ALLINE DE TROYES – 18a parte: O triunfo,
afinal! (último capítulo)
MILTON MACIEL
Fim da 17ª. parte:
– Meu Mestre,
meu Amor, aqui vou eu com vocês. Me esperem. Nem a morte vai nos separar...
Como que para
confirmar o que dissera, teve a nítida visão dos rostos de Kelvin e Lucius, que
se abaixavam sobre ela e diziam coisas que ela não lograva entender. Mas sabia
que estava pronta para ir com eles. Abriu um amplo sorriso e um último laivo de
respiração saiu de suas narinas.
18ª parte : O triunfo, afinal
Alline descobriu
que o outro lado da vida não era como esperava. Maravilhou-se ao perceber que
não sentia mais as terríveis dores que dilaceravam seu peito. Mas estava
confusa, porque não via nem Lucius nem Kelvin, cujos corpos mortos, crivados de
flechas, tinha visto instantes atrás. Mas estava certa que entrevira fugazmente
seus rostos amados debruçados sobre ela, portanto logo os encontraria.
Contudo o que
ela via agora era um longo, amplo e escuro corredor à sua frente. De repente,
pareceu-lhe que deslizava por esse comprido corredor e que, ao cortar o ar com
grande velocidade, esse ar produzia um estranho som, como de asas de vespas, em
seus ouvidos. O flutuar parecia interminável, mas, à medida que ele continuava,
sua alma foi se sentindo cada vez mais calma. À memória vinham-lhe
insistentemente os versos finais da Eneida de Virgilio, que tanto estudara com
o bondoso e sábio irmão Ildasius, descrevendo a morte de Turnus, sob a espada
de Eneias:
“Ast illi solvuntur frigore membra, vitaque cum gemitu
fugit indignata sub umbras”
E pensava como
sendo os seus os membros que enrijeciam
sob o frio da morte, sua própria vida
fugindo indignada para sob as sombras, as sombras desse corredor escuro,
aparentemente sem fim, por onde deslizava sem parar, após sua morte.
Mas então um
ponto luminoso apareceu a uma grande distância no túnel que lhe parecera antes infinito.
E a luz foi ficando cada vez mais forte, porque ela se aproximava velozmente
desse ponto. A luz começou a mostrar que as paredes do túnel não eram mais
escuras e frias, mas que tinham uma luminosidade própria, que se definia, aos
poucos como sendo de um azul cada vez mais claro e mais brilhante.
Então a luz a
sua frente se fez enormemente mais regulgente. Alline teve certeza que aquela
luz em muito excedia a luz plena do disco do sol de meio dia. Se ainda tivesse
olhos da Terra, teria ficado cega instantaneamente. Mas, paradoxalmente, seus
olhos podiam encarar toda aquela luz, no momento em que seu deslizar foi
subitamente interrompido. Deveria estar suspensa no ar, a mais de duzentos
passos daquela luz extraordinária, quando teve a certeza que ela emanava
de um Ser superior, um Ser de Luz.
No exato momento
em que teve essa percepção, um feixe de luz ainda mais forte saiu daquele Ser
luminoso e envolveu o corpo espiritual de Alline completamente. E ela se viu
também luminosa e resplandecente, seu corpo de mulher passando a perder seus
contornos definidos de até então e a se converter numa espécie de aura luminosa
prateada, esvoaçante, cheia de pontos luminosos de concentração de energia. Era
como se seu corpo anterior, de formas terrenas, se tivesse dissolvido
totalmente em luz, na luz descomunal que vinha daquele Ser superior.
Ao mesmo tempo
em que se percebia incorpórea, dotada agora somente de um corpo de luz sem
forma alguma, Alline começou a se sentir num estado de paz infinita, da mais
total bem-aventurança. Do Ser de Luz, emanava a mais completa Felicidade, como
ela jamais conhecera na vida terrena.
E, de repente,
Alline de Troyes teve a mais ampla certeza de que aquele Ser de Luz era o
Cristo. Não lhe via forma alguma, somente a incomparável luminosidade prateada.
Mas não tinha qualquer dúvida de que estava frente ao Ser que os cristãos adoravam.
Era dele que emanava a Felicidade Absoluta, a Paz Infinita. Alline deixou-se
dissolver nessa Luz e nessa Bondade, completamente integrada a ela e
reconhecendo agora que a morte era uma experiência infinitamente mais
maravilhosa do que jamais pudera supor.
