIEL  

Fim da 11ª parte:
–Sim, sim, é verdade! Esqueci que temos que nos reunir para decidir o futuro dos prisioneiros que não estão feridos. Então com licença, Alline de Troyes, devemos nos retirar. Mais tarde, por favor, de-nos outra vez o prazer de compartilhar a refeição conosco. Então haveremos de encontrar um bom momento e lugar para prosseguirmos com seu relato. E pode ficar tranquila, de nossas bocas não saíra uma só palavra a respeito de um certo general do império.

Alline inclinou a cabeça em agradecimento e o general e o centurião foram embora com os outras oficiais.

12ª parte:
Cerca de duas horas depois, quando atravessava o acampamento, passando por trás da grande barraca dos oficiais,  Alline ouviu uma discussão acalorada. E a votação final:

– A execução está decidida! Morte aos alamanos!

O próprio general Jovinus não estava muito convencido. Mas a maioria dos seus oficiais havia votado pela condenação de todos os prisioneiros alamanos à morte imediata. Alguns defendiam que se fizesse o mesmo com os prisioneiros feridos, que recebiam tratamento. Quando ouviu isso, Alline entrou na tenda intempestivamente.

– Alline de Troyes! A que devemos o prazer de sua visita?

– À estupidez que os seus romanos querem fazer mais uma vez, general.

– Como assim estupidez? – perguntou com voz irritada o centurião Marcellus, um dos mais entusiastas defensores da hipótese de execução de todos os alamanos, inclusive os feridos.

– Desculpem, senhores, mas esta é a minha opinião. É estupidez, além de ser covardia. Aqueles dentre os senhores que votaram pelo assassinato em massa dos prisioneiros, são uns covardes.

Um oficial jovem, o grego Aristides, sentiu-se ofendido e chegou a levar a mão ao gládio automaticamente, enquanto respondia furioso:

– Covarde eu?! Pois se você não fosse uma mulher, ia experimentar agora mesmo o fio do meu gládio, sua atrevida!

– Não seja por isso! – respondeu Alline, enquanto arrancava o gládio da cintura do centurião Marcellus e partia para cima do jovem oficial – Defenda-se, se não quer ser morto por uma mulher! – e o foi empurrando para fora da grande tenda. Todos saíram atrás deles.

Do lado de fora, o oficial não teve alternativa, foi obrigado a puxar sua arma, porque a gaulesa já estava em cima dele com a arma em ponto de ataque. Os gládios se chocaram com estrépito e a luta que se seguiu deixou os outros oficiais sem ação durante algum tempo. O general, temendo pela segurança de Alline, foi o primeiro a falar:

– Parem imediatamente com isso!

– Tarde demais, general! – respondeu o oficial grego, enquanto contra-atacava com ímpeto renovado o avanço da gaulesa.

Atirou-se com fúria contra a mulher, bem menor e mais franzina do que ele. Mas desta vez, ao invés de procurar aparar o golpe do gládio do oponente, para o que talvez não tivesse força suficiente, Alline, dando um salto impressionante de lado, esquivou-se do gládio, largou sua própria arma, colocou seu corpo encurvado na trajetória fulminante do adversário e pegou o braço armado do homem com suas duas mãos. Ato contínuo, ela puxou o braço do oficial com toda a força para a frente, fazendo-o acelerar ainda mais seu movimento. Encontrando o corpo curvado da moça em seu trajeto, o romano sentiu seu próprio corpo se elevar no ar, rodopiar duas vezes e ir se chocar dolorosamente contra o chão duro, continuando a rodar até se estatelar por completo, de barriga para cima, cerca de dez passos à frente. Tinha o braço deslocado do ombro, dores horríveis nas costas e não conseguia respirar direito.

Rápida como um raio, Alline apanhou seu gládio e o do oficial, que havia caído de sua mão enquanto ele girava no ar, e saltou para o lado dele, que gemia no chão. Suspendeu um gládio em cada mão e segurou-os a um palmo da garganta dele. Todos esperaram pela execução, um direito incontestável do vencedor.

Mas Alline, mais uma vez surpreendendo a todos, disse:

– Se eu fosse covarde também, mataria você agora, indefeso e desvalido como um inimigo ferido ou um prisioneiro. Sorte sua que não sou! – e jogou os dois gládios estrepitosamente no chão.  E, para estarrecimento de todos, colocando um joelho sobre o peito do homem caído, pegou com as duas mãos o braço deslocado quase à altura do ombro dele e, dando um tremendo safanão, recolocou-o de volta na articulação. O homem soltou um berro, mas, em seguida, sentiu um enorme alívio. Sentou com a mão no ombro, respirando ainda com dificuldade, com uma dor horrível nas costas.