Estava nesse
estado de êxtase absoluto, quando uma voz se fez ouvir no ponto onde ela estava. Surpresa, Alline teve certeza que a voz era do bondoso abade Sébastien,
falecido anos atrás e a quem seu amado Lucius viera substituir na abadia de
Troyes. Também não teve a menor dúvida
quanto à identidade de quem lhe falava, embora não o pudesse ver. E o abade lhe
disse:
– Minha filha, deixe
que eu mostre para você, em poucos segundos, toda a história de sua curta vida.
Nada questione, apenas assista.
De fato, nos
momentos seguintes, Alline viu sua vida inteira, numa sequência cronológica,
desde o seu nascimento até o momento em que seu corpo se rendera à morte,
dentro da tenda de prisioneiros dos alamanos proscritos de Walmaric. Numa
profusão absurda de detalhes, nada deixou de ser mostrado e percebido, como se
todos os seus dezessete anos e meio terrenos coubessem naqueles poucos
segundos. Quando a visão acabou, Alline não tinha mais a sensação de paz e beatitude
que experimentara até então. Tinha-lhe ficado agora a sensação de que algo lhe
faltara completar em vida, uma premência de algo a realizar.
O abade então
começou a ficar visível para ela. E ele era também um ser de luz, de luz pálida
e transparente. E se fazia agora perceptível como figura luminosa, porque a
grande luz que a tudo dominava começou a se afastar velozmente dentro do túnel.
De dentro de seu modesto contorno diáfano, a voz do abade voltou a falar,
repetindo os hexâmetros de Virgílio:
– Ast
illi solvuntur frigore membra, vitaque cum gemitu fugit indignata sub umbras.
E continuou:
– Agora você
sabe, minha filha, que a morte de uma pessoa justa não tem nada a ver com um
frio que enrijece os membros e, muito menos, com uma fuga da alma para sob as
sombras. Pelo contrário, sua alma deixou o corpo inerte na Terra e veio
integrar-se à Grande Luz. Você sabe que esteve ante o Mestre. E sabe que pode
atingir um estado de total paz e plenitude. Experimentou a bem-aventurança. Só que seu
tempo ainda não chegou. Você terá que voltar.
– Como voltar,
senhor abade? E por que voltar, se eu posso alcançar a Felicidade total aqui.
Certamente aqui posso encontrar as almas de Lucius e Kelvin, que vi mortos
também. Será que nosso encontro dentro da bem-aventurança não nos pode ser
permitido?
– Eu sei, minha filha, que esse encontro é o
que você mais deseja em seu coração. Ele é, portanto, uma das razões de você
ter que voltar à Terra. A outra razão é que sua missão lá ainda não está
concluída. Ela é aquilo que você sentiu que ainda não está completo, que você
tem que concluir. Por isso tudo a volta é imprescindível. Aproveite seus últimos
instantes aqui neste plano, porque sua volta é iminente.
– Mas senhor,
por favor, voltar será tão difícil agora que conheci a Paz!
– Creio que você
não compreendeu que aqui você não poderá encontrar as almas de seus grandes
amigos e companheiros.
– Isso significa
que eles não alcançaram condições espirituais de virem para este lugar de
Felicidade?
– Não, significa que eles não alcançaram
condições materiais de virem para cá!
– Como assim, senhor?
– Por que,
diferentemente de você, Alline, Lucius Dracus e Kelvin da Bretanha NÃO MORRERAM
na Terra.
– O que?! Mas
como, se eu vi seus corpos inertes, crivados de flechas?!
– Você viu, no
escuro e nos estertores finais de suas forças, dois corpos de homens vestidos
com as roupas de seus amigos. Mas esses corpos não eram deles.
Alline sentiu-se
estremecer e, imediatamente, percebeu que seu corpo estava deixando de ser o
corpo de luz sem forma de há poucos instantes atrás, para voltar a se definir
como um corpo terreno de mulher. Perdia todo o seu brilho. Voltava a ver suas
mãos, pernas e pés. Mas continuava suspensa no ar, naquele mesmo ponto do
túnel. Estava, por assim dizer, ficando “humana” ou “terrena” de novo. O abade
disse-lhe por fim:
– Pronta para
partir, Alline de Troyes? Pois pode ir. A vida na Terra, para você, nunca mais
será a mesma, depois desta experiência que você teve aqui hoje. Volte para os
seus, porque é junto deles que você você viverá e completará sua grande
missão terrena. Junto a eles e a mais três seres de grande Luz, que, cada um a
seu tempo, entrarão também no planeta, através do milagre da sua maternidade.
Serão seus filhos. Vá agora, o vento a levará de volta.
Alline sentiu-se
suspender ainda mais no ar, seu corpo fez meia volta e o vento veloz passou a
zunir em seus ouvidos como asas de vespas. Viu-se deslizar velozmente em
direção ao ponto inicial do túnel, que foi ficando cada vez mais escuro, mais
escuro, até que sua consciência se esvaiu completamente.
Despertou dias
depois, num leito do hospital romano de campanha, na vila de Troyes, onde
quatro homens velavam por ela. Estivera em coma profundo durante mais de duas
semanas. Várias vezes ouviram-na falar como se dialogasse com alguém, frases
desconexas e ininteligíveis. Outras vezes ouviam-na delirar, recitando longos
trechos da Eneida de Virgílio em latim, da Odisséia de Homero em grego.
Infatigável, o druida Kelvin jamais de afastou de seu leito, ao lado do qual
colocou um rústico catre em que dormia somente um par de horas por dia.
Durante todo
esse tempo, o mago lutou contra a morte de sua discípula mais querida e
talentosa, com todas as armas de que dispunha em seu arsenal de práticas,
medicamentos e encantamentos. Também Lucius Dracus não arredava pé dali. E,
desde dois dias atrás, o centurião Caius Marcellus e o general Flavius Jovinus
passavam ali a quase totalidade de suas horas despertas. Todos tinham razão para
essa perseverança, porque o druida Kelvin lhes garantia, o tempo todo,
incessantemente, que Alline de Troyes venceria a batalha contra a morte, assim
como tinha vencido sempre todos os inimigos que enfrentara até então.
Foi no vigésimo dia
após a peleja com o alamano Walmaric, que Alline de Troyes, finalmente sem
febre, abriu os olhos e viu que, da névoa indefinida de sua visão ainda
incipiente, delineava-se e fazia-se progressivamente mais clara a face de seu mestre
Kelvin. Murmurou debilmente:
– Mestre...
Todos os quatro
homens que ali estavam presentes voltaram-se vivamente para ela:
– Amor da minha
vida! Deus seja louvado! – E Alline viu, com imensa emoção, o rosto amado de
seu general abade, que lhe sorria embevecido e se abaixava para beijar sua
face.
– Senhor Gilles
de Troyes, seu gaulês incorrigível, como ousa dar tal susto em seus amigos
leais?! Será que quer receber aquelas
cinquenta bastonadas? – e ela viu que quem falava, exultante de contentamento,
era o ex-centurião e agora tribuno Caius Marcellus.
Finalmente
sentiu que sua mão estava segura dentro de outra mão. Voltou a cabeça levemente
e pôde ver o general Flavius Jovinus ajoelhado a seu lado. O general nada
disse, porque não podia falar. Tinha o rosto banhado em lágrimas e a garganta
travada. E olhava para sua pequena gaulesa com olhos de adoração. Ah, quem dera
tivesse tido uma filha como aquela!
Nos dias
seguintes, a convalescença de Alline foi prodigiosa. Depois de uma semana já
podia até mesmo cavalgar. O tempo todo ela repetia palavras de reconhecimento a
seu mestre druida, seu salvador. E este, contrafeito, o tempo todo proibia-a de
repetir essas palavras. Embora já pudesse cavalgar, o general Jovinus mandou
preparar uma carruagem especial, dentro da qual colocou a jovem gaulesa, para
uma curta viagem até o acampamento romano de Catalaunum, onde uma nova
fortaleza romana estava sendo construída por soldados romanos, mestres
pedreiros e carpinteiros gauleses contratados e por cerca de seiscentos e
cinquenta prisioneiros alamanos, entre os quais muitos dos que estiveram
feridos e, tratados por Alline e um único enfermeiro romano, conseguiram se
recuperar plenamente.
A visita de
Alline de Troyes estava sendo ansiosamente esperada por todos aqueles homens.
Romanos e alamanos, movidos pela gratidão e pela admiração que sentiam. E os
quarenta gauleses contratados, movidos pela curiosidade de conhecê-la e pelo
orgulho de terem uma compatriota tão heróica, a ponto de ser homenageada por
toda uma legião romana.
Horas antes de
chegar a comitiva de Alline a Catalaunum, o general Jovinus pediu ao tribuno
Marcellus que enviasse um grupo de três mensageiros velozes à frente, para que,
a pleno galope, dessem aviso da chegada dos dois ilustres homenageados. O
próprio tribuno fez questão de ser um desses três homens. Uma das pessoas
homenageadas era, evidentemente, Alline de Troyes. Mas o outro homenageado de
honra era o general romano Lucius Dracus, lenda e orgulho das legiões de Roma, que agora, num movimento coletivo liderado pelo influente general Flavius
Jovinus, inflamavam-se todas numa luta pela restauração da posição de seu
grande líder perseguido e ameaçado de morte por Constâncio. Nos vinte dias em
que Alline estivera entre a vida e a morte, velozes mensageiros percorreram
todo o mundo romano, dando conta da verdadeira onda de revolta que varria todas
as legiões do exército. Em centenas de lugares legiões inteiras ou coortes
marcharam proferindo gritos de ordem em favor do general Lucius Dracus. A
notícia da revolta, espalhando-se velozmente por todo o império, da Hispânia à
Germânia, da Síria à Britânia, da Macedônia ao Egito, chegou rapidamente ao
conhecimento do imperador Constantino.