Alline espetou o gládio dele no chão e disse-lhe:

– Quando você ficar bom desse ombro, se quiser continuar o combate, estarei a seu dispor. –  e fez menção de se retirar, muito irritada. Mas o general interveio, pedindo-lhe:

– Por favor, guerreira gaulesa, preciso que fique ainda um pouco conosco. Quero que me explique por que razão falou que nossa decisão de executar os alamanos é estupidez.

Alline fez um gesto de impaciência, mas estacou, em consideração ao general. E respondeu?

– O que os senhores acham que os alamanos teriam feito, se fossem eles os vencedores?

– Ora, nos executariam a todos, também!

–Errado, centurião! Eles executariam uma dúzia de oficias mais graduados e mais importantes para a organização da tropa romana. E colocariam todos os demais a trabalhar para eles COMO ESCRAVOS!

– E como você pode saber isso, Alline de Troyes?

– Porque é o que eles fazem normalmente com os vencidos, um legionário amigo meu já foi escravizado por eles e me contou como eles agem com os prisioneiros. Têm mais misericórdia, mas, principalmente, muito mais inteligência do que os romanos.

– Mas desculpe, moça. Não vejo em que isso pode ser inteligente, porque inimigo morto não come e não dá despesa. E não vira ameaça potencial também.

– Ora, senhores, trabalhando para os romanos, esses homens vão valer muito mais do que a comida que comem. Isso sem falar que vocês é que estão comendo o alimento que era deles, que os estão alimentando com comida retirada das próprias carroças deles. Se vocês não conseguem imaginar tudo o que esses mais de seiscentos homens podem fazer em benefício dos exércitos e dos interesses econômicos de Roma, então são ainda mais estúpidos do que eu imaginei.

E encarando todos os oficiais, um a um, com dureza no olher, falou:

–  E isso não é tudo. Parece que vocês ficaram míopes, não têm mais qualquer visão histórica. Quantos dos inimigos de ontem são seus aliados de hoje? Francos, gauleses, hunos, visigodos, alanos. Querem que cite mais exemplos? Vocês derrotaram totalmente os alamanos ontem, o próximo passo é celebrarem um acordo de paz com eles, já em nível de imperador, o que vai levar algum tempo, mas acontecerá. E, quando eles forem aliados e não mais inimigos, a dignidade exigirá que vocês libertem os homens que hoje terão escravizado, sem assassiná-los inutilmente. E agora, se me dão licença, prefiro me retirar, esse assunto me enoja profundamente.

Mas, antes que ela começasse a caminhar em direção à sua tenda, uma voz se fez ouvir bem alta, vindo do chão, a alguns metros de distância:

– Eu concordo totalmente com Alline de Troyes!  Hoje aprendi três lições com essa mulher corajosa: uma, vinda de sua luta incrível, desconhecida para mim; outra, de sua misericórdia inesperada com minha vida. Sou-lhe devedor eterno por isso. E ainda outra, vinda de suas palavras sensatas e equilibradas. Eu voto contra a morte dos prisioneiros, inclusive dos feridos!

A exclamação de espanto foi generalizada. Quem havia pronunciado aquelas palavras era um homem que estava sentado no chão, envolvendo seu ombro direito com a mão esquerda, mas já experimentando um grande alívio na dor que sentira: o legionário Aristides, o grego, o homem a quem Alline havia imposto uma humilhante derrota!

O general e Alline se encaminharam para o homem sentado e lhe ofereceram a mão, erguendo-o do chão. Gemendo, ele respirou algumas vezes, enchendo o pulmão. E disse:

– Eu fui estúpido como a maioria de vocês ao condenar os prisioneiros. E fui mais estúpido ainda ao ofender esta moça, que foi a nossa grande salvadora horas atrás. Fui um ingrato e um descontrolado. Mereci a humilhação por que passei. E aproveito para pedir perdão à jovem Alline de Troyes na frente de todos vocês.

Alline apertou a mão esquerda do legionário com sua mão esquerda e sorriu-lhe um aceno de paz. O general disse então:

– Centurião Aristides, você também nos deu uma lição hoje. Aliás, duas. Uma, de como não se deve falar e agir intempestivamente. Mas a outra, muito mais importante, foi uma lição de lucidez e humildade. Jamais em minha vida me lembro de ter visto algo assim. Cumprimento-o por sua atitude.