Constantino
convocou seus generais da corte para ver como poderiam controlar a revolta. Mas
seus generais foram os primeiros a lhe mostrar que aquilo seria totalmente
impossível. E a quase totalidade deles teve a coragem de se colocar a favor do
movimento e confessar sua lealdade a Lucius Dracus. O imperador ficou em estado
de choque, ao ver o prestígio daquele homem que ele mesmo mandara proscrever, a
instâncias de seu filho primogênito. Bastara que os militares tivessem sabido
que o general Dracus não tinha morrido, mas apenas se escondido para evitar os
assassinos de Constâncio, para que todo o exército romano se insurgisse abertamente
contra uma ordem de seu imperador. Constantino era um pragmático, um grande
político e soube reconhecer que estava vencido. Afinal, não poderia contar com
seus generais comandantes para fazer cumprir qualquer determinação contra os
revoltosos. E os revoltosos eram, na prática, todos os militares de todas as
legiões, incluindo-se aí seus próprios generais comandantes!
O imperador
compreendeu que obstinar-se na defesa de sua ordem e na defesa de seu filho,
poderia desestabilizar sua própria posição de líder supremo. E mais motivado
ficou a mudar de posição quando um de seus generais lhe afirmou que a vida de
Constancio não valia mais nada, face ao ódio que os militares passaram a nutrir
por ele abertamente. E aconselhou o imperador que escondesse seu filho em algum
lugar muito distante. E assim mesmo, só depois de uma pública retratação. O
próprio Constâncio foi então convocado para uma reunião com os militares e o
pai imperador. E compreendeu, apavorado, que poderia ser assassinado a qualquer
momento por qualquer militar romano, de um soldado raso a um general. E que, em
sã consciência, não poderia confiar em nenhuma guarda militar para escoltá-lo e
protegê-lo.
E, como se isso
tudo ainda fosse pouco, a família patrícia mais influente do império, justamente
a do cunhado do tribuno Caius Marcellus, Eudorus, a quem Alline havia salvado
da morte certa, encetou um poderoso movimento dentro do Senado, onde todos os
dias oradores inflamados se erguiam para pedir a recondução de Lucius Dracus a
seu posto de chefe militar. Alguns, mais exaltados, começaram a exigir a
imediata punição de Constâncio. Isso tudo acabou levando o movimento para as
ruas, onde turbas exaltadas começaram a marchar em Roma e em Ravenna, pedindo a
morte de Constâncio. Em Constantinopla, sua casa foi apedrejada por populares e
a guarda não fez absolutamente nada para impedir o ato de hostilidade.
Constâncio fugiu
escondido em um navio mercante, disfarçado de marinheiro, mas não sem antes passar
rapidamente por uma sessão do Senado, na companhia do pai imperador, única
forma de garantir sua integridade física. Ali o filho mais velho do imperador
ouviu violentas catilinárias contra suas atitudes mesquinhas de perseguição e
expropriação de bens e contra suas tentativas de assassinar Lucius Dracus. Da
galeria, populares o chamavam abertamente de covarde e de assassino. O filho do
imperador leu então uma longa carta em que assumia seus erros, tributando-os à
extrema lealdade para com o amigo morto por Dracus.
O senador mais
idoso da casa levantou-se então e, num tom inflamado, mostrou quem era aquele
bandido a quem o filho do imperador chamava de amigo e como esse tal amigo havia
tentado matar Lucius Dracus à traição, atacando-o covardemente pelas costas com
mais dois sicários a soldo. A morte dele por Dracus, ao defender-se, não fora nada mais do que
um ato de justiça dos deuses para com um covarde invejoso.
Constâncio ouviu
de cabeça baixa a oração fulminante do decano da casa e completou a leitura de
sua peça de retratação pública, na qual pedia perdão ao general Lucius Dracus
por seus erros acumulados e dizia que o imperador seu pai saberia como
recompensar o general pelos prejuízos que o filho lhe causara. E findou
assinando a carta de retratação na frente de todos os senadores. Saiu do senado
escoltado por um grupo de civis armados e correu, disfarçado, para o cais, para
embarcar no navio mercante. Ficou fora por quase um ano, tão escondido como
tivera que esconder-se o general vítima de sua perseguição.
O imperador, então, leu um edito em que reintegrava o general Dracus no exército romano, numa
posição dois postos acima daquele que ocupava ao ser destituído e exonerado. Todos
os soldos que lhe seriam pagos nos anos de perseguição já estavam disponíveis
no erário para que o general os sacasse quando quisesse. No mesmo documento,
uma relação de todos os bens que foram expropriados do general reconhecia seu
direito inalienável à reintegração na posse dos mesmos, sem que os atuais
proprietários tivessem qualquer direito a restituição ou indenização por tê-los
adquirido posteriormente à expropriação. Com isso o imperador se colocava bem
com os militares, senadores e opinião pública, posto que, sabia-se em todo o
império, quem havia ficado com quase todos os bens tomados de Lucius Dracus
fora o próprio Constâncio. Finalmente, uma substancial quantia em ouro foi outorgada
ao general como forma de indenização e compensação por todos os prejuízos
sofridos. Dessa forma exemplar, Constantino resolveu definitivamente a
explosiva crise que ameaçara seu império, e que ficou conhecida como a Grande
Revolta por Dracus.
A recepção em Catalaunum
Quando o general
e sua comitiva chegaram ao acampamento de Catalaunum, todos os homens
explodiram em aplausos e gritos de saudação que pareciam não ter fim. Primeiro
gritaram sem cessar o nome de Alline de Troyes, que alternavam com coros que
homenageavam Gilles de Troyes. Mas o ponto mais alto da cerimônia foi quando o
tribuno Caius Marcellus trouxe à frente do acampamento todos os alamanos
prisioneiros e deu a palavra ao oficial Agenaric, a quem Alline também havia
salvado de morte certa. O oficial discursou em sua língua, compreendido somente
pelos seus, por Alline, Lucius e Kelvin, quando apresentou seus votos de
gratidão e lealdade, por terem suas vidas salvas pela heróica gaulesa. E, numa
demonstração impressionante desse reconhecimento, o oficial retirou de suas
vestes um punhado de moedas de ouro. Esclareceu que ali havia uma moeda ou duas
de cada um dos prisioneiros, cuidadosamente enterradas pelo acampamento, para
serem usada nos dia em que, esperavam eles, reconquistassem a liberdade, para
ajudá-los a voltar para casa. Mas, reconheciam, jamais poderiam ter como voltar
para casa, se tivessem perdido a vida. E esta, eles a deviam, todos eles, à
corajosa defesa que a gaulesa fizera, opondo-se à execução sumária deles, como tinha
sido decidida pelos oficiais romanos.
Nesse momento, o
oficial grego Aristides, que havia se tornado o intermediário entre os alamanos
e os romanos, esforçando-se, para isso, em aprender cada dia mais palavras do
idioma deles, pediu para falar e externou também sua gratidão a Aline, por
tê-lo enfrentado, vencido e poupado em combate. E, principalmente, por ter
evitado que ele e seus companheiros oficiais tivesse feito uma chacina
totalmente desnecessária e inútil.
Alline agradeceu
a todas as homenagens, tendo chegado às lágrimas quando os prisioneiros
alamanos lhe deram as suas escassas moedas de outro, judiciosamente escondidas
e seus potencias salvo-condutos para a longa e difícil volta à pátria, no meio
da hostilidade geral dos gauleses. Alline pediu publicamente ao general Jovinus
que mantivesse sob sua guarda aquela pequena fortuna e que, no dia em que os
alamanos fossem libertados, todo aquele ouro lhes fosse restituído, moeda por
moeda. O acampamento inteiro explodiu de novo em aplausos e vivas.
Depois disso foi
a vez do general Jovinus apresentar à tropa o famoso general Lucius Dracus,
que muitos já tinham conhecido pessoalmente e cuja história de glórias e
perseguições estavam conhecendo agora. Outra extraordinária ovação explodiu em
todo o acampamento, longa de vários minutos. Quando enfim teve silêncio
suficiente para falar, Dracus fez uma rápida oração de agradecimento e
apresentou a todos aquele a quem ele mesmo e Alline de Troyes deviam muito do
que eram e a própria vida: o druida Kelvin da Britânia.