E voltando-se para os demais, lhes falou:

– É hora, senhores, de voltarmos à discussão sobre a pena de morte imposta aos alamanos. Assumam todos, por favor, seus lugares ao redor da mesa de discussões outra vez, voltemos para a tenda. Alline de Troyes, você não quer ficar entre nós e...

Mas interrompeu o que dizia, porque a gaulesa já desaparecia entre as tendas. Não sem antes ter salvado mais de 600 – ou talvez mais de 800 – vidas alamanas.

Alline não compareceu para a refeição do início da noite. Estava irritada demais para comer. Uma hora depois apareceram o general e o centurião Marcellus, ávidos de ouvirem o restante da história da moça. Especialmente para saber mais sobre o abade general, Lucius Dracus.

O centurião entrou na tenda da moça trazendo-lhe o relato das novidades:

– Você venceu mais uma vez, Alline de Troyes. E a conversão do grego Aristides à sua causa foi fundamental para isso. A nova votação foi favorável a sua tese de fazer os alamanos trabalharem para nós e pagarem por sua comida e despesas. Foram todos poupados. E já começam a trabalhar amanhã. Resolvemos construir uma fortaleza exatamente neste ponto aqui. Que lhe parece?

– Bem, fico feliz com sua decisão mais sensata, senhores. Não irão se arrepender disso. Quanto ao local para a fortaleza, este aqui me parece muito bem escolhido, sim. Parabéns.

– Ótimo. E agora você poderia, por favor, matar a nossa curiosidade a respeito de sua história e a respeito do abade de Troyes, nosso desaparecido general Lucius Dracus?

– Certamente , senhores. Por favor, tomem assento, não os farei esperar.

– Você não foi jantar conosco. Tomamos a liberdade de lhe trazer algumas frutas. Aceita?

– Certamente, centurião, Muito agradecida. Bem, vamos ao resto da minha história. Vou lhes contar isso exatametne como o próprio general/abade narrou para mim.

Disse o abade Lucinus que o amor chegou, traidor e sorrateiro, para o general Lucius Dracus primeiro.. Ele tinha 42 anos completos agora e quatro anos tinham se passado desde que ele tivera que encetar sua longa fuga até a Gália romana e homiziar-se sob a proteção de seu tio abade em Lugdunum. Desde então, não tinha tido nenhuma mulher mais.

De início isso o perturbava e irritava, acostumado que estava a uma vida desregrada nessa área. Mesmo quando em marchas militares ou em guerras, sempre havia mulheres acessíveis para os altos oficiais militares romanos. Mulheres jovens vinham se oferecer nos acampamentos e os oficiais que pagavam por elas infringiam diariamente os rígidos regulamentos militares, que proibiam terminantemente essas atividades ali. Essas infrações provocavam despeito e raiva em milhares de legionários do mais baixo escalão.

Nas cidades e vilas tomadas ao inimigo, geralmente havia saques que garantiam aos legionários uma compensação pelo baixos soldos pagos para que arriscassem suas vidas. Mas muitos desses soldados priorizavam saciar o seu desejo sexual, reprimido por meses a fio. Então, ao invés do saque, atiravam-se como feras famintas sobre as desprotegidas mulheres do lugar, estuprando-as impiedosamente.

Os oficiais não participavam desses atos criminosos. Mas era obrigação deles fazer deter e levar a julgamento os estupradores. Porém eles jamais tomavam tais atitudes, fazendo vistas grossas aos evidentes crimes de agressão sexual. Centenas deles praticados diariamente, dias a fio. Havia mais de uma razão que usavam para justificar sua omissão.

Em primeiro lugar, havia o evidente efeito benéfico que a descarga dessas energias represadas exercia sobre o moral das tropas. Os soldados se acalmavam, as discussões e brigas entre eles diminuam sensivelmente. A segunda razão tinha a ver com a superioridade com que os romanos encaravam os outros povos, a quem chamavam de bárbaros.  E também à superioridade com que os homens encaravam as mulheres de todos os povos, inclusive as próprias romanas. Mulheres eram vistas por esses homens como seres inerentemente inferiores, feitas para servi-los e serem usadas por eles.

Quando esses seres inferiores pertenciam a povos inferiores, então eram duplamente inferiores e não havia razão para que os oficiais resolvessem punir os homens que as usavam para extravasar suas energias, mediante estupros e violências, pelos quais muitas  delas acabavam mortas ou seriamente feridas. O general Lucius confessou-me que essa omissão ante os crimes de seus homens foi um dos maiores pecados que cometeu em toda a sua vida e que só tomou consciência disso quando se fez cristão.