E então Lucius
Dracus contou como o grande mago bretão, num ato de enorme capacidade e
inteligência, havia salvado a vida de Dracus e a dele mesmo, ao agir
rapidamente na noite em que Walmaric tentou matá-los. Com sua grande
sensibilidade paranormal, o mago teve certeza que os romanos estavam muito próximos
e que Walmaric, assim que percebesse isso, viria matá-los. Então, com a maior
facilidade, ele se livrou da corrente que o prendia pelo tornozelo ao poste central
da tenda. E, a seguir, como se os elos de ferro fossem de manteiga, desfez
igualmente a ponta da corrente que prendia Lucius Dracus. Então os dois saíram
silenciosamente da tenda e atacaram por trás os dois sentinelas, usando essas
mesmas correntes para enforcá-los rapidamente.
Logo os dois
trocaram de roupa com os sentinelas abatidos, colocando-os de borco no chão,
com roupas de abade e de druida. E foram de postar de sentinelas à entrada da tenda, até o momento em que ouviram o primeiro toque da trombeta romana. Então
correram para trás da tenda e tiraram as roupas dos alamanos, ficando quase
nus. Pegaram as correntes e se manietaram um ao outro, superficialmente, para
darem aos romanos, que chegariam ao acampamento abandonado pelos alamanos, a
impressão de que eram o que eram na verdade: prisioneiros. Só assim poderiam
evitar que os legionários os matassem sumariamente.
A ideia genial
do druida funcionou a contento, exceto pelo fato de que não viram Alline
atirando flechas contra os alamanos à entrada da tenda, nem a luta dela contra
Walmaric. Quando os romanos chegaram, minutos depois disso, e os “libertaram”
das correntes, eles foram direto à tenda para apanhar o que pudessem de suas
coisas. Foi quando deram com o corpo de Alline, que agonizava. Gilles de Troyes
expirou instantes depois, no colo de seu desesperado abade. Mas, ao lado deles,
estava o maior curador da Gália e da Britânia. O grande mago Kelvin não aceitou
a morte de sua amada discípula. E começou ali mesmo o seu trabalho hercúleo de
ajudá-la a lutar contra as sombras da morte. Sua incrível percepção e sua
inquebrantável fé lhe diziam que Alline sobreviveria. Pegou uma das carroças
dos alamanos, atrelou cavalos a ela e foi ao lado de Alline para o pequeno
hospital de campanha dos romanos em Troyes, não mais se afastando do lado dela
até que ela voltasse a viver plenamente.
Foi a vez de
explodir a terceira grande ovação no acampamento romano, onde o coro de vozes
alamanas se fez ouvir distintamente também, saudando Kelvin da Britânia.
No coração do Império
Depois disso,
começou a longa viagem de Lucius Dracus e Alline de Troyes até a capital do
império, onde o general ia receber de volta tudo aquilo que lhe fora tomado. O
general Flavius Jovinus os acompanhou, junto com toda uma coorte de elite,
deixando o acampamento e o resto da legião sob o comando do competente tribuno
Caius Marcellus. Com eles ficou também o druida.
Na capital,
foram recebidos por uma multidão entusiasmada, que os acompanhou na passagem
pelo arco do triunfo, que o imperador mandou erigir para os três. Ali passaram o general Flavius
Jovinus, o grande vencedor dos invasores alamanos. O grande general Lucius
Dracus, honra e glória de Roma. E a incrível gaulesa Alline de Troyes,
guerreira de incomparável técnica e coragem, que tinha salvado uma legião
romana inteira e a quem o império teria que demonstrar sua grande gratidão.
Receberam as
três coroas de louros e foram recepcionados no palácio pelo imperador
Constantino. Este, depois de se estender longamente em pedidos de desculpas oficiais
e pessoais ao general Dracus e de cumprimentar efusivamente o general Jovinus,
anunciando-lhe sua nova promoção e o governo de uma grande parte da Gália
romana, passou todo o resto da noite grudado em Alline de Troyes, por quem se
mostrou absolutamente fascinado. Nunca tinha visto uma mulher guerreira como
aquela e, de tanto lhe suplicar, ela acabou aceitando fazer algumas
demonstrações de salto, tiro ao alvo com flechas e punhal e luta livre. Um
joelho e dois narizes quebrados depois, quatro furos de flecha e três de punhal
no primeiro círculo do alvo e a superação de obstáculos de dois metros de
altura com um único salto, a gaulesa se converteu no mais novo fenômeno do
império.
Na tarde
seguinte, os mesmos três foram homenageados em uma sessão do Senado. Por
iniciativa deste, a jovem gaulesa recebeu o reconhecimento de Roma
materializado na posse de um enorme trecho de terras na Gália, espalhando-se
por muitas léguas ao redor da abadia de Troyes, que passou também a pertencer a
ela. E havia também uma respeitável quantia em ouro destinada a ela.
Efetivamente, Roma soube ser grata a sua grande aliada: Alline de Troyes era
agora uma mulher rica e poderosa.
E, para culminar
a cerimônia, o general Flavius Jovinus leu um longo documento perante o senado,
assinado por ele e por seu filho único Claudius, pelo qual o general adotava
Alline de Troyes como sua legítima filha e herdeira. A surpresa e a comoção de
Alline foram imensas. Sua gratidão, maior ainda. Com aquele gesto o general
demonstrava clara e publicamente, que a amava como uma filha, justamente a
filha que ele sempre quisera ter e nunca tivera. Já a assinatura e a mansa
aceitação de Claudius de uma estranha para dividir com ele a futura herança do
pai surpreendeu a todos. Mas o rapaz, de trinta anos de idade, pediu a palavra
e explicou:
– Meu pai sempre
quis ter uma filha e não teve. Meu pai sempre quis ter um filho militar corajoso
e não teve. Mas agora esta moça, dona de uma história e de um caráter
admiráveis sob todos os pontos de vista, aparece de repente na vida de meu pai
e pode lhe dar, ao mesmo tempo, a filha que ele nunca teve e o guerreiro
valente que ele nunca teve como filho. Eu, como um filho que respeita e ama seu
pai, triste por não ter sido nunca aquilo que ele sonhou, só posso ficar muito
feliz com a adoção da valente Alline de Troyes. E muito honrado fico em
recebê-la como a irmã que eu também sempre quis ter e nunca tive.
O senado em peso
aplaudiu longamente o rapaz. O pai, compreendendo pela primeira vez a tristeza
que impunha ao filho continuamente, abraçou-o longamente e lhe pediu perdão por
sua intransigência militarista. E disse que, daquele dia em diante, se
esforçaria para entender seu filho como o poeta e o historiador que ele era,
reconhecido amplamente nos melhores círculos intelectuais do império.
Alline,
comovida, aproximou-se dos dois e ambos lhes abriram os braços, ficando os três
unidos por um longo tempo assim, na tribuna. Claudio aproveitou para falar-lhe
suavemente ao ouvido:
– Não sei como
lhe agradecer, irmã, por ter trazido tanta alegria e tanto entusiasmo à vida de
nosso pai. E pode ter certeza, se foi tão fácil assim para você conquistar o
coração dele, muito fácil também será conquistar o deste seu irmão.
Quando saíram do
senado, foram todos para a casa do general Jovinus. A partir daquele dia, ele
fez questão de hospedá-los em sua grande vila, que era agora também a casa de
sua filha. E de uma hora para outra, aquele general Dracus, por cuja
recuperação de prestígio ele tanto tinha lutado, passara a ser seu genro. De
imediato se estabeleceu uma enorme relação de amizade entre Alline e Claudius,
por causa dos interesses intelectuais em comum. Juntos ficavam horas a fio
lendo e declamando poesia. Claudio tocava lira divinamente e Alline quis logo
aprender a tocar o instrumento. Tentou o tempo suficiente para se convencer que
nunca conseguiria fazer aquilo direito. Então falou para seu novo irmão:
– Acho que meu
instrumento natural é mesmo um arco com flechas.
– Irmãzinha, você
é demais! E claro que você aprende a tocar lira se quiser. Aliás, acho que aprende qualquer coisa, já que
aprendeu a quebrar narizes e salvar legiões. Já eu, não vou aprender nunca
essas coisas que meu pai diz que são coisas de homem.
– Sim, irmão, eu
compreendo você. E pode crer que eu admiro essa sua feminilidade. Pena que
nosso pai não esteja à altura de reconhecer que alma nobre ele tem dentro desta
casa.
– Pois é, você
percebeu logo que meu negócio não é mulher. Mas eu tenho que fingir namoros e
noivados, pagar mulheres para se passarem por noivas minhas, para não dar esse
desgosto ao general Jovinus. Imagine, o grande general pai de um... um frutinha
qualquer.
– Você não é um
frutinha qualquer, meu irmão, você é o maior poeta latino da atualidade, no meu
entender. Você disse que ficou honrado em me receber como irmã. Pois eu agora
posso lhe dizer também que é uma enorme honra ser irmã do grande poeta Claudius
Jovinus.
E, por todo aquele
mês em que ficaram na casa do general Jovinus, Alline de Troyes e Claudius
Jovinus se fizeram unha e carne. Não se largavam para nada. Alline foi ficando,
no entanto, cada vez mais nostálgica, com saudade de sua vida simples no campo
e, principalmente, na abadia. Desabafou com Claudius e ele passou a colocar
isso em poemas, que musicou depois.