Quando Lucius Dracus estava em missão política nas cidades maiores, como Roma e Ravenna, tinha ele verdadeiros banquetes, com variados e abundantes cardápios de mulheres: cortesãs ou patrícias, mulheres solteiras ou casadas, eram fáceis conquistas para ele, que, além do seu alto posto militar e do prestígio na corte, era inegavelmente um homem muito atraente.

Tudo isso foi cortado de repente, desde o dia em que ele passou a ter que correr dos sicários de Constâncio e, depois, dos próprios soldados de Roma, quando seu poderoso inimigo conseguiu torná-lo um proscrito e um fugitivo da justiça.

Dentro da abadia de Lugdunum, qualquer presença de mulheres acessíveis era rigorosamente proibida. E o tio abade o fez ver que, se quisesse preservar sua vida, o general teria que se conformar com isso. Sair da abadia à procura de mulheres seria sumamente arriscado, com sua cabeça posta a prêmio e uma recompensa régia para quem denunciasse sua presença às autoridades civis ou militares.

Foi dentro dessas condições de um celibato forçado, que ocorreu a impensável conversão do general Lucius Dracus ao cristianismo. Contou-me ele que a paz e a fraternidade que imperavam entre aquelas quatro paredes foi uma coisa chocante para ele, que, desde criança, fora preparado para a violência, a luta, a guerra. E que crescera cercado de desconfianças e traições. Ali ele estava vivendo com dezoito homens que poderiam, qualquer deles, enriquecer de uma hora para outra, denunciando-o. Mas, ao contrário disso, aqueles monges cristãos não só protegiam o seu segredo, como renunciavam voluntariamente a toda ideia de posse e riqueza.

De bom grado Lucius Dracus raspou sua barba e  aceitou os documentos que o fizeram, com diferença de poucos dias, padre e abade. Eram nomeações políticas, sem que ele tivesse tido que se submeter a longos anos de formação e noviciado. Mas o novo padre e abade Lucinus recebeu aquelas ordenações no seu coração e passou a se esforçar para sequir os mandamentos da lei cristã, inclusive a decisão de manter o celibato, que já era constante entre os religiosos.

Confessou-me ele, meses depois que eu reconheci, graças ao druida Kelvin, que estava apaixonada por ele, que a mesma coisa havia acontecido dentro do coração do general romano Lucius Dracus. Minha presença de mulher em seus aposentos, meu corpo mais exposto e nossos constantes contatos físicos durante os treinamentos de luta livre reacenderam a ânsia de mulher dentro dele. E ele reconheceu, muito antes que eu mesma o fizesse, que também eu o queria e desejava. Foi quando o abade Lucinus entrou em cena.

Com sua nova formação religiosa, Lucinus entrou em luta direta com Lucius. Este me desejava como fêmea, mas aquele me amava como ser humano. Por meses eu tive que manter meu amor secreto, porque o abade não me dava nenhuma possibilidade de demonstrá-lo. E, apesar das palavras do druida, eu mantinha meu medo que ele me rejeitasse. Para complicar tudo ainda mais, o abade Lucinus tentava se manter fiel a seu voto de castidade e celibato. Já o general Lucius me queria como amante e tinha, inclusive, ímpetos de se revelar e pedir que eu casasse com ele, posto que também ele me respeitava demais para tentar qualquer coisa que fosse contra os meus princípios.

Mal podia imaginar ele que eu o queria com desespero, que o aceitaria dentro de mim na hora que ele quisesse. Quando pressentiu que o perigo estava ficando muito grande, ele tentou parar com as lições de luta, mas eu me opus energicamente a isso. E assim prosseguimos nessa difícil situação por mais seis meses.

Eu, Alline, o amava e desejava. Ele, Lucius me desejava e amava. Mas ele, Lucinus, tinha medo de me prejudicar, tinha medo que nossa diferença de idades fosse atrapalhar tudo, tinha medo de perder sua condição de celibato. Era um amor feito de paixão e de medos. E teríamos sofrido ainda por mais tempo, se o bondoso mago Kelvin não tivesse colocado um fim em nossa agonia.

– E o que ele fez, Alline de Troyes?

– Ele convenceu o abade Lucinus que ele estava sendo severo demais consigo mesmo e que estava me impondo um sofrimento cruel demais, que eu não merecia. E então ele fez uma coisa maravilhosa?

–O que?!

– Ele nos casou segundo o rito druida celta! 
Continua:   Um casamento de amor e lealdade

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