O retorno a Troyes
Depois desse mês
na capital, o general Jovinus, sua filha Alline e seu genro Dracus
empreenderam, com seus soldados, a longa viagem de volta à Gália. Ali, em
Lutécia, Flavius Jovinus ia assumir seu novo posto de governador da Gália do
Sul.
Lucius Dracus
havia surpreendido a todos, generais, senadores e imperador, com uma
inimaginável decisão: recém reintegrado ao exército, pediu baixa imediata e
declarou para sempre encerrada sua carreira militar. Retirou seus soldos
acumulados de vários anos e mandou vender todas as suas propriedades em Roma e
Ravenna. Com a coorte que voltava para a Gália, ia, muito bem guardada, a
fortuna de Lucius Dracus e a fortuna de Alline, transformadas em ouro puro.
Alline e Dracus
tinham um plano certo e definido. Iam se fixar definitivamente em Troyes. O tio
de Dracus, abade de Lugdunum, mantivera a abadia de Troyes sem a nomeação de um
novo abade, esperando pela definição de seu sobrinho, que sabia agora um rico e
influente militar reintegrado às pompas e glórias do império, mas que ainda era
oficialmente o abade de Troyes. Foi com enorme surpresa que recebeu o convite
de Dracus para que se deslocasse para Troyes, com a escolta que ele lhe
mandava. Chegando à abadia, ficou maravilhado com o plano de seu sobrinho.
A cerimônia foi o maior acontecimento de toda
a região. O pai e os irmãos de Alline, agora todos funcionários residentes na
abadia, os irmãos como professores, eram os convidados de honra. A mãe e a
irmã, mortas de inveja, vieram apenas para pedir dinheiro, vestidos e
jóias a Alline, no que não foram atendidas. Ofendidas, preferiram voltar para a
fazendola da família, onde continuariam a viver, corroídas de despeito. A recomendação expressa de
como tratar aquelas duas parentas partira do druida Kelvin.
Então, para
surpresa e encanto de todos, Lucius Dracus foi confirmado pelo tio na posição
de abade de Troyes, com o nome de abade Lucinus. O grande general romano abria
mão de carreira e fortuna para continuar sendo apenas um abade católico, pronto
a servir sua abadia e sua comunidade. O mesmo fazia sua esposa, a incrível e
gloriosa Alline que, um dia, fora o jovem Gilles de Troyes.
Os cônjuges
juntaram suas fortunas em ouro e as investiram em Troyes, construindo uma
grande instituição de ensino; e reformando e fortificando o castelo da abadia,
agora propriedade de Alline. E também construindo um verdadeiro e amplo hospital, para
tratar os doentes de toda a região. A coordenação de toda a instituição de
ensino e do hospital foi dada ao sábio druida celta Kelvin da Britânia. Outra
parte dos recursos foi investida em atividades de produção de uvas e vinhos da nobre casta e em atividades agropecuárias outras, nas imensas terras recebidas de Roma por Alline. Centenas de pessoas passaram
a ter emprego na abadia, nas escolas, no hospital e nas fazendas. E Troyes
conheceu o apogeu de seu crescimento e desenvolvimento.
Dentro da
abadia, nos mesmos aposentos que viram o alvorecer de seu amor, o abade Lucinus
e a senhora Alline, para sempre deixados para trás, no passado, o famoso
general Lucius Dracus e o ladino senhor Gilles de Troyes, dedicavam-se a dar
continuidade à história de seu amor perene. O abade queria somente ser um
bom cristão e um bom líder. E a gaulesa, por conseqüência da visão que tivera
do Ser de Luz, entendia finalmente qual seria sua missão, o que havia
confirmado também com Mestre Kevin.
Alline de Troyes
seria uma boa cristã ela também. Mas não deixaria sua fé na Grande Deusa. E,
como líder inconteste que era, trataria de fortalecer essa fé no coração das
mulheres da Gália, iniciando, dentro da Abadia de Troyes, um movimento para
formação de sacerdotisas celtas da Deusa, que teriam também o Cristo em seu
coração. Essas mulheres seriam treinadas para serem guerreiras e sacerdotisas
ao mesmo tempo. E casariam as duas tradições, a antiga, druídica e a nova,
cristã, facilitando a transição para os novos tempos.
E, como lhe
traduzira Mestre Kelvin, das palavras ouvidas por Alline do abade Sébastien na
outra dimensão, os três seres de Luz que ela receberia em seu ventre, cada um
no seu devido tempo, seriam:
– Um menino, que
haveria de ser o sucessor e continuador da obra de seu pai, o grande abade
Lucinus.
